Desde o começo, foi um troço sujo.
Os primeiros espiões de que temos notícia foram os que Josué
infiltrou em Jericó. Encontraram um “lugar seguro”, como dizem
no jargão atual da espionagem; era a casa da prostituta. O segundo
relato mais antigo está no Livro X da Ilíada. É um episódio
sórdido de infiltração e contrainfiltração na noite, terminando
numa carnificina abafada. Não à toa os estudiosos consideram essa
narrativa como um acréscimo posterior, um pequeno melodrama não de
Homero. Mas o fascínio do gênero é perene. Entre as primeiras
obras literárias maduras nos EUA está O espião. James
Fenimore Cooper, neste romance, põe à luz um tema tipicamente
moderno: o agente duplo pretenso ou efetivo. No contexto da Revolução
Americana, em que os adversários falavam a mesma língua e muitas
vezes tinham laços de parentesco, existia quase por definição uma
ambivalência do agente secreto. O mesmo aconteceu durante a Guerra
Civil, cujos espiões secretos e mensageiros clandestinos encarnavam
em si mesmos e em suas atividades obscuras o dilaceramento da
lealdade dividida.
O germe da duplicidade é o demônio
que habita todo agente. Como poderia ser diferente? O ofício de quem
espiona se baseia na intimidade com a parte que está sendo
espionada. O agente precisa se fundir com a cidade inimiga. O
decifrador se insinua com seu próprio ser nos meandros do coração
do codificador. (As longas “Reflections on Espionage” [Reflexões
sobre a espionagem], poema sutil e engenhoso de John Hollander,
trazem uma alegoria dessa intimidade especular entre o montador e o
desmontador das tramoias.) Apanhado na rede enigmática de seu
próprio “disfarce”, exposto, desmascarado, muitas vezes a saída
do agente secreto é aceitar a proposta de uma dupla traição. Então
começa a trabalhar para o lado que o capturou, mantendo nas
aparências sua lealdade inicial. “Foi convertido”, como dizem.
Mas novas piruetas podem se seguir. Um
agente duplo, com efeito, pode ser exatamente isso: pode estar
entregando materiais genuínos para as duas partes, e assim se torna
uma das pontezinhas ou sinapses neuronais que mantêm o indispensável
contato mesmo entre os inimigos nacionais mais encarniçados. Não
raro os dois patrões, ou “controles”, sabem que estão sendo
mutuamente traídos, mas que há alguma vantagem nisso. Ao agente é
concedida a imunidade desprotegida da terra de ninguém. Outras
vezes, apenas um dos patrões sabe que seu agente é um “convertido”.
(Durante a Segunda Guerra Mundial, esse conhecimento permitia que os
“espias” aliados infiltrassem dados falsos nas principais
artérias da rede de contrainformação alemã.) Mas existem muitos
casos em que nenhuma das duas partes, neste mútuo engano, jamais
pode saber com certeza onde reside a lealdade ou a traição do
agente. Um agente aparentemente duplo — estaria o jovem Stálin
trabalhando igualmente para a czarista Okhrana e para os
bolcheviques? Estaria passando mais coisas para um lado do que para o
outro? Teria retornado a seus primeiros recrutadores, depois de
tê-los traído para os segundos? — escava e penetra
irreversivelmente o labirinto de seus próprios objetivos secretos.
E, como pergunta Joseph Conrad em O agente secreto, o próprio espião
lembrará a quem é leal?
Essa pergunta, que pode ser tomada
como símbolo das incertezas da identidade humana, daquela capacidade
de enganar a si mesmo e de exercer uma memória seletiva que faz com
que os homens vacilem ou tropecem ao descer a espiral de sua
interioridade, ganha nova resposta na espionagem e na literatura de
espionagem do século xx. Mesmo o agente triplo, que vende seus dois
empregadores a um terceiro interessado, mesmo o espia mais venal e
camaleônico (espiar, “olhar privadamente”, é a arte do voyeur),
realmente tem uma causa última a que dá sua adesão. Na hora
nauseante antes do alvorecer, enquanto aguarda a leve batida discreta
do torturador à porta, ele é leal não às nações ou aos governos
que o compram e o vendem, e sim à sua profissão, à fina teia
urdida, incessantemente rompida, incessantemente reparada, que une
numa mesma intimidade de desconfiança todos os agentes, todos os
homens com minicâmeras em salas de arquivos às escuras, todos os
calígrafos escrevendo com tinta invisível, qualquer que seja a
bandeira sob a qual exercem seu ofício. Nenhum espião jamais quer
sair do frio. Seu único lar é a tundra do ofício compartilhado.
Seu único vínculo afetivo é o da estima profissional como há
entre a caça e o caçador.
Nos sentimentos britânicos, esse
terrível paradoxo adquiriu uma faceta obsessiva. A infiltração de
Kim Philby nos mais altos escalões do serviço secreto britânico, a
serviço da inteligência soviética, e as traições correlatas de
Guy Burgess e Donald Maclean, cuja fuga para Moscou foi urdida por
Philby, tornam-se cada vez mais intrigantes à medida que passa o
tempo. Em parte isso se deve ao implacável descaramento do golpe,
junto com a ineficiência da reação oficial. (Ou pior: terá havido
uma conivência ou um acobertamento em escalões ainda mais altos?) O
desastre Philby, sórdido, estabanado, de alto custo — o serviço
secreto americano jamais voltou a se sentir à vontade para trabalhar
em plena coordenação com seus “primos de primeiro grau” —,
veio a simbolizar algumas falhas nevrálgicas de imaginação e
técnica nos assuntos públicos britânicos.
Mas existem razões mais profundas
para o mal-estar. Com sua instrução e a posição social da
família, com suas maneiras e estilo de vida, Philby e seus
subordinados encarnavam a casta superior cuja absoluta fidelidade,
cuja devoção inquestionada ao serviço público fornecia a própria
base para a confiança britânica no governo de uma elite diletante.
Judas pertencera aos clubes certos. Pior: fizera parte do comitê da
casa. O choque da revelação atingiu o âmago. E fez com que E. M.
Forster apresentasse uma das mais surpreendentes proposições
modernas: a de que um autêntico cavalheiro e humanista é aquele que
prefere trair o país a trair um amigo (a inferência sendo que o
amigo também é um “cavalheiro”, e que trair um rude plebeu não
colocaria nenhum problema que se compare). O drama de Philby confere
uma densidade especial — embora, no caso mais recente, com uma
exuberância um tanto sentimental — aos romances de espionagem de
John le Carré. É este o tema da peça atual de Alan Bennett, The
Old Country [O velho país], na qual sir Alec Guinness está
primoroso no papel de Philby em seu retiro moscovita. E é,
inevitavelmente, o pano de fundo do vigésimo romance de Graham
Greene, O fator humano (Simon & Schuster, 1978), que, pelo que
podemos entender, começou muitos anos atrás como uma reflexão
sobre Philby.
Graham Greene é, faz muito tempo, um
mestre da política da tristeza. Nisto é herdeiro de Conrad, a quem
o novo romance vai buscar sua desolada epígrafe: “Só sei que quem
cria um vínculo está perdido. O germe da corrupção lhe entrou na
alma”. Maurice Castle (o nome aponta para Forster e também para
Kafka) criou um vínculo. Ama sua esposa negra Sarah e o enteado
negro Sam. O plano de fugirem da África do Sul, das leis raciais que
impediriam o casamento e a vida juntos, era muito arriscado. Não
conseguiriam sem a ajuda de Carson, obscuramente entregue à morte
numa prisão sul-africana, e de seus associados contra o apartheid,
inclusive comunistas. Essa dívida une ainda mais Castle a Sarah.
Castle honra a dívida desonrando seu cargo e a confiança depositada
nele. Faz-se agente duplo.
Castle ocupa um nicho vagamente
elevado num dos velhos becos do serviço secreto britânico. Mantém
sob melancólica vigilância as ex-colônias africanas. Detesta as
políticas sul-africanas e passa para seus contatos soviéticos
qualquer informação capaz de ajudar a inibir a difusão do
apartheid e a repressão ainda maior à resistência dos
liberais e esquerdistas dentro da África do Sul. Quando Sarah fala
em “nosso povo”, Castle é tomado por uma súbita sensação de
lar, mais próxima, mais vital para seu íntimo, para o coração que
vem envelhecendo, do que sua identidade de inglês de nascimento ou
do que a função oficial que desempenha. Descobre-se um vazamento no
departamento de Castle. O serviço de contrainformação desconfia de
uma “toupeira” — termo usado para designar um traidor no meio
do serviço secreto, alguém entocado ali dentro trabalhando a mando
de uma agência de espionagem estrangeira. A lógica da suspeita, de
início informal, e que depois adquire uma coerência falaciosa,
aponta para Davis, o assistente distraído e levemente descuidado de
Castle. O coronel Daintry quer provas sólidas antes de prosseguir,
mas dr. Percival, que cuida dos problemas de saúde na “firma” (a
equipe de espionagem), é menos sentimental. Davis morre envenenado.
Enquanto isso, Castle recebe ordens de
colaborar diretamente com o mesmo homem do serviço secreto
sul-africano que antes perseguira a ele e Sarah. Tio Remus é o
codinome de um desses planos antissubversivos, mutuamente vantajosos,
em que a África do Sul e os eua defendem seus interesses comuns
contra os comunistas. Castle transmite um último dossiê com
informações essenciais e, sabendo que os sapadores estão chegando
perto, resolve detonar a situação. Está cansado da Inglaterra. No
final do romance, a linha telefônica, por onde ouvira brevemente a
voz de Sarah, fica muda. Temos a impressão de que vai demorar muito
até que Castle volte a ver a esposa e Sam, e será um período bem
difícil. No limbo de seu apartamento em Moscou, ele está lendo
Robinson Crusoé. Quanto tempo o náufrago ficou abandonado na
solidão da lembrança? “Vinte e oito anos, dois meses e dezenove
dias…” Mas Moscou é uma ilha ainda mais distante.
Ao longo de todo o romance, estamos no
espaço restrito e limitado que Greene adotou em sua obra. O tom é
de fim. Castle é estéril. Os espiões e contraespiões britânicos
operam numa base de poder ou importância drasticamente reduzida. Os
sonhos marxistas se transformaram em pesadelo ou se mumificaram num
conjunto de atitudes e metáforas tão vazias, tão corrosivas quanto
as do liberalismo ocidental clássico. (Aqui Greene é ainda mais
desencantado do que Le Carré, que fez do “centro faltante” um
elemento constante de suas tramas.) Qualquer élan que exista
consiste ou na brutalidade deliberada do boss (a agência do serviço
secreto sul-africano) ou na pressão indiferente da ingenuidade
americana. Em Daintry, o elevado código do cavalheiro e servidor
público inglês mirrou e virou ineficiência. (A única passagem
mais faiscante no livro mostra um Daintry atrapalhado e aturdido com
o casamento de sua filha com alguém de posição inferior, por obra
da esposa mandona da qual ele tinha se separado muito tempo antes.)
Em dr. Percival, esse mesmo código degenerou numa imperturbável
propensão homicida.
Dos clubes estiolados em St. James’s,
das livrarias com sua coleção de edições eróticas, dos bairros
residenciais regados a uísque, Greene cria imagens de toda uma
sociedade cansada, arfando rumo a algum futuro levemente sórdido —
visão esta que já se encontrava em Brighton Rock, em 1938.
Um diálogo entre Castle e Davis, no começo da novela, contém o
discreto sarcasmo da narrativa inteira:
— Qual foi a informação mais
secreta que você já teve, Castle?
— Uma vez eu soube a data aproximada
de uma invasão.
— Da Normandia?
— Não, não. Só dos Açores.
Esse “aproximada” é de mestre.
Mas, mesmo sendo uma obra enxuta e
muito bem montada, não é uma das grandes coisas de Greene. O texto
é cheio de autorreferências. Para dar corpo à caracterização e
aos temas apenas indicados, o leitor precisa se lembrar de episódios
muito similares, trechos de diálogos, o movimento das emoções em
Nosso homem em Havana e O cônsul honorário. Como
ocorre com frequência em Greene, o tratamento do amor conjugal,
central para a traição de Castle, é precário. O diálogo entre
Sarah e Castle é canhestro; a dolorosa intimidade entre ambos é
sugerida, jamais realizada. São as vinhetas rápidas que se
destacam: Bellamy (“Philby”) indo visitar Castle em Moscou.
O tema de longe mais interessante em O
fator humano é a sugestão de Greene de que o catolicismo e a
espionagem oferecem um instrumento de consolo e verdade que nem o
protestantismo, nem o racionalismo secular (seu infeliz fruto)
conseguem igualar. É preciso que se espreite a alma; é preciso que
haja ouvintes ocultos que possam punir e consolar. O agente que
apresenta um relatório a seu controle e o católico ajoelhado diante
do confessor estão no mesmo barco arriscado. Mas nessa travessia,
com seu desnudamento do espírito, com sua aceitação da penitência,
encontra-se a solidariedade. Greene utiliza esse paralelo. Uma vez
Castle viu um padre de verdade, um servo do Senhor, trabalhando nos
cortiços de Soweto, e sabe que o comunismo também tem uma face
humana — que alguma verdade última na visão comunista sobreviveu
a Praga e a Budapeste, tal como o catolicismo sobreviveu aos Bórgias.
E na cena essencial do livro, uma cena composta para lembrar
explicitamente a obra máxima de Greene, O poder e a glória,
Castle, que não segue religião nenhuma, tenta surripiar o consolo
do confessionário. Como Kierkegaard, Greene sabe que o mais
solitário dos homens é aquele que não tem nenhum segredo — ou,
mais precisamente, aquele que não tem ninguém a quem possa trair um
segredo. Assim, há uma estranha afinidade em todas as traições e
uma teologia ressoando na misteriosa advertência de Lear a Cordélia:
sejamos “espiões de Deus” e cantemos como os passarinhos na
gaiola.
Essa noção tem um fascínio sombrio,
como aquelas fantasias de identidade clandestina que tantos de nós
usam para amparar nossos devaneios. É o pobre Davis que deixa
escapar a verdade: “Que profissão danada de idiota é a nossa”
(onde “profissão” traz, como sempre em Greene, o atrativo de
suas raízes etimológicas). Mas é exatamente essa percepção que
Greene, Le Carré e a vasta tribo que enxameia em torno deles
procuram evitar. Existem aparelhos capazes, dizem, de detetar o calor
do exaustor de um tanque a 25 mil metros. O jornalismo investigativo
e o espírito agora universal da fofoca inundam as bancas de jornal
com informações ultraconfidenciais. Revistas populares trazem
diagramas mostrando como montar bombas nucleares. Existe alguma coisa
realmente nova ou decisiva no material que os espiões mascateiam
para seus clientes? Josué precisava de quatro olhos disfarçados
para lhe dizer que Jericó tinha muros e que seus moradores não
receberiam bem uma invasão? Talvez toda a indústria da espionagem
tenha se convertido numa brincadeira frívola, numa amarelinha
mortífera numa casa de espelhos.
“Gostaria que todas as mentiras
fossem desnecessárias”, confidencia Castle a Boris, seu controle
soviético. “E gostaria que estivéssemos do mesmo lado.” Talvez
estejamos, e talvez Greene nos sussurre que este, porém, é o lado
dos perdedores. Confiteor.
8 de maio de 1978
George Steiner, em Tigres no Espelho e Outros Textos

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