Se você quer me conhecer de
verdade, não me pergunte onde moro, o que gosto de comer ou como
prefiro usar meu cabelo, e sim qual é a minha meta de vida, e o que
acho que me impede de viver plenamente em prol dessa meta.
— THOMAS MERTON
Em determinado momento, acabei
recebendo uma bolsa integral para a faculdade com a bolsa de estudos
do Preparatory Enrollment Program. O PEP, como chamamos, era um
programa complementar ao Upward Bound. Comecei em um local já
conhecido, a Rhode Island College, morando no mesmo dormitório
feminino onde tinha passado os verões no ensino médio e visitado
minha irmã Deloris no ano escolar — o Browne Hall. Fui para a
faculdade aos 17 anos e, como muitos jovens, não era madura, mas com
certeza pensava que era.
Estava empolgada para sair de casa.
Trabalhei por isso e mereci. Quando cheguei, desfiz as malas, me
instalei e, em seguida, caí em uma depressão muito, muito profunda,
provavelmente a mais profunda pela qual já passei. Desde então,
nunca mais tive uma assim. Não com a mesma intensidade. Eu estava
deprimida por estar longe da minha irmãzinha Danielle, mas por si só
essa separação não dá conta de explicar a minha depressão.
Desde os 14 anos, tinha direcionado
todos os meus esforços para a atuação, para me tornar uma artista.
Quando me vi na faculdade, ainda não me sentia livre para fazer
aquilo que eu amava. Minha mente era como uma estação na qual dois
trens estavam partindo ao mesmo tempo. Um deles era minha carreira
acadêmica; estava nos trilhos me formar no ensino médio, entrar na
faculdade, obter meu diploma de bacharel em Artes e me tornar uma
artista. Mas o outro trem deixando a estação voltava para o local
do trauma de onde eu saíra, um local onde fui ferida, onde não
acreditava em mim mesma, não tinha noção de quem era. Eu não
entendia o que era amor-próprio. Nunca sentia que eu era o
suficiente.
Fui para a faculdade me perguntando o
que muitos artistas perguntam:Como vou ganhar dinheiro? Como vou
me sustentar? Quando eu não enxergava um caminho, pensava: Não
posso voltar para casa. Não vai dar certo trabalhar como artista.
Tenho que ser outra coisa. Atuar é algo que vou fazer no tempo
livre. Então fiz várias matérias de inglês, que eu amava, e
decidi que seria professora. No entanto, parte de mim deve ter tido
outros pensamentos, porque mergulhei em uma enorme tristeza.
A depressão surgiu por desistir do
meu sonho.
O Browne Hall, meu dormitório, era
todo feminino. Era dividido em vários setores de 12 quartos, cada um
com uma cama de solteiro, uma escrivaninha e um armário pequeno. O
prédio tinha uma porta da frente e uma nos fundos. Quando alguém
chegava à porta da frente, quem quer que estivesse cuidando da
recepção chamava a aluna e dizia: “Você tem visita.” Eu estava
me adaptando à minha nova vida e, apesar do peso da depressão, me
sentia feliz por estar sobrevivendo bem longe de casa. Tinha meu
quarto, um lugar para tomar banho, comida, aquecimento.
Uma noite, logo no primeiro ano,
recebi uma ligação da minha irmã Anita, que estava chorando.
— Estamos na porta dos fundos.
Saí para encontrar Anita em lágrimas
e grávida de quase oito meses da minha primeira sobrinha, Brianna.
MaMama estava com ela, também chorando, o rosto ensanguentado,
ferida. Minha irmãzinha Danielle fedia a urina.
Aquele momento me transportou de volta
para o trauma com o qual eu crescera, que havia me catapultado para
fora do meu corpo. Meu pai tinha atacado minha mãe outra vez, e elas
tiveram que sair de casa às pressas. Então dirigiram até a Rhode
Island College no carro velho de Anita porque não tinham para onde
ir.
— Gente, vocês não podem ficar
aqui. Não posso deixar ninguém dormir no meu quarto. — Entrei em
pânico. Não tinha ideia do que fazer. — Vão me expulsar do
dormitório.
— Então teremos que voltar para
casa — disse Anita. — Ele enlouqueceu. Pode matar a mamãe.
Não conseguia me mexer. De novo,
estava paralisada. Mesmo assim, consegui responder:
— Não tenho dinheiro. Não sei o
que fazer.
MaMama chorava, aterrorizada.
— Por que não deixa Danielle ficar
aqui esta noite?
Danielle também chorava. Foi
horrível. Eu a levei para dentro. Mal tinha dinheiro para a
lavanderia do dormitório, mas recebi minha irmã mesmo assim, tentei
lavar as roupas dela, deixei que tomasse um banho. Minhas melhores
intenções não se equiparavam aos meus recursos. Ela dormiu comigo
na minha cama de solteiro; ela em uma ponta e eu na outra. Meu
dinheiro mal dava para as refeições do fim de semana, quando o
refeitório estava fechado, mas de alguma forma a alimentei. Era tudo
o que eu podia fazer. Estava tentando encontrar meu caminho, me
estabelecer e ainda salvar minha família.
Era como tentar salvar outra pessoa
quando eu mesma estava me afogando. Um dos meus maiores
arrependimentos é o trauma que Danielle teve que passar, e
minha falta de habilidade para fazer algo além da cura temporária
daquela noite. Hoje, com uma conta bancária gorda, recursos, queria
poder voltar àquela época. Se eu pudesse, viajaria no tempo e
afastaria minha irmã de tudo, bem naquela ocasião.
Ela me ligava pelo menos 15 vezes por
dia. Minha colega de dormitório dizia: “Viola! É a sua
irmãzinha.” Ela quase sempre estava aos prantos, dizendo: “Venha
me buscar, Vahlee.” Eu sempre tinha que dizer: “Danielle, não
posso ir. Estou muito longe.” Ela começava a chorar ou eu ouvia os
ataques de raiva embriagados do meu pai ao fundo, enquanto ela
chorava e dizia: “Por favor, venha me buscar.”
Às vezes, principalmente nos fins de
semana, Deloris e eu íamos para casa ficar com ela, juntávamos
dinheiro para comprar sorvete Heavenly Hash, salada grega e macarrão
concha com molho de tomate Prego. Danielle ficava tão feliz!
Ela corria para nós como Celie em A cor púrpura ao ver a
irmã, Nettie. Aquela reação de quando sentimos tanto a falta de
alguém e, enfim, a pessoa está bem diante de você. Nós comíamos
e víamos A ilha da fantasia e O barco do amor.
Tattoo, personagem interpretado por
Hervé Villechaize, corria para um farol quando via o avião indo em
direção à ilha e fazia soar o sino, gritando: “O avião! O
avião!” Danielle amava tanto essa parte que dizia, entre garfadas
de macarrão: “Ele vai dizer ‘O avião! O avião!’.” Nós a
provocávamos: “Ele não vai, não. Quem te falou isso?” E ela
rebatia: “Presta atenção, você vai ver.” Ele dizia as palavras
e nós ficávamos boquiabertas. Olhávamos para Danielle com espanto,
e ela cruzava os braços como se dissesse “Eu avisei”. Esse era o
nosso ritual. Íamos para casa porque amávamos muito nossa
irmãzinha, e ela nos amava também. Então, na segunda-feira,
voltávamos para a faculdade.
Minha irmã mais velha Dianne obteve
toda premiação imaginável em sua jornada: a Sociedade Nacional de
Honras, a Sociedade de Honra de Rhode Island, a All-State Basketball.
Além disso, era uma grande atriz e cantora. Conseguia fazer de tudo.
Mulheres negras bem-sucedidas quase normalizam o excesso de
conquistas. Dianne definitivamente era assim.
Ela começou a atuar na Rhode Island
College antes de pedir transferência para a Howard University.
Dianne ainda queria se tornar atriz, até descobrir o quanto era
difícil. “Quero ter plano de saúde”, disse ela.
Embora meus pais não tenham ido para
a faculdade — não terminaram o ensino médio —, Dianne havia nos
influenciado a pensar que Nós. Vamos. Para. A. Faculdade. Ela
despertou em nós a noção de que, se não tivéssemos diploma, se
não encontrássemos uma profissão, se não tivéssemos uma meta, se
não tivéssemos atitude, seríamos como nossos pais. Senti que, se
eu não fosse para a faculdade, se não conseguisse meu diploma, se
não fosse excelente, a realidade dos meus pais seria a minha. Não
havia meio-termo. Ou você conseguia ou fracassava.
Eu os amava muito, mas não queria
levar uma vida de pobreza, alcoolismo e violência. Achava que
só tinha duas opções: ser bem-sucedida ou afundar de vez. Não
havia meio-termo. Eu não fazia ideia de que tinha as ferramentas
para me recuperar caso falhasse. Não fazia ideia de que haveria
momentos difíceis seguidos de alegria, ou que às vezes as coisas
não iriam bem, mas que o fracasso não seria permanente. Esse
pensamento emocionalmente saudável não foi passado para mim. Eu só
conhecia segredos, omissão, ser bem-sucedida a qualquer custo, ter
um excesso de conquistas. Era conseguir ou fracassar. Era nadar ou
afundar.
Não sei muito bem como encontrei
minha verdade, mas tenho certeza de que outras pessoas que se
importavam comigo tiveram muito a ver com isso: os conselheiros no
programa Upward Bound e minha irmã Deloris, que perguntava o tempo
todo: “Por que você não está atuando?” Até que um dia, no meu
segundo ano, falei: “Quer saber? Vou tentar.” Foi quando grande
parte da depressão passou. Minha cura era a coragem. A coragem de
ousar, arriscar errar. Decidi me graduar em teatro e ser atriz.
Fiz muitos amigos na faculdade. Minhas
colegas de dormitório eram o meu grupo: Jodi, Chris, Jane e
principalmente Terri Noya, porque nós duas vínhamos de Central
Falls. Noya era portuguesa e, assim como eu, de origem humilde.
Cheril, a assistente de residência, tinha paralisia cerebral e
precisava de todo um equipamento para se locomover. Ela era
maravilhosamente durona.
Elas eram um grupo heterogêneo de
garotas com visão de futuro, enviadas por Deus para me proteger.
Sentia que todas ali acreditavam em mim. Nós nos amávamos. Nós nos
apoiamos na morte de pais, em casamentos, no nascimento de filhos.
Uma das nossas colegas de dormitório engravidou quando ainda
estávamos estudando e teve que desistir da faculdade, mas nós a
apoiamos.
Tivemos bons momentos juntas, mas
aquele primeiro ano foi uma transição difícil. Bebi três vezes no
primeiro ano, e fui pega todas as vezes. Saía com amigos e bebia,
mas não era a minha praia e eu deveria ter respeitado isso. É como
nossos pais diziam quando jovens: “Cabeça dura, bunda mole.”
Isso significa que é necessário aprender algumas lições da
maneira mais difícil.
O momento da minha vida em que fiquei
mais bêbada foi durante a faculdade. Algumas das minhas colegas de
quarto e eu fomos para o lado leste perto da Universidade Brown e
tomamos shots de tequila e bebemos cerveja na Spats. Quando me dei
conta, estava saindo de lá cambaleando. Voltei para o dormitório,
vomitei e tive ressaca por uma semana. Não sei qual era a minha
praia, mas não era beber, e com certeza não era namorar nem
transar. Os momentos de diversão para mim eram quando as garotas do
dormitório se sentavam na sala comum e conversavam… sobre tudo.
Tive uma experiência interessante na
faculdade, onde não me encaixei nem com as pessoas brancas, nem com
as negras. Harambee era a Aliança dos Estudantes Negros. Embora
conhecesse muitas pessoas negras, tivesse ido à Feira de Moda Negra
e tudo mais, não me encaixava com eles por ser de Central Falls e
eles de South Providence, Providence ou Middletown, regiões onde
havia uma população negra maior. Era como se eu não tivesse minha
carteirinha de negra.
Eu era retinta, não usava roupas
descoladas e não tinha aquela autoconfiança que chamam de swag.
Nadinha. Meu Deus, eu vinha de uma cidade pequena de população
predominantemente branca e que agora ainda tinha mais pessoas
latinas. Eu sequer sabia que precisava ter um comportamento
específico para sentir que pertencia à minha raça. Mesmo assim,
minha “carteirinha” era negra demais para me juntar às pessoas
brancas. Fiquei perdida naquele limbo.
Foi uma batalha seguir com a
faculdade, mesmo depois de sobreviver à depressão do primeiro ano.
Estava sozinha. Havia um programa de refeições durante a semana,
mas não nos fins de semana. Aí estava: a questão da comida de
novo. Havia algo sobre a incapacidade de conseguir comida que me
fazia regredir para a minha infância ferrada. Sentia como se
estivesse procurando comida desde a tarde de sexta até a segunda de
manhã.
Imagine como é não contar com um
plano alimentar nos fins de semana? Pior, não ter uma família que
possa enviar comida para você ou uma casa para usar a cozinha ou a
máquina de lavar. Imagine não ter um frigobar em seu dormitório
abastecido com comida para os dias em que o refeitório está
fechado. O resultado: as mazelas da fome e da pobreza.
Para combater isso, sempre tive muitos
empregos. Trabalhei como assistente de residência e conselheira no
programa de aconselhamento da faculdade durante o verão. Sempre
trabalhei. No último ano, tive quatro empregos enquanto estudava em
tempo integral. Trabalhava na biblioteca da faculdade. Trabalhava na
recepção da Rhode Island College. Continuei trabalhando na Brooks
Drugs, em Central Falls. E tinha outro emprego no campus.
Trabalhar na Brooks Drugs me fazia ter
que sair do campus, pegar um ônibus e andar até Central Falls.
Imagine precisar trabalhar em tempo integral, mas sem ter um carro,
pegando, então, três ou quatro conduções numa temperatura abaixo
de zero para conseguir ganhar uma merreca, suficiente apenas para
comer apenas nos fins de semana. Em seguida, você precisa pegar três
ou quatro ônibus de volta para o dormitório para chegar às aulas
da segunda de manhã. Precisa se formar; precisa estudar. A sensação
é de estar em um moinho irrefreável.
Até hoje não gosto de pegar ônibus.
Morei em Nova York por 13 anos e pegava o trem o tempo todo, nunca o
ônibus. Durante a faculdade, tinha que andar no frio congelante por
pelo menos dois quilômetros e meio até o ponto de ônibus que
ficava fora do campus. Era isso ou ter que esperar o ônibus que
passava na Rhode Island College, e os horários dele não eram
confiáveis. Na maior parte do tempo, eu acabava caminhando mesmo até
o ponto de ônibus no frio congelante.
A situação era especialmente atroz
quando estava frio, porque eu precisava passar pela entrada dos
fundos da faculdade, pelas quadras esportivas até a Smith Avenue,
onde havia pouca iluminação, e esperar o ônibus que me levava até
o centro de Providence. Então esperava de novo, em um ponto maior, o
ônibus que me levaria do centro de Providence até o centro de
Pawtucket. Geralmente não tinha dinheiro para a última parte do
trajeto ou, quando tinha, perdia o ônibus de Pawtucket para Central
Falls porque, como eu disse, o horário não era confiável. Eu
andava uns dois ou três quilômetros do centro de Pawtucket até a
Brooks Drugs, em Central Falls. Depois do trabalho, ia para o
apartamento dos meus pais, dormia no chão e voltava para a faculdade
na manhã seguinte ou pegava o turno de alguém.
Trabalhar duro é ótimo quando se é
motivado por paixão, amor e entusiasmo. Mas trabalhar duro motivado
por privação não é nada agradável.
Muito da faculdade, para mim, eram
risos e conexão com as colegas de dormitório e outras amizades que
comecei a fazer, tudo misturado ao isolamento e à maldita dor. Eu
ainda sentia que precisava esconder minhas verdades mais profundas
para me encaixar. Recriei a mim mesma como essa “outra” pessoa.
Eu me imaginei como uma geek do teatro fabulosa de Central Falls, que
conquistava muitas coisas e era engraçada e excêntrica. De vez em
quando, me sentava com as alunas negras no refeitório, mas na maior
parte do tempo eu me sentava com o meu grupo, minhas colegas de
dormitório, ou sozinha.
Na época, a Rhode Island College
tinha menos de 1% de “outros”. “Outros” se referia a alunos
de outros grupos étnico-raciais: latinos, asiáticos, negros,
descendentes de povos do Oriente Médio. Os demais eram brancos.
Havia algo em torno de nove mil alunos. Eu era uma garota perdida
tentando me encontrar.
Não ajudava o fato de a faculdade ter
fraternidades e repúblicas formadas por arruaceiros brancos. A Kappa
Epsilon era uma delas. Digo isso porque alguns de seus membros eram
abertamente racistas. Muitos anos depois do meu período na
faculdade, li que alguns pesquisadores associam a fundação da Ku
Klux Klan à fraternidade Kappa Alpha. Pensando agora, alguns dos
membros da Kappa Epsilon na Rhode Island College devem ter sido
próximos do grupo supremacista, visto que a narrativa de seus atos
explicitamente racistas era perpetuada pelos membros. Acho que eles
acreditavam que as pessoas brancas entravam na faculdade por mérito,
enquanto estudantes negros e multirraciais eram meramente
beneficiários de ações afirmativas.
Não havia entendimento cognitivo da
real complexidade da questão de raça na faculdade ou em seu
processo de admissão. Como se destacar quando você é do Sudeste
Asiático, muitíssimo inteligente, trabalha duro, mas passou dois
anos na selva do Camboja, dois anos em um campo de refugiados e viu
sua família ser massacrada antes de chegar aos Estados Unidos? Sem o
programa de aconselhamento, não haveria nenhum estudante
multirracial, porque já começávamos com um enorme déficit. Ainda
mais destrutiva era a visão de que não éramos merecedores. Esse é
o alicerce sobre o qual foi construído o DNA dos Estados Unidos, e
ao unir a isso desafios pessoais como pobreza, violência, trauma e
vulnerabilidade, pode se tornar uma sentença de morte. Anos mais
tarde, Frank Sanchez foi nomeado presidente da instituição e
transformou completamente o censo demográfico da faculdade.
Durante meu tempo na Rhode Island
College me concentrei sobretudo nas aulas de teatro: estudo de
personagem, voz e articulação, aulas criativas, crítica e história
do teatro — todos os aspectos dessa arte. Nas outras aulas
acadêmicas, nem tanto. Eu sentira um desconforto enorme até decidir
que a atuação era o caminho que eu queria seguir. Era o que me
fazia feliz. O que me trazia alegria. Mas não era possível
trabalhar como atriz em Rhode Island. Não dava. Como conseguir um
trabalho? Como conseguir um teste ou um agente? Estava perto de
começar minha vida profissional e precisava descobrir.
A área da vida que é paralela ao
trabalho, ao estudo, é o lar. Seu centro emocional está enraizado
ali. Para mim, o resultado foi estar sempre atrasada para a aula, não
estar tão preparada quanto poderia. Estava sempre correndo atrás,
sempre um pouquinho desorganizada. Faltavam-me habilidades de
organização até no meu quarto. Não sabia como me vestir nem como
me apresentar. Eu era considerada autêntica porque não sabia o que
ou quem ser. Mas ser autêntica e ser transparente são duas coisas
diferentes. Ser autêntica é usar sapatos de 15 dólares e ter
orgulho de usá-los. Ser transparente é dizer: “Estou sempre
ansiosa. Nunca sinto como se me encaixasse. Preciso de ajuda.” Eu
não era transparente.
Nunca tinha a sensação de estar em
meu corpo. As pessoas provavelmente sentiam que eu estava, porque eu
nunca falava sobre o alcoolismo do meu pai ou sobre crescer pobre e
passando fome. Guardava segredos enormes. Sentia que eu mesma era um
segredo enorme. Uma grande parte de mim, minha patologia, era um
segredo enorme. O que mostrava para o mundo era uma garotinha negra
de Central Falls que se esforçava para conquistar muitas coisas. E
eu era essa garotinha.
Quando decidi que o teatro era o que
eu queria, mergulhei na atuação. Acordei um dia e falei “Só vai,
Viola”. Fiz testes e consegui dois papéis na Main Stage
Productions: Hot L Baltimore, de Lanford Wilson, e Romeu
e Julieta. Eu era a prostituta April em Hot L e a babá em
Romeu e Julieta. Por minha atuação como April, fui indicada
para o Irene Ryan, o maior prêmio de atuação da faculdade. Também
criei um espetáculo que apresentei durante anos. Fazia todos os 17
personagens. Todos os personagens desde Celie de A cor púrpura,
passando por Pilatos em A canção de Salomão, de Toni
Morrison, até Joana d’Arc. Cheguei a apresentar um número de
improvisação em que criava uma peça cômica baseada em palavras
que a plateia me dizia espontaneamente.
O espetáculo que apresentei sozinha
foi meu projeto de conclusão de curso no último ano, e o propósito
era mostrar que eu era versátil, que podia me transformar tanto
quanto meus colegas brancos. Na época, senti que o espetáculo era
um verdadeiro acontecimento para me mostrar ao mundo. Mas, pensando
agora, o objetivo era uma merda. Como assim, você cria um espetáculo
para provar que tem valor?
Havia uma barganha, um fator de
desespero atrelado. Permita-me provar que tenho talentoem vez de
apenas ser eu mesma. Esqueça tudo sobre aquela garota negra que
entrou na sala para fazer o teste. Deixe-me usar meu treinamento e
técnica para fazê-lo “esquecer” que sou negra. O fardo
desse obstáculo era muito mais pesado do que aquele carregado pelos
meus colegas brancos. Alunos brancos só tinham que aparecer e atuar
bem. Nenhuma transformação era necessária para fazer os outros
acreditarem que aquela pessoa de Rhode Island podia interpretar um
russo em uma peça de um autor russo. Eles apenas tinham que ser
brancos. Esse obstáculo era o tabu gritante e muitas vezes presente
nos diversos cômodos em que entrei durante minha vida.
A Rhode Island College era conhecida
por suas excelentes produções musicais, mas nunca participei de
nada disso. Na verdade, se perguntados, muitos dos estudantes de
teatro da época teriam poucas lembranças de mim. Encontrei mentores
em Bill Hutchinson, Elaine Perry e David Burr. Em geral, participava
de projetos da Black Box Productions, do Readers Theatre e do Summer
Theatre fora do campus.
Uma implicância que tenho como
estudante de teatro nos anos 1980 é esta: o teatro acadêmico
deveria ser apenas isso, acadêmico. A faculdade não deveria
funcionar como a Broadway ou o teatro regional cujo principal
objetivo é lucrar. O propósito do teatro acadêmico é treinar e
preparar o ator-estudante. O propósito é dar a ele ferramentas para
trabalhar em nível profissional. É para isso que pagamos
mensalidade. Havia e há estudantes de teatro que nunca participaram
de uma grande produção teatral. Como aprender sem a prática?
Me graduei depois de cinco anos porque
levei muito tempo para escolher meu curso. Tive que puxar outras
disciplinas para recuperar o tempo perdido. Estava no campus o tempo
todo.
No meu último ano, usei o intercâmbio
nacional para ir à California Polytechnic University, em Pomona. Fui
porque queria sair de Rhode Island, me afastar do inverno frio.
Queria um cenário diferente. A maior surpresa da minha vida foi que,
naquele único semestre, floresci. Atuei em Mrs. Warren’s
Profession, uma peça de George Bernard Shaw. Fiz parte de um grupo
de improvisação. Fiz uma aula para falar em público que mudou a
minha vida. Fui muito bem academicamente e fiz amigos incríveis. Foi
a primeira vez que fiz entrelace no cabelo, o que foi muito
importante para mim na época. Naqueles tempos, eu me sentia bonita;
muito bonita. Mantive o bendito entrelace até que a linha da costura
ficasse pendurada no ombro.
Eu amava o programa de teatro da Cal
Poly. Me encaixava perfeitamente entre os geeks do teatro. Tinha uma
ótima colega de quarto, Eva Rajna, uma mulher judia alta e
maravilhosa da Hungria, cujo pai tinha uma padaria em Sunnyvale,
Califórnia. Era uma família muito agradável. Ele lhe enviava
caixas de pães, que nós devorávamos. Na época, eu conseguia comer
quantidades enormes de comida.
Fora do teatro, eu ainda era
extremamente tímida, deslocada e uma introvertida meio desengonçada.
Evitava conversas, evitava encontros românticos, ainda não tinha
namorado nem transado. Tive que me esforçar um bocado para confiar
nas pessoas, me abrir para elas. Por conta disso, meu grupo era
sempre pequeno.
Voltei renovada para a Rhode Island
College para cursar o último semestre. Viajar quase cinco mil
quilômetros e me jogar bem na boca do inferno que era a Califórnia
me obrigou a me esforçar para sobreviver. Entrei no rol dos melhores
alunos pela quarta vez.
Um mês antes da formatura, fiz uma
audição para o programa de pós-graduação para estudantes de
teatro chamado de audições Urta (University Resident Theatre
Association). Mesmo com esse título, ninguém conseguiu trabalho nos
teatros locais após aquelas audições. É mais um exemplo da
brutalidade e um aspecto nebuloso da profissão. No entanto, algumas
faculdades me cortejaram para seus programas de estudos teatrais. De
novo, eu era um caos contraditório. Eu era, por um lado, valente,
corajosa, capaz de ser independente e me manter sozinha. E, ao mesmo
tempo, tinha conflitos emocionais, não estava confortável com a
minha autenticidade, na minha própria pele.
Como a Viola corajosa, valente e
independente, peguei o trem para minha audição em Nova York sem
qualquer instrução ou pesquisa prévia. Só fui e participei da
audição, e foi ótimo. Meu nervosismo não foi um problema, pois
pude usá-lo como combustível para apresentar meus monólogos, que
eram de Celie em A cor púrpura e Martine de As eruditas,
de Molière.
Era o monólogo de Celie que sempre me
abria as portas. Mais tarde, este monólogo me fez entrar na
Juilliard e em várias competições do Readers Theatre, na Nova
Inglaterra. Para mim, pareceu conveniente o fato de Celie ser tão
incompleta, não totalmente formada. Se não fosse pelo amor da irmã
e de Shug Avery, ela nunca teria enxergado o próprio valor.
Quando estava no palco, eu podia
absorver os aplausos, as lágrimas e as palavras da plateia dizendo
que “ficaram tão emocionados” e “nunca viram uma apresentação
como aquela”. Ofereciam-me uma espécie de amor-próprio externo
temporário. Mas isso logo passava, porque amor-próprio externo, por
definição, não é amor-próprio. Então eu logo voltava ao mundo
normal onde me sentia esquisita. Conseguia lidar com a minha
peculiaridade, dor e timidez quando podia colocar tudo em um
personagem. Era aceita de uma maneira que me fazia sentir ainda mais
esquisita e não aceita na vida real.
Eu me graduei com um diploma em teatro
em 1988. Toda a minha família foi para a formatura na Rhode Island
College — minhas quatro irmãs e meu irmão, meus pais e até a
minha avó, Mozell Logan, que tinha viajado da Carolina do Sul. Eles
se sentaram nos bancos e gritaram como banshees* quando recebi
meu diploma. Minha avó ficou dizendo: “Estou tão orgulhosa de
você, querida. A vovó te ama tanto.”
Ela era pequena e retinta. Lembro de
pensar: Por que a estou encarando tanto? Algo nela me atraía
e ficou tatuado em minha memória. Era sua voz. Profunda, cristalina,
melodiosa. Eu queria congelar aquele momento na minha memória. Era a
sua voz que se destacava para mim. Ela era dona de uma voz que a
maioria dos atores mataria para ter. Eles gastavam milhares de
dólares para alcançá-la. Era régia. Era dominante. Fiquei
surpresa. Soava exatamente como… EU!
* Banshee é o nome atribuído a fadas na mitologia celta, principalmente na Irlanda. Esse ente fantástico representaria o poder que a voz tem no ser humano, já que geralmente as banshees podiam apenas ser ouvidas e muito raramente vistas. Dentro da mitologia irlandesa, elas são seres cujos gritos anunciam a morte. [N. da E.]
Viola Davis, in Em busca de mim

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