Meu primeiro contato com a bola foi no
saco. Dito assim, parece um fato biologicamente normal. E é mesmo,
desde que o atingido pela bolada consiga recuperar a respiração e,
claro, o saco para a prática do nobre esporte bretão.
A dor dessa primeira experiência
futebolística despertou um traço ibero-masô, geneticamente
explicável, em meu excelente caráter: como um espermatozóide
tresloucado, fui impelido em direção cruzmaltina. Pois é, sou
Vasco desde garotinho. Meu velho diz que um vascaíno sincero tem
miolo mole ou é opaco feito uma calçada, sem nenhum trocadilho. Não
me deterei no meu amor perverso pelo antigo Expresso da Vitória. O
Japiassu, em memorável artigo pra revista Placar, escreveu uma frase
definitiva sobre o Vasco: o time foi dirigido por um delegado quando
deveriam chamar um padre. Gol!
Futebol é loucura. Em 1958, minha
família estava empilhada em volta do rádio, um daqueles antigões.
Todos, menos meu avô Alfredo. Ia começar a final Brasil X Suécia.
Neguinho roía a unha, fumava, fazia promessa. Meu avô Alfredo
balançava a cabeça, pensativo. Homem cordialíssimo, extremamente
equilibrado, não conseguia entender aquela fissura. Fazia piadas pra
descontrair a torcida pinei:
– Dona Nadyr com aquilo tudo dando
sopa e esses caras fanatizados por marmanjos de calção...
A Suécia meteu o primeiro gol.
Meu pacato avô empalideceu, rasgou o
Jornal do Commércio ao meio, atirou a fruteira bico-de-jaca no
quadrinho “Deus abençoe este lar” e berrou:
– Perder pra corno, jamais! Todo
mundo sabe que sueco é manso e deixa beliscar a mulher dele,
enquanto toma umazinha no cômodo ao lado.
Se Vavá, o Leão da Copa, não
tivesse empatado, eu, com onze anos, teria aprendido tudo sobre a
vida sexual dos suecos. Quando o jogo terminou, 5X2 pra nós, tentei
ampliar minha cultura sobre deixar beliscar e outros temas
fascinantes, mas vovô Alfredo foi categórico:
– Eles perderam de 5, Aldir. Logo,
devemos concluir que são excelentes anfitriões, gente culta e
civilizada. Não se fala mais no assunto. Brasil!!!
Essa capacidade de transtornar cucas
certinhas – acho que diríamos, hoje, esse dom de levar caretas a
transgredir – é que me faz permanecer um apaixonado por futebol,
apesar de toda corrupção, resultados decepcionantes, decadência da
técnica, desaparecimento do virtuose (a ascensão do açougueiro),
violência, violência, violência e a dor, suavizada pela recordação
dos dribles imortais, de não ver outro Garrincha. Mas hei de torcer!
Hei de torcer porque conheci um bebum
que apelidou a própria amásia de Paulo Isidoro: “Ela dormia na
ponta, mas embolava pelo meio”. Hei de torcer porque o
ponta-esquerda do “Artistas da Rua Futebol e Regatas” era bicha e
a escalação do ataque ficou: Iapetec, Sorvete, Lindauro,
Gogó-de-Ouro e Viveca Lindfors. Hei de torcer porque também são
vascaínos: Ceceu Rico, Paulo Amarelo, Guinga, Martinho da Vila, Nei
Lopes, Paulinho da Viola, Edu Lobo e Sérgio Cabral. Hei de torcer
porque quando o Amarildo enfiou aquele gol na Espanha, em 66, tia
Nicinha jogou o rosário pro alto, foi pro piano e tocou o Hino à
Bandeira. Hei de torcer porque no gol de empate do Clodoaldo, contra
o Uruguai, em 70, meu tio Placidino, um cientista de renome
internacional em aerofotogrametria, atirou uma gaiola de periquito no
teto de um aero-willys aos gritos de “conheceu, Obdúlio?”. Hei
de torcer porque minha filha Mariana, por causa do cretino do Paulo
Rossi, chorou muito ao ver os garotos apagando os desenhos dos nossos
craques em muros e paredes, num ato impressionante de vingança
coletiva. Hei de torcer porque não resta outra alternativa. Torcer
dá samba.
A paixão. Era época do rádio Spica.
Todo mundo tinha um. Cada transeunte zumbia como um besouro. De
madrugada, tocaram a campainha da velha casa da Rua dos Artistas. 0
Lindolfo havia morrido. Vó Noêmia fez uns trinta sanduíches de
carne assada, os homens encheram vidros vazios de eparema com traçado
e partimos pro velório. Na saída, alguém lembrou:
– Cadê o rádio? Hoje tem Vasco x
Botafogo.
Mas, aparentemente, ninguém se
atreveu a levar. A mulher do Lindolfo, Dona Marcelina, era tão séria
que já estava de luto muitos dias antes da morte do marido.
Amanheceu um domingo de comemorar com batida de maracujá.
Naquele tempo, o jogo começava às
três e quinze da tarde. Os enterros saíam por volta das cinco.
No Caju, a viúva parecia de granito.
Luto fechado, um buço que deve ter influenciado o Samey, cabelos
cinzentos cobertos por um lenço negro, leque também negro fechado
nas mãos em garra, uma viúva de Lorca.
Waldir Iapetec, com seu faro
inigualável, descobriu um buteco nas imediações com rabada e
cervejotas superlampoticamente geladas. Mandaram arrebite. Mais ou
menos na hora da peleja começar, Ceceu Rico, cheio de goró, lavando
a cabeça com azeite Galo e botando aristolino na maionese, sacou um
radinho do bolso das acumuladas. O Iapetec riu:
– Sabia que tu não ia aguentar.
– Tenho minha reputação. Não
quero que digam: Ceceu Rico deu balda com medo de viúva.
O pessoal ficou ouvindo o jogo no tal
do buteco. De vez em quando, um batedor partia pro front do velório.
E tome chá-de-macaco. O clima de jogo aumentava a vontade de
biritar. Um zero a zero cheio de lances dramáticos. Faltando uns
quinze minutos pro fim do segundo tempo, pressão do Vasco, meu avô
Aguiar apareceu, deu um tapa de bagaceira nos beiços, e avisou, com
toda cortesia de seus quase dois metros de cutucro nascido em Póvoa
do Varzim.
– Vamo pagar a conta que o palhaço
de saias chegou pra encomendar o corpo. Ceceu, enfia o rádio na
ombreira do paletó e finge que tá com torcicolo, meningite, um
troço desses.
Provavelmente sentindo a exuberância
dos bafos, a viúva lançou a todos um olhar assassino. O padre, com
a batina salpicada de proverbial caspa, começou a arenga:
– Nosso irmão Lindolfo já não
está no estádio, digo, no mundo. Encontra-se na Glória!
O Iapetec sussurrou:
– Provavelmente na taberna. Ele
adorava.
Olhar rambo-rocky da viúva em nossa
direção. Vários gulps e pigarros.
– Bem-aventurados aqueles...
Nesse instante, Ceceu captou no
radinho uma investida vascaína:
– Lá vai o Vasco! Bola pra Walter
Marciano na entrada da área! Driblou o primeiro, driblou o segundo,
vai marcar...
O desgraçado do radinho ficou mudo.
Desesperado, Ceceu catucou os botões pra baixo e pra cima. Nada.
Teria sido a pilha? Ceceu sentou a porrada no spika, método quase
infalível para engenhocas enguiçadas, e uma palavra, altíssima,
como que irradiada pela sublime voz do Todo-Poderoso, elevou-se na
capela:
– PÊNALTI!
Ceceu abaixou de um golpe todo o
volume. Um silêncio aterrador. Possessa, a viúva urrou:
– Contra quem? Pênalti contra quem?
Aumenta, babaca!
À beira de uma de suas famosas crises
de asma, Ceceu estertorou:
– Pênalti contra o Botafogo.
A viúva tava comandando o tradicional
corinho de “casaca, casaca, casaca – saca-saca...”, quando o
padre abandonou o recinto.
Meu avô gritou:
– Hei, seu padre! Volta aqui!
Futebol enlouquece qualquer um! Não foi desrespeito, não.
Sintam a resposta do padreco:
– Aqui, ó! Eu sei que não foi
desrespeito. Foi roubo no duro! Tô farto de ver o Vasco vencer com
gol de pênalti no último minuto. Vão todos pros quintos dos
infernos. Ladrões!
Mas seus protestos foram abafados
pelos gritos de gol e pelo espetacular choro da viúva. De alegria.
Eu falei no começo que não ia mais
entrar em águas vascaínas, não foi? Pois não resisti. Futebol é
isso – incoerência, farsa, delírio. Por essas e outras é que hei
de torcer, hei de torcer até morrer. A torcida brasileira é toda
assim, a começar por mim.
Aldir Blanc, em Brasil passado a sujo

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