sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Até Morrer



Meu primeiro contato com a bola foi no saco. Dito assim, parece um fato biologicamente normal. E é mesmo, desde que o atingido pela bolada consiga recuperar a respiração e, claro, o saco para a prática do nobre esporte bretão.
A dor dessa primeira experiência futebolística despertou um traço ibero-masô, geneticamente explicável, em meu excelente caráter: como um espermatozóide tresloucado, fui impelido em direção cruzmaltina. Pois é, sou Vasco desde garotinho. Meu velho diz que um vascaíno sincero tem miolo mole ou é opaco feito uma calçada, sem nenhum trocadilho. Não me deterei no meu amor perverso pelo antigo Expresso da Vitória. O Japiassu, em memorável artigo pra revista Placar, escreveu uma frase definitiva sobre o Vasco: o time foi dirigido por um delegado quando deveriam chamar um padre. Gol!
Futebol é loucura. Em 1958, minha família estava empilhada em volta do rádio, um daqueles antigões. Todos, menos meu avô Alfredo. Ia começar a final Brasil X Suécia. Neguinho roía a unha, fumava, fazia promessa. Meu avô Alfredo balançava a cabeça, pensativo. Homem cordialíssimo, extremamente equilibrado, não conseguia entender aquela fissura. Fazia piadas pra descontrair a torcida pinei:
Dona Nadyr com aquilo tudo dando sopa e esses caras fanatizados por marmanjos de calção...
A Suécia meteu o primeiro gol.
Meu pacato avô empalideceu, rasgou o Jornal do Commércio ao meio, atirou a fruteira bico-de-jaca no quadrinho “Deus abençoe este lar” e berrou:
Perder pra corno, jamais! Todo mundo sabe que sueco é manso e deixa beliscar a mulher dele, enquanto toma umazinha no cômodo ao lado.
Se Vavá, o Leão da Copa, não tivesse empatado, eu, com onze anos, teria aprendido tudo sobre a vida sexual dos suecos. Quando o jogo terminou, 5X2 pra nós, tentei ampliar minha cultura sobre deixar beliscar e outros temas fascinantes, mas vovô Alfredo foi categórico:
Eles perderam de 5, Aldir. Logo, devemos concluir que são excelentes anfitriões, gente culta e civilizada. Não se fala mais no assunto. Brasil!!!
Essa capacidade de transtornar cucas certinhas – acho que diríamos, hoje, esse dom de levar caretas a transgredir – é que me faz permanecer um apaixonado por futebol, apesar de toda corrupção, resultados decepcionantes, decadência da técnica, desaparecimento do virtuose (a ascensão do açougueiro), violência, violência, violência e a dor, suavizada pela recordação dos dribles imortais, de não ver outro Garrincha. Mas hei de torcer!
Hei de torcer porque conheci um bebum que apelidou a própria amásia de Paulo Isidoro: “Ela dormia na ponta, mas embolava pelo meio”. Hei de torcer porque o ponta-esquerda do “Artistas da Rua Futebol e Regatas” era bicha e a escalação do ataque ficou: Iapetec, Sorvete, Lindauro, Gogó-de-Ouro e Viveca Lindfors. Hei de torcer porque também são vascaínos: Ceceu Rico, Paulo Amarelo, Guinga, Martinho da Vila, Nei Lopes, Paulinho da Viola, Edu Lobo e Sérgio Cabral. Hei de torcer porque quando o Amarildo enfiou aquele gol na Espanha, em 66, tia Nicinha jogou o rosário pro alto, foi pro piano e tocou o Hino à Bandeira. Hei de torcer porque no gol de empate do Clodoaldo, contra o Uruguai, em 70, meu tio Placidino, um cientista de renome internacional em aerofotogrametria, atirou uma gaiola de periquito no teto de um aero-willys aos gritos de “conheceu, Obdúlio?”. Hei de torcer porque minha filha Mariana, por causa do cretino do Paulo Rossi, chorou muito ao ver os garotos apagando os desenhos dos nossos craques em muros e paredes, num ato impressionante de vingança coletiva. Hei de torcer porque não resta outra alternativa. Torcer dá samba.
A paixão. Era época do rádio Spica. Todo mundo tinha um. Cada transeunte zumbia como um besouro. De madrugada, tocaram a campainha da velha casa da Rua dos Artistas. 0 Lindolfo havia morrido. Vó Noêmia fez uns trinta sanduíches de carne assada, os homens encheram vidros vazios de eparema com traçado e partimos pro velório. Na saída, alguém lembrou:
Cadê o rádio? Hoje tem Vasco x Botafogo.
Mas, aparentemente, ninguém se atreveu a levar. A mulher do Lindolfo, Dona Marcelina, era tão séria que já estava de luto muitos dias antes da morte do marido. Amanheceu um domingo de comemorar com batida de maracujá.
Naquele tempo, o jogo começava às três e quinze da tarde. Os enterros saíam por volta das cinco.
No Caju, a viúva parecia de granito. Luto fechado, um buço que deve ter influenciado o Samey, cabelos cinzentos cobertos por um lenço negro, leque também negro fechado nas mãos em garra, uma viúva de Lorca.
Waldir Iapetec, com seu faro inigualável, descobriu um buteco nas imediações com rabada e cervejotas superlampoticamente geladas. Mandaram arrebite. Mais ou menos na hora da peleja começar, Ceceu Rico, cheio de goró, lavando a cabeça com azeite Galo e botando aristolino na maionese, sacou um radinho do bolso das acumuladas. O Iapetec riu:
Sabia que tu não ia aguentar.
Tenho minha reputação. Não quero que digam: Ceceu Rico deu balda com medo de viúva.
O pessoal ficou ouvindo o jogo no tal do buteco. De vez em quando, um batedor partia pro front do velório. E tome chá-de-macaco. O clima de jogo aumentava a vontade de biritar. Um zero a zero cheio de lances dramáticos. Faltando uns quinze minutos pro fim do segundo tempo, pressão do Vasco, meu avô Aguiar apareceu, deu um tapa de bagaceira nos beiços, e avisou, com toda cortesia de seus quase dois metros de cutucro nascido em Póvoa do Varzim.
Vamo pagar a conta que o palhaço de saias chegou pra encomendar o corpo. Ceceu, enfia o rádio na ombreira do paletó e finge que tá com torcicolo, meningite, um troço desses.
Provavelmente sentindo a exuberância dos bafos, a viúva lançou a todos um olhar assassino. O padre, com a batina salpicada de proverbial caspa, começou a arenga:
Nosso irmão Lindolfo já não está no estádio, digo, no mundo. Encontra-se na Glória!
O Iapetec sussurrou:
Provavelmente na taberna. Ele adorava.
Olhar rambo-rocky da viúva em nossa direção. Vários gulps e pigarros.
Bem-aventurados aqueles...
Nesse instante, Ceceu captou no radinho uma investida vascaína:
Lá vai o Vasco! Bola pra Walter Marciano na entrada da área! Driblou o primeiro, driblou o segundo, vai marcar...
O desgraçado do radinho ficou mudo. Desesperado, Ceceu catucou os botões pra baixo e pra cima. Nada. Teria sido a pilha? Ceceu sentou a porrada no spika, método quase infalível para engenhocas enguiçadas, e uma palavra, altíssima, como que irradiada pela sublime voz do Todo-Poderoso, elevou-se na capela:
PÊNALTI!
Ceceu abaixou de um golpe todo o volume. Um silêncio aterrador. Possessa, a viúva urrou:
Contra quem? Pênalti contra quem? Aumenta, babaca!
À beira de uma de suas famosas crises de asma, Ceceu estertorou:
Pênalti contra o Botafogo.
A viúva tava comandando o tradicional corinho de “casaca, casaca, casaca – saca-saca...”, quando o padre abandonou o recinto.
Meu avô gritou:
Hei, seu padre! Volta aqui! Futebol enlouquece qualquer um! Não foi desrespeito, não.
Sintam a resposta do padreco:
Aqui, ó! Eu sei que não foi desrespeito. Foi roubo no duro! Tô farto de ver o Vasco vencer com gol de pênalti no último minuto. Vão todos pros quintos dos infernos. Ladrões!
Mas seus protestos foram abafados pelos gritos de gol e pelo espetacular choro da viúva. De alegria.
Eu falei no começo que não ia mais entrar em águas vascaínas, não foi? Pois não resisti. Futebol é isso – incoerência, farsa, delírio. Por essas e outras é que hei de torcer, hei de torcer até morrer. A torcida brasileira é toda assim, a começar por mim.

Aldir Blanc, em Brasil passado a sujo 

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