sábado, 6 de dezembro de 2025

Capítulo 12 — Decolando



Se você quer me conhecer de verdade, não me pergunte onde moro, o que gosto de comer ou como prefiro usar meu cabelo, e sim qual é a minha meta de vida, e o que acho que me impede de viver plenamente em prol dessa meta.
THOMAS MERTON

Em determinado momento, acabei recebendo uma bolsa integral para a faculdade com a bolsa de estudos do Preparatory Enrollment Program. O PEP, como chamamos, era um programa complementar ao Upward Bound. Comecei em um local já conhecido, a Rhode Island College, morando no mesmo dormitório feminino onde tinha passado os verões no ensino médio e visitado minha irmã Deloris no ano escolar — o Browne Hall. Fui para a faculdade aos 17 anos e, como muitos jovens, não era madura, mas com certeza pensava que era.
Estava empolgada para sair de casa. Trabalhei por isso e mereci. Quando cheguei, desfiz as malas, me instalei e, em seguida, caí em uma depressão muito, muito profunda, provavelmente a mais profunda pela qual já passei. Desde então, nunca mais tive uma assim. Não com a mesma intensidade. Eu estava deprimida por estar longe da minha irmãzinha Danielle, mas por si só essa separação não dá conta de explicar a minha depressão.
Desde os 14 anos, tinha direcionado todos os meus esforços para a atuação, para me tornar uma artista. Quando me vi na faculdade, ainda não me sentia livre para fazer aquilo que eu amava. Minha mente era como uma estação na qual dois trens estavam partindo ao mesmo tempo. Um deles era minha carreira acadêmica; estava nos trilhos me formar no ensino médio, entrar na faculdade, obter meu diploma de bacharel em Artes e me tornar uma artista. Mas o outro trem deixando a estação voltava para o local do trauma de onde eu saíra, um local onde fui ferida, onde não acreditava em mim mesma, não tinha noção de quem era. Eu não entendia o que era amor-próprio. Nunca sentia que eu era o suficiente.
Fui para a faculdade me perguntando o que muitos artistas perguntam:Como vou ganhar dinheiro? Como vou me sustentar? Quando eu não enxergava um caminho, pensava: Não posso voltar para casa. Não vai dar certo trabalhar como artista. Tenho que ser outra coisa. Atuar é algo que vou fazer no tempo livre. Então fiz várias matérias de inglês, que eu amava, e decidi que seria professora. No entanto, parte de mim deve ter tido outros pensamentos, porque mergulhei em uma enorme tristeza.
A depressão surgiu por desistir do meu sonho.
O Browne Hall, meu dormitório, era todo feminino. Era dividido em vários setores de 12 quartos, cada um com uma cama de solteiro, uma escrivaninha e um armário pequeno. O prédio tinha uma porta da frente e uma nos fundos. Quando alguém chegava à porta da frente, quem quer que estivesse cuidando da recepção chamava a aluna e dizia: “Você tem visita.” Eu estava me adaptando à minha nova vida e, apesar do peso da depressão, me sentia feliz por estar sobrevivendo bem longe de casa. Tinha meu quarto, um lugar para tomar banho, comida, aquecimento.
Uma noite, logo no primeiro ano, recebi uma ligação da minha irmã Anita, que estava chorando.
Estamos na porta dos fundos.
Saí para encontrar Anita em lágrimas e grávida de quase oito meses da minha primeira sobrinha, Brianna. MaMama estava com ela, também chorando, o rosto ensanguentado, ferida. Minha irmãzinha Danielle fedia a urina.
Aquele momento me transportou de volta para o trauma com o qual eu crescera, que havia me catapultado para fora do meu corpo. Meu pai tinha atacado minha mãe outra vez, e elas tiveram que sair de casa às pressas. Então dirigiram até a Rhode Island College no carro velho de Anita porque não tinham para onde ir.
Gente, vocês não podem ficar aqui. Não posso deixar ninguém dormir no meu quarto. — Entrei em pânico. Não tinha ideia do que fazer. — Vão me expulsar do dormitório.
Então teremos que voltar para casa — disse Anita. — Ele enlouqueceu. Pode matar a mamãe.
Não conseguia me mexer. De novo, estava paralisada. Mesmo assim, consegui responder:
Não tenho dinheiro. Não sei o que fazer.
MaMama chorava, aterrorizada.
Por que não deixa Danielle ficar aqui esta noite?
Danielle também chorava. Foi horrível. Eu a levei para dentro. Mal tinha dinheiro para a lavanderia do dormitório, mas recebi minha irmã mesmo assim, tentei lavar as roupas dela, deixei que tomasse um banho. Minhas melhores intenções não se equiparavam aos meus recursos. Ela dormiu comigo na minha cama de solteiro; ela em uma ponta e eu na outra. Meu dinheiro mal dava para as refeições do fim de semana, quando o refeitório estava fechado, mas de alguma forma a alimentei. Era tudo o que eu podia fazer. Estava tentando encontrar meu caminho, me estabelecer e ainda salvar minha família.
Era como tentar salvar outra pessoa quando eu mesma estava me afogando. Um dos meus maiores arrependimentos é o trauma que ­Danielle teve que passar, e minha falta de habilidade para fazer algo além da cura temporária daquela noite. Hoje, com uma conta bancária gorda, recursos, queria poder voltar àquela época. Se eu pudesse, viajaria no tempo e afastaria minha irmã de tudo, bem naquela ocasião.
Ela me ligava pelo menos 15 vezes por dia. Minha colega de dormitório dizia: “Viola! É a sua irmãzinha.” Ela quase sempre estava aos prantos, dizendo: “Venha me buscar, Vahlee.” Eu sempre tinha que dizer: “Danielle, não posso ir. Estou muito longe.” Ela começava a chorar ou eu ouvia os ataques de raiva embriagados do meu pai ao fundo, enquanto ela chorava e dizia: “Por favor, venha me buscar.”
Às vezes, principalmente nos fins de semana, Deloris e eu íamos para casa ficar com ela, juntávamos dinheiro para comprar sorvete Heavenly Hash, salada grega e macarrão concha com molho de tomate Prego. ­Danielle ficava tão feliz! Ela corria para nós como Celie em A cor púrpura ao ver a irmã, Nettie. Aquela reação de quando sentimos tanto a falta de alguém e, enfim, a pessoa está bem diante de você. Nós comíamos e víamos A ilha da fantasia e O barco do amor.
Tattoo, personagem interpretado por Hervé Villechaize, corria para um farol quando via o avião indo em direção à ilha e fazia soar o sino, gritando: “O avião! O avião!” Danielle amava tanto essa parte que dizia, entre garfadas de macarrão: “Ele vai dizer ‘O avião! O avião!’.” Nós a provocávamos: “Ele não vai, não. Quem te falou isso?” E ela rebatia: “Presta atenção, você vai ver.” Ele dizia as palavras e nós ficávamos boquiabertas. Olhávamos para Danielle com espanto, e ela cruzava os braços como se dissesse “Eu avisei”. Esse era o nosso ritual. Íamos para casa porque amávamos muito nossa irmãzinha, e ela nos amava também. Então, na segunda-feira, voltávamos para a faculdade.
Minha irmã mais velha Dianne obteve toda premiação imaginável em sua jornada: a Sociedade Nacional de Honras, a Sociedade de Honra de Rhode Island, a All-State Basketball. Além disso, era uma grande atriz e cantora. Conseguia fazer de tudo. Mulheres negras bem-sucedidas quase normalizam o excesso de conquistas. Dianne definitivamente era assim.
Ela começou a atuar na Rhode Island College antes de pedir transferência para a Howard University. Dianne ainda queria se tornar atriz, até descobrir o quanto era difícil. “Quero ter plano de saúde”, disse ela.
Embora meus pais não tenham ido para a faculdade — não terminaram o ensino médio —, Dianne havia nos influenciado a pensar que Nós. Vamos. Para. A. Faculdade. Ela despertou em nós a noção de que, se não tivéssemos diploma, se não encontrássemos uma profissão, se não tivéssemos uma meta, se não tivéssemos atitude, seríamos como nossos pais. Senti que, se eu não fosse para a faculdade, se não conseguisse meu diploma, se não fosse excelente, a realidade dos meus pais seria a minha. Não havia meio-termo. Ou você conseguia ou fracassava.
Eu os amava muito, mas não queria levar uma vida de pobreza, alcoo­lismo e violência. Achava que só tinha duas opções: ser bem-sucedida ou afundar de vez. Não havia meio-termo. Eu não fazia ideia de que tinha as ferramentas para me recuperar caso falhasse. Não fazia ideia de que haveria momentos difíceis seguidos de alegria, ou que às vezes as coisas não iriam bem, mas que o fracasso não seria permanente. Esse pensamento emocionalmente saudável não foi passado para mim. Eu só conhecia segredos, omissão, ser bem-sucedida a qualquer custo, ter um excesso de conquistas. Era conseguir ou fracassar. Era nadar ou afundar.
Não sei muito bem como encontrei minha verdade, mas tenho certeza de que outras pessoas que se importavam comigo tiveram muito a ver com isso: os conselheiros no programa Upward Bound e minha irmã Deloris, que perguntava o tempo todo: “Por que você não está atuando?” Até que um dia, no meu segundo ano, falei: “Quer saber? Vou tentar.” Foi quando grande parte da depressão passou. Minha cura era a coragem. A coragem de ousar, arriscar errar. Decidi me graduar em teatro e ser atriz.
Fiz muitos amigos na faculdade. Minhas colegas de dormitório eram o meu grupo: Jodi, Chris, Jane e principalmente Terri Noya, porque nós duas vínhamos de Central Falls. Noya era portuguesa e, assim como eu, de origem humilde. Cheril, a assistente de residência, tinha paralisia cerebral e precisava de todo um equipamento para se locomover. Ela era maravilhosamente durona.
Elas eram um grupo heterogêneo de garotas com visão de futuro, enviadas por Deus para me proteger. Sentia que todas ali acreditavam em mim. Nós nos amávamos. Nós nos apoiamos na morte de pais, em casamentos, no nascimento de filhos. Uma das nossas colegas de dormitório engravidou quando ainda estávamos estudando e teve que desistir da faculdade, mas nós a apoiamos.
Tivemos bons momentos juntas, mas aquele primeiro ano foi uma transição difícil. Bebi três vezes no primeiro ano, e fui pega todas as vezes. Saía com amigos e bebia, mas não era a minha praia e eu deveria ter respeitado isso. É como nossos pais diziam quando jovens: “Cabeça dura, bunda mole.” Isso significa que é necessário aprender algumas lições da maneira mais difícil.
O momento da minha vida em que fiquei mais bêbada foi durante a faculdade. Algumas das minhas colegas de quarto e eu fomos para o lado leste perto da Universidade Brown e tomamos shots de tequila e bebemos cerveja na Spats. Quando me dei conta, estava saindo de lá cambaleando. Voltei para o dormitório, vomitei e tive ressaca por uma semana. Não sei qual era a minha praia, mas não era beber, e com certeza não era namorar nem transar. Os momentos de diversão para mim eram quando as garotas do dormitório se sentavam na sala comum e conversavam… sobre tudo.
Tive uma experiência interessante na faculdade, onde não me encaixei nem com as pessoas brancas, nem com as negras. Harambee era a Aliança dos Estudantes Negros. Embora conhecesse muitas pessoas negras, tivesse ido à Feira de Moda Negra e tudo mais, não me encaixava com eles por ser de Central Falls e eles de South Providence, Providence ou Middletown, regiões onde havia uma população negra maior. Era como se eu não tivesse minha carteirinha de negra.
Eu era retinta, não usava roupas descoladas e não tinha aquela autoconfiança que chamam de swag. Nadinha. Meu Deus, eu vinha de uma cidade pequena de população predominantemente branca e que agora ainda tinha mais pessoas latinas. Eu sequer sabia que precisava ter um comportamento específico para sentir que pertencia à minha raça. Mesmo assim, minha “carteirinha” era negra demais para me juntar às pessoas brancas. Fiquei perdida naquele limbo.
Foi uma batalha seguir com a faculdade, mesmo depois de sobreviver à depressão do primeiro ano. Estava sozinha. Havia um programa de refeições durante a semana, mas não nos fins de semana. Aí estava: a questão da comida de novo. Havia algo sobre a incapacidade de conseguir comida que me fazia regredir para a minha infância ferrada. Sentia como se estivesse procurando comida desde a tarde de sexta até a segunda de manhã.
Imagine como é não contar com um plano alimentar nos fins de semana? Pior, não ter uma família que possa enviar comida para você ou uma casa para usar a cozinha ou a máquina de lavar. Imagine não ter um frigobar em seu dormitório abastecido com comida para os dias em que o refeitório está fechado. O resultado: as mazelas da fome e da pobreza.
Para combater isso, sempre tive muitos empregos. Trabalhei como assistente de residência e conselheira no programa de aconselhamento da faculdade durante o verão. Sempre trabalhei. No último ano, tive quatro empregos enquanto estudava em tempo integral. Trabalhava na biblioteca da faculdade. Trabalhava na recepção da Rhode Island College. Continuei trabalhando na Brooks Drugs, em Central Falls. E tinha outro emprego no campus.
Trabalhar na Brooks Drugs me fazia ter que sair do campus, pegar um ônibus e andar até Central Falls. Imagine precisar trabalhar em tempo integral, mas sem ter um carro, pegando, então, três ou quatro conduções numa temperatura abaixo de zero para conseguir ganhar uma merreca, suficiente apenas para comer apenas nos fins de semana. Em seguida, você precisa pegar três ou quatro ônibus de volta para o dormitório para chegar às aulas da segunda de manhã. Precisa se formar; precisa estudar. A sensação é de estar em um moinho irrefreável.
Até hoje não gosto de pegar ônibus. Morei em Nova York por 13 anos e pegava o trem o tempo todo, nunca o ônibus. Durante a faculdade, tinha que andar no frio congelante por pelo menos dois quilômetros e meio até o ponto de ônibus que ficava fora do campus. Era isso ou ter que esperar o ônibus que passava na Rhode Island College, e os horários dele não eram confiáveis. Na maior parte do tempo, eu acabava caminhando mesmo até o ponto de ônibus no frio congelante.
A situação era especialmente atroz quando estava frio, porque eu precisava passar pela entrada dos fundos da faculdade, pelas quadras esportivas até a Smith Avenue, onde havia pouca iluminação, e esperar o ônibus que me levava até o centro de Providence. Então esperava de novo, em um ponto maior, o ônibus que me levaria do centro de Providence até o centro de Pawtucket. Geralmente não tinha dinheiro para a última parte do trajeto ou, quando tinha, perdia o ônibus de Pawtucket para Central Falls porque, como eu disse, o horário não era confiável. Eu andava uns dois ou três quilômetros do centro de Pawtucket até a Brooks Drugs, em Central Falls. Depois do trabalho, ia para o apartamento dos meus pais, dormia no chão e voltava para a faculdade na manhã seguinte ou pegava o turno de alguém.
Trabalhar duro é ótimo quando se é motivado por paixão, amor e entusiasmo. Mas trabalhar duro motivado por privação não é nada agradável.
Muito da faculdade, para mim, eram risos e conexão com as colegas de dormitório e outras amizades que comecei a fazer, tudo misturado ao isolamento e à maldita dor. Eu ainda sentia que precisava esconder minhas verdades mais profundas para me encaixar. Recriei a mim mesma como essa “outra” pessoa. Eu me imaginei como uma geek do teatro fabulosa de Central Falls, que conquistava muitas coisas e era engraçada e excêntrica. De vez em quando, me sentava com as alunas negras no refeitório, mas na maior parte do tempo eu me sentava com o meu grupo, minhas colegas de dormitório, ou sozinha.
Na época, a Rhode Island College tinha menos de 1% de “outros”. “Outros” se referia a alunos de outros grupos étnico-raciais: latinos, asiáticos, negros, descendentes de povos do Oriente Médio. Os demais eram brancos. Havia algo em torno de nove mil alunos. Eu era uma garota perdida tentando me encontrar.
Não ajudava o fato de a faculdade ter fraternidades e repúblicas formadas por arruaceiros brancos. A Kappa Epsilon era uma delas. Digo isso porque alguns de seus membros eram abertamente racistas. Muitos anos depois do meu período na faculdade, li que alguns pesquisadores associam a fundação da Ku Klux Klan à fraternidade Kappa Alpha. Pensando agora, alguns dos membros da Kappa Epsilon na Rhode Island College devem ter sido próximos do grupo supremacista, visto que a narrativa de seus atos explicitamente racistas era perpetuada pelos membros. Acho que eles acreditavam que as pessoas brancas entravam na faculdade por mérito, enquanto estudantes negros e multirraciais eram meramente beneficiários de ações afirmativas.
Não havia entendimento cognitivo da real complexidade da questão de raça na faculdade ou em seu processo de admissão. Como se destacar quando você é do Sudeste Asiático, muitíssimo inteligente, trabalha duro, mas passou dois anos na selva do Camboja, dois anos em um campo de refugiados e viu sua família ser massacrada antes de chegar aos Estados Unidos? Sem o programa de aconselhamento, não haveria nenhum estudante multirracial, porque já começávamos com um enorme déficit. Ainda mais destrutiva era a visão de que não éramos merecedores. Esse é o alicerce sobre o qual foi construído o DNA dos Estados Unidos, e ao unir a isso desafios pessoais como pobreza, violência, trauma e vulnerabilidade, pode se tornar uma sentença de morte. Anos mais tarde, Frank Sanchez foi nomeado presidente da instituição e transformou completamente o censo demográfico da faculdade.
Durante meu tempo na Rhode Island College me concentrei sobretudo nas aulas de teatro: estudo de personagem, voz e articulação, aulas criativas, crítica e história do teatro — todos os aspectos dessa arte. Nas outras aulas acadêmicas, nem tanto. Eu sentira um desconforto enorme até decidir que a atuação era o caminho que eu queria seguir. Era o que me fazia feliz. O que me trazia alegria. Mas não era possível trabalhar como atriz em Rhode Island. Não dava. Como conseguir um trabalho? Como conseguir um teste ou um agente? Estava perto de começar minha vida profissional e precisava descobrir.
A área da vida que é paralela ao trabalho, ao estudo, é o lar. Seu centro emocional está enraizado ali. Para mim, o resultado foi estar sempre atrasada para a aula, não estar tão preparada quanto poderia. Estava sempre correndo atrás, sempre um pouquinho desorganizada. Faltavam-me habilidades de organização até no meu quarto. Não sabia como me vestir nem como me apresentar. Eu era considerada autêntica porque não sabia o que ou quem ser. Mas ser autêntica e ser transparente são duas coisas diferentes. Ser autêntica é usar sapatos de 15 dólares e ter orgulho de usá-los. Ser transparente é dizer: “Estou sempre ansiosa. Nunca sinto como se me encaixasse. Preciso de ajuda.” Eu não era transparente.
Nunca tinha a sensação de estar em meu corpo. As pessoas provavelmente sentiam que eu estava, porque eu nunca falava sobre o alcoolismo do meu pai ou sobre crescer pobre e passando fome. Guardava segredos enormes. Sentia que eu mesma era um segredo enorme. Uma grande parte de mim, minha patologia, era um segredo enorme. O que mostrava para o mundo era uma garotinha negra de Central Falls que se esforçava para conquistar muitas coisas. E eu era essa garotinha.
Quando decidi que o teatro era o que eu queria, mergulhei na atuação. Acordei um dia e falei “Só vai, Viola”. Fiz testes e consegui dois papéis na Main Stage Productions: Hot L Baltimore, de Lanford Wilson, e ­Romeu e Julieta. Eu era a prostituta April em Hot L e a babá em Romeu e Julieta. Por minha atuação como April, fui indicada para o Irene Ryan, o maior prêmio de atuação da faculdade. Também criei um espetáculo que apresentei durante anos. Fazia todos os 17 personagens. Todos os personagens desde Celie de A cor púrpura, passando por Pilatos em A canção de Salomão, de Toni Morrison, até Joana d’Arc. Cheguei a apresentar um número de improvisação em que criava uma peça cômica baseada em palavras que a plateia me dizia espontaneamente.
O espetáculo que apresentei sozinha foi meu projeto de conclusão de curso no último ano, e o propósito era mostrar que eu era versátil, que podia me transformar tanto quanto meus colegas brancos. Na época, senti que o espetáculo era um verdadeiro acontecimento para me mostrar ao mundo. Mas, pensando agora, o objetivo era uma merda. Como assim, você cria um espetáculo para provar que tem valor?
Havia uma barganha, um fator de desespero atrelado. Permita-me provar que tenho talentoem vez de apenas ser eu mesma. Esqueça tudo sobre aquela garota negra que entrou na sala para fazer o teste. Deixe-me usar meu treinamento e técnica para fazê-lo “esquecer” que sou negra. O fardo desse obstáculo era muito mais pesado do que aquele carregado pelos meus colegas brancos. Alunos brancos só tinham que aparecer e atuar bem. Nenhuma transformação era necessária para fazer os outros acreditarem que aquela pessoa de Rhode Island podia interpretar um russo em uma peça de um autor russo. Eles apenas tinham que ser brancos. Esse obstáculo era o tabu gritante e muitas vezes presente nos diversos cômodos em que entrei durante minha vida.
A Rhode Island College era conhecida por suas excelentes produções musicais, mas nunca participei de nada disso. Na verdade, se perguntados, muitos dos estudantes de teatro da época teriam poucas lembranças de mim. Encontrei mentores em Bill Hutchinson, Elaine Perry e David Burr. Em geral, participava de projetos da Black Box Productions, do Readers Theatre e do Summer Theatre fora do campus.
Uma implicância que tenho como estudante de teatro nos anos 1980 é esta: o teatro acadêmico deveria ser apenas isso, acadêmico. A faculdade não deveria funcionar como a Broadway ou o teatro regional cujo principal objetivo é lucrar. O propósito do teatro acadêmico é treinar e preparar o ator-estudante. O propósito é dar a ele ferramentas para trabalhar em nível profissional. É para isso que pagamos mensalidade. Havia e há estudantes de teatro que nunca participaram de uma grande produção teatral. Como aprender sem a prática?
Me graduei depois de cinco anos porque levei muito tempo para escolher meu curso. Tive que puxar outras disciplinas para recuperar o tempo perdido. Estava no campus o tempo todo.
No meu último ano, usei o intercâmbio nacional para ir à California Polytechnic University, em Pomona. Fui porque queria sair de Rhode Island, me afastar do inverno frio. Queria um cenário diferente. A maior surpresa da minha vida foi que, naquele único semestre, floresci. Atuei em Mrs. Warren’s Profession, uma peça de George Bernard Shaw. Fiz parte de um grupo de improvisação. Fiz uma aula para falar em público que mudou a minha vida. Fui muito bem academicamente e fiz amigos incríveis. Foi a primeira vez que fiz entrelace no cabelo, o que foi muito importante para mim na época. Naqueles tempos, eu me sentia bonita; muito bonita. Mantive o bendito entrelace até que a linha da costura ficasse pendurada no ombro.
Eu amava o programa de teatro da Cal Poly. Me encaixava perfeitamente entre os geeks do teatro. Tinha uma ótima colega de quarto, Eva Rajna, uma mulher judia alta e maravilhosa da Hungria, cujo pai tinha uma padaria em Sunnyvale, Califórnia. Era uma família muito agradável. Ele lhe enviava caixas de pães, que nós devorávamos. Na época, eu conseguia comer quantidades enormes de comida.
Fora do teatro, eu ainda era extremamente tímida, deslocada e uma introvertida meio desengonçada. Evitava conversas, evitava encontros românticos, ainda não tinha namorado nem transado. Tive que me esforçar um bocado para confiar nas pessoas, me abrir para elas. Por conta disso, meu grupo era sempre pequeno.
Voltei renovada para a Rhode Island College para cursar o último semestre. Viajar quase cinco mil quilômetros e me jogar bem na boca do inferno que era a Califórnia me obrigou a me esforçar para sobreviver. Entrei no rol dos melhores alunos pela quarta vez.
Um mês antes da formatura, fiz uma audição para o programa de pós-graduação para estudantes de teatro chamado de audições Urta (University Resident Theatre Association). Mesmo com esse título, ninguém conseguiu trabalho nos teatros locais após aquelas audições. É mais um exemplo da brutalidade e um aspecto nebuloso da profissão. No entanto, algumas faculdades me cortejaram para seus programas de estudos teatrais. De novo, eu era um caos contraditório. Eu era, por um lado, valente, corajosa, capaz de ser independente e me manter sozinha. E, ao mesmo tempo, tinha conflitos emocionais, não estava confortável com a minha autenticidade, na minha própria pele.
Como a Viola corajosa, valente e independente, peguei o trem para minha audição em Nova York sem qualquer instrução ou pesquisa prévia. Só fui e participei da audição, e foi ótimo. Meu nervosismo não foi um problema, pois pude usá-lo como combustível para apresentar meus monólogos, que eram de Celie em A cor púrpura e Martine de As eruditas, de Molière.
Era o monólogo de Celie que sempre me abria as portas. Mais tarde, este monólogo me fez entrar na Juilliard e em várias competições do ­Readers Theatre, na Nova Inglaterra. Para mim, pareceu conveniente o fato de Celie ser tão incompleta, não totalmente formada. Se não fosse pelo amor da irmã e de Shug Avery, ela nunca teria enxergado o próprio valor.
Quando estava no palco, eu podia absorver os aplausos, as lágrimas e as palavras da plateia dizendo que “ficaram tão emocionados” e “nunca viram uma apresentação como aquela”. Ofereciam-me uma espécie de amor-próprio externo temporário. Mas isso logo passava, porque amor-próprio externo, por definição, não é amor-próprio. Então eu logo voltava ao mundo normal onde me sentia esquisita. Conseguia lidar com a minha peculiaridade, dor e timidez quando podia colocar tudo em um personagem. Era aceita de uma maneira que me fazia sentir ainda mais esquisita e não aceita na vida real.
Eu me graduei com um diploma em teatro em 1988. Toda a minha família foi para a formatura na Rhode Island College — minhas quatro irmãs e meu irmão, meus pais e até a minha avó, Mozell Logan, que tinha viajado da Carolina do Sul. Eles se sentaram nos bancos e gritaram como banshees* quando recebi meu diploma. Minha avó ficou dizendo: “Estou tão orgulhosa de você, querida. A vovó te ama tanto.”
Ela era pequena e retinta. Lembro de pensar: Por que a estou encarando tanto? Algo nela me atraía e ficou tatuado em minha memória. Era sua voz. Profunda, cristalina, melodiosa. Eu queria congelar aquele momento na minha memória. Era a sua voz que se destacava para mim. Ela era dona de uma voz que a maioria dos atores mataria para ter. Eles gastavam milhares de dólares para alcançá-la. Era régia. Era dominante. Fiquei surpresa. Soava exatamente como… EU!

* Banshee é o nome atribuído a fadas na mitologia celta, principalmente na Irlanda. Esse ente fantástico representaria o poder que a voz tem no ser humano, já que geralmente as banshees podiam apenas ser ouvidas e muito raramente vistas. Dentro da mitologia irlandesa, elas são seres cujos gritos anunciam a morte. [N. da E.]

Viola Davis, in Em busca de mim

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