78.
Há sensações que são sonos, que
ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam
pensar, que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se
não tivéssemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho,
e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos
sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde
despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à
passagem.
Olha-se, mas não se vê. A longa rua
movimentada de bichos humanos é uma espécie de tabuleta deitada
onde as letras fossem móveis e não formassem sentidos. As casas são
somente casas. Perde-se a possibilidade de dar um sentido ao que se
vê, mas vê-se bem o que é, sim.
As pancadas de martelo à porta do
caixoteiro soam com uma estranheza próxima. Soam grandemente
separadas, cada uma com eco e sem proveito. Os ruídos das carroças
parecem de dia em que vem trovoada. As vozes saem do ar, e não de
gargantas. Ao fundo, o rio está cansado.
Não é tédio o que se sente. Não é
mágoa o que se sente. E uma vontade de dormir com outra
personalidade, de esquecer com melhoria de vencimento. Não se sente
nada, a não ser um automatismo cá em baixo, a fazer umas pernas que
nos pertencem levar a bater no chão, na marcha involuntária,
uns pés que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto se sente talvez.
À roda dos olhos e como dedos nos ouvidos há um aperto de dentro da
cabeça.
Parece uma constipação na alma. E
com a imagem literária de se estar doente nasce um desejo de que a
vida fosse uma convalescença, sem andar; e a ideia de convalescença
evoca as quintas dos arredores, mas lá para dentro, onde são lares,
longe da rua e das rodas. Sim, não se sente nada. Passa-se
conscientemente, a dormir só com a impossibilidade de dar ao corpo
outra direção, a porta onde se deve entrar. Passa-se tudo.
Que é do pandeiro, ó urso parado?
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
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