79.
Leve, como uma coisa que começasse, a
maresia da brisa pairou de sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos
princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar
morno. Senti a vida no estômago, e o olfato tornou-se-me uma coisa
por detrás dos olhos. Altas, pousavam em nada nuvens ralas, rolos,
num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A atmosfera era de
uma ameaça de céu cobarde, como a de uma trovoada inaudível, feita
de ar somente.
Havia estagnação no próprio voo das
gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadas nele por
alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar
refrescava intermitentemente.
Pobres das esperanças que tenho tido,
saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar,
névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade
de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há
maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o
negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro.
Tanta inconsequência em querer
bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações supostas!
Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o
rio, para dizer que me dói a vida no olfato e na consciência, para
não saber dizer, como na frase simples e ampla do Livro de Job,
“A minha alma está cansada da minha vida”.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
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