sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Espiões de Deus



Desde o começo, foi um troço sujo. Os primeiros espiões de que temos notícia foram os que Josué infiltrou em Jericó. Encontraram um “lugar seguro”, como dizem no jargão atual da espionagem; era a casa da prostituta. O segundo relato mais antigo está no Livro X da Ilíada. É um episódio sórdido de infiltração e contrainfiltração na noite, terminando numa carnificina abafada. Não à toa os estudiosos consideram essa narrativa como um acréscimo posterior, um pequeno melodrama não de Homero. Mas o fascínio do gênero é perene. Entre as primeiras obras literárias maduras nos EUA está O espião. James Fenimore Cooper, neste romance, põe à luz um tema tipicamente moderno: o agente duplo pretenso ou efetivo. No contexto da Revolução Americana, em que os adversários falavam a mesma língua e muitas vezes tinham laços de parentesco, existia quase por definição uma ambivalência do agente secreto. O mesmo aconteceu durante a Guerra Civil, cujos espiões secretos e mensageiros clandestinos encarnavam em si mesmos e em suas atividades obscuras o dilaceramento da lealdade dividida.
O germe da duplicidade é o demônio que habita todo agente. Como poderia ser diferente? O ofício de quem espiona se baseia na intimidade com a parte que está sendo espionada. O agente precisa se fundir com a cidade inimiga. O decifrador se insinua com seu próprio ser nos meandros do coração do codificador. (As longas “Reflections on Espionage” [Reflexões sobre a espionagem], poema sutil e engenhoso de John Hollander, trazem uma alegoria dessa intimidade especular entre o montador e o desmontador das tramoias.) Apanhado na rede enigmática de seu próprio “disfarce”, exposto, desmascarado, muitas vezes a saída do agente secreto é aceitar a proposta de uma dupla traição. Então começa a trabalhar para o lado que o capturou, mantendo nas aparências sua lealdade inicial. “Foi convertido”, como dizem.
Mas novas piruetas podem se seguir. Um agente duplo, com efeito, pode ser exatamente isso: pode estar entregando materiais genuínos para as duas partes, e assim se torna uma das pontezinhas ou sinapses neuronais que mantêm o indispensável contato mesmo entre os inimigos nacionais mais encarniçados. Não raro os dois patrões, ou “controles”, sabem que estão sendo mutuamente traídos, mas que há alguma vantagem nisso. Ao agente é concedida a imunidade desprotegida da terra de ninguém. Outras vezes, apenas um dos patrões sabe que seu agente é um “convertido”. (Durante a Segunda Guerra Mundial, esse conhecimento permitia que os “espias” aliados infiltrassem dados falsos nas principais artérias da rede de contrainformação alemã.) Mas existem muitos casos em que nenhuma das duas partes, neste mútuo engano, jamais pode saber com certeza onde reside a lealdade ou a traição do agente. Um agente aparentemente duplo — estaria o jovem Stálin trabalhando igualmente para a czarista Okhrana e para os bolcheviques? Estaria passando mais coisas para um lado do que para o outro? Teria retornado a seus primeiros recrutadores, depois de tê-los traído para os segundos? — escava e penetra irreversivelmente o labirinto de seus próprios objetivos secretos. E, como pergunta Joseph Conrad em O agente secreto, o próprio espião lembrará a quem é leal?
Essa pergunta, que pode ser tomada como símbolo das incertezas da identidade humana, daquela capacidade de enganar a si mesmo e de exercer uma memória seletiva que faz com que os homens vacilem ou tropecem ao descer a espiral de sua interioridade, ganha nova resposta na espionagem e na literatura de espionagem do século xx. Mesmo o agente triplo, que vende seus dois empregadores a um terceiro interessado, mesmo o espia mais venal e camaleônico (espiar, “olhar privadamente”, é a arte do voyeur), realmente tem uma causa última a que dá sua adesão. Na hora nauseante antes do alvorecer, enquanto aguarda a leve batida discreta do torturador à porta, ele é leal não às nações ou aos governos que o compram e o vendem, e sim à sua profissão, à fina teia urdida, incessantemente rompida, incessantemente reparada, que une numa mesma intimidade de desconfiança todos os agentes, todos os homens com minicâmeras em salas de arquivos às escuras, todos os calígrafos escrevendo com tinta invisível, qualquer que seja a bandeira sob a qual exercem seu ofício. Nenhum espião jamais quer sair do frio. Seu único lar é a tundra do ofício compartilhado. Seu único vínculo afetivo é o da estima profissional como há entre a caça e o caçador.
Nos sentimentos britânicos, esse terrível paradoxo adquiriu uma faceta obsessiva. A infiltração de Kim Philby nos mais altos escalões do serviço secreto britânico, a serviço da inteligência soviética, e as traições correlatas de Guy Burgess e Donald Maclean, cuja fuga para Moscou foi urdida por Philby, tornam-se cada vez mais intrigantes à medida que passa o tempo. Em parte isso se deve ao implacável descaramento do golpe, junto com a ineficiência da reação oficial. (Ou pior: terá havido uma conivência ou um acobertamento em escalões ainda mais altos?) O desastre Philby, sórdido, estabanado, de alto custo — o serviço secreto americano jamais voltou a se sentir à vontade para trabalhar em plena coordenação com seus “primos de primeiro grau” —, veio a simbolizar algumas falhas nevrálgicas de imaginação e técnica nos assuntos públicos britânicos.
Mas existem razões mais profundas para o mal-estar. Com sua instrução e a posição social da família, com suas maneiras e estilo de vida, Philby e seus subordinados encarnavam a casta superior cuja absoluta fidelidade, cuja devoção inquestionada ao serviço público fornecia a própria base para a confiança britânica no governo de uma elite diletante. Judas pertencera aos clubes certos. Pior: fizera parte do comitê da casa. O choque da revelação atingiu o âmago. E fez com que E. M. Forster apresentasse uma das mais surpreendentes proposições modernas: a de que um autêntico cavalheiro e humanista é aquele que prefere trair o país a trair um amigo (a inferência sendo que o amigo também é um “cavalheiro”, e que trair um rude plebeu não colocaria nenhum problema que se compare). O drama de Philby confere uma densidade especial — embora, no caso mais recente, com uma exuberância um tanto sentimental — aos romances de espionagem de John le Carré. É este o tema da peça atual de Alan Bennett, The Old Country [O velho país], na qual sir Alec Guinness está primoroso no papel de Philby em seu retiro moscovita. E é, inevitavelmente, o pano de fundo do vigésimo romance de Graham Greene, O fator humano (Simon & Schuster, 1978), que, pelo que podemos entender, começou muitos anos atrás como uma reflexão sobre Philby.
Graham Greene é, faz muito tempo, um mestre da política da tristeza. Nisto é herdeiro de Conrad, a quem o novo romance vai buscar sua desolada epígrafe: “Só sei que quem cria um vínculo está perdido. O germe da corrupção lhe entrou na alma”. Maurice Castle (o nome aponta para Forster e também para Kafka) criou um vínculo. Ama sua esposa negra Sarah e o enteado negro Sam. O plano de fugirem da África do Sul, das leis raciais que impediriam o casamento e a vida juntos, era muito arriscado. Não conseguiriam sem a ajuda de Carson, obscuramente entregue à morte numa prisão sul-africana, e de seus associados contra o apartheid, inclusive comunistas. Essa dívida une ainda mais Castle a Sarah. Castle honra a dívida desonrando seu cargo e a confiança depositada nele. Faz-se agente duplo.
Castle ocupa um nicho vagamente elevado num dos velhos becos do serviço secreto britânico. Mantém sob melancólica vigilância as ex-colônias africanas. Detesta as políticas sul-africanas e passa para seus contatos soviéticos qualquer informação capaz de ajudar a inibir a difusão do apartheid e a repressão ainda maior à resistência dos liberais e esquerdistas dentro da África do Sul. Quando Sarah fala em “nosso povo”, Castle é tomado por uma súbita sensação de lar, mais próxima, mais vital para seu íntimo, para o coração que vem envelhecendo, do que sua identidade de inglês de nascimento ou do que a função oficial que desempenha. Descobre-se um vazamento no departamento de Castle. O serviço de contrainformação desconfia de uma “toupeira” — termo usado para designar um traidor no meio do serviço secreto, alguém entocado ali dentro trabalhando a mando de uma agência de espionagem estrangeira. A lógica da suspeita, de início informal, e que depois adquire uma coerência falaciosa, aponta para Davis, o assistente distraído e levemente descuidado de Castle. O coronel Daintry quer provas sólidas antes de prosseguir, mas dr. Percival, que cuida dos problemas de saúde na “firma” (a equipe de espionagem), é menos sentimental. Davis morre envenenado.
Enquanto isso, Castle recebe ordens de colaborar diretamente com o mesmo homem do serviço secreto sul-africano que antes perseguira a ele e Sarah. Tio Remus é o codinome de um desses planos antissubversivos, mutuamente vantajosos, em que a África do Sul e os eua defendem seus interesses comuns contra os comunistas. Castle transmite um último dossiê com informações essenciais e, sabendo que os sapadores estão chegando perto, resolve detonar a situação. Está cansado da Inglaterra. No final do romance, a linha telefônica, por onde ouvira brevemente a voz de Sarah, fica muda. Temos a impressão de que vai demorar muito até que Castle volte a ver a esposa e Sam, e será um período bem difícil. No limbo de seu apartamento em Moscou, ele está lendo Robinson Crusoé. Quanto tempo o náufrago ficou abandonado na solidão da lembrança? “Vinte e oito anos, dois meses e dezenove dias…” Mas Moscou é uma ilha ainda mais distante.
Ao longo de todo o romance, estamos no espaço restrito e limitado que Greene adotou em sua obra. O tom é de fim. Castle é estéril. Os espiões e contraespiões britânicos operam numa base de poder ou importância drasticamente reduzida. Os sonhos marxistas se transformaram em pesadelo ou se mumificaram num conjunto de atitudes e metáforas tão vazias, tão corrosivas quanto as do liberalismo ocidental clássico. (Aqui Greene é ainda mais desencantado do que Le Carré, que fez do “centro faltante” um elemento constante de suas tramas.) Qualquer élan que exista consiste ou na brutalidade deliberada do boss (a agência do serviço secreto sul-africano) ou na pressão indiferente da ingenuidade americana. Em Daintry, o elevado código do cavalheiro e servidor público inglês mirrou e virou ineficiência. (A única passagem mais faiscante no livro mostra um Daintry atrapalhado e aturdido com o casamento de sua filha com alguém de posição inferior, por obra da esposa mandona da qual ele tinha se separado muito tempo antes.) Em dr. Percival, esse mesmo código degenerou numa imperturbável propensão homicida.
Dos clubes estiolados em St. James’s, das livrarias com sua coleção de edições eróticas, dos bairros residenciais regados a uísque, Greene cria imagens de toda uma sociedade cansada, arfando rumo a algum futuro levemente sórdido — visão esta que já se encontrava em Brighton Rock, em 1938. Um diálogo entre Castle e Davis, no começo da novela, contém o discreto sarcasmo da narrativa inteira:

Qual foi a informação mais secreta que você já teve, Castle?
Uma vez eu soube a data aproximada de uma invasão.
Da Normandia?
Não, não. Só dos Açores.

Esse “aproximada” é de mestre.
Mas, mesmo sendo uma obra enxuta e muito bem montada, não é uma das grandes coisas de Greene. O texto é cheio de autorreferências. Para dar corpo à caracterização e aos temas apenas indicados, o leitor precisa se lembrar de episódios muito similares, trechos de diálogos, o movimento das emoções em Nosso homem em Havana e O cônsul honorário. Como ocorre com frequência em Greene, o tratamento do amor conjugal, central para a traição de Castle, é precário. O diálogo entre Sarah e Castle é canhestro; a dolorosa intimidade entre ambos é sugerida, jamais realizada. São as vinhetas rápidas que se destacam: Bellamy (“Philby”) indo visitar Castle em Moscou.
O tema de longe mais interessante em O fator humano é a sugestão de Greene de que o catolicismo e a espionagem oferecem um instrumento de consolo e verdade que nem o protestantismo, nem o racionalismo secular (seu infeliz fruto) conseguem igualar. É preciso que se espreite a alma; é preciso que haja ouvintes ocultos que possam punir e consolar. O agente que apresenta um relatório a seu controle e o católico ajoelhado diante do confessor estão no mesmo barco arriscado. Mas nessa travessia, com seu desnudamento do espírito, com sua aceitação da penitência, encontra-se a solidariedade. Greene utiliza esse paralelo. Uma vez Castle viu um padre de verdade, um servo do Senhor, trabalhando nos cortiços de Soweto, e sabe que o comunismo também tem uma face humana — que alguma verdade última na visão comunista sobreviveu a Praga e a Budapeste, tal como o catolicismo sobreviveu aos Bórgias. E na cena essencial do livro, uma cena composta para lembrar explicitamente a obra máxima de Greene, O poder e a glória, Castle, que não segue religião nenhuma, tenta surripiar o consolo do confessionário. Como Kierkegaard, Greene sabe que o mais solitário dos homens é aquele que não tem nenhum segredo — ou, mais precisamente, aquele que não tem ninguém a quem possa trair um segredo. Assim, há uma estranha afinidade em todas as traições e uma teologia ressoando na misteriosa advertência de Lear a Cordélia: sejamos “espiões de Deus” e cantemos como os passarinhos na gaiola.
Essa noção tem um fascínio sombrio, como aquelas fantasias de identidade clandestina que tantos de nós usam para amparar nossos devaneios. É o pobre Davis que deixa escapar a verdade: “Que profissão danada de idiota é a nossa” (onde “profissão” traz, como sempre em Greene, o atrativo de suas raízes etimológicas). Mas é exatamente essa percepção que Greene, Le Carré e a vasta tribo que enxameia em torno deles procuram evitar. Existem aparelhos capazes, dizem, de detetar o calor do exaustor de um tanque a 25 mil metros. O jornalismo investigativo e o espírito agora universal da fofoca inundam as bancas de jornal com informações ultraconfidenciais. Revistas populares trazem diagramas mostrando como montar bombas nucleares. Existe alguma coisa realmente nova ou decisiva no material que os espiões mascateiam para seus clientes? Josué precisava de quatro olhos disfarçados para lhe dizer que Jericó tinha muros e que seus moradores não receberiam bem uma invasão? Talvez toda a indústria da espionagem tenha se convertido numa brincadeira frívola, numa amarelinha mortífera numa casa de espelhos.
Gostaria que todas as mentiras fossem desnecessárias”, confidencia Castle a Boris, seu controle soviético. “E gostaria que estivéssemos do mesmo lado.” Talvez estejamos, e talvez Greene nos sussurre que este, porém, é o lado dos perdedores. Confiteor.
8 de maio de 1978

George Steiner, em Tigres no Espelho e Outros Textos

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