Estiquei
o braço para pegar o colírio que estava sobre o criado-mudo. Meus
olhos estavam cheios de areia. Defeito do mecanismo ótico cuja
função é lubrificar a córnea com lágrimas. O meu oftalmo me
disse que essas lágrimas são uma reminiscência dos tempos em que
vivíamos dentro d’água, milhões de anos atrás. Saímos da água,
mas o corpo teve de arranjar um artifício que continuasse a
lubrificar os olhos. Com a idade, ele já não funciona direito. Daí
a necessidade do colírio.
Acendi
a luz, pinguei o colírio, consultei o relógio, cinco e meia, não
acordei nem uma vez durante a noite, nem mesmo para fazer xixi.
Lembrei-me do jantar feliz da noite anterior. Duas amigas me
visitaram (segundo elas mesmas, foi uma visita atrasada; deveria ter
sido feita pelo menos dois meses antes, quando estava me recuperando
da costura de cinquenta centímetros que os cirurgiões fizeram na
minha barriga, estômago e coração). Trouxeram o jantar pronto.
Enquanto as esperava, fui me aquecendo com meu sacramento Jack
Daniel’s e daí passamos para o vinho tinto. Se alguém me
perguntasse como tinha sido a minha noite, eu responderia automático:
“Foi bem, graças a Deus...”.
Ainda
no automático, eu iria tomar um banho e comer uma banana e chupar
uma manga, mas logo me lembrei de que eu tinha de fazer um exame de
sangue em jejum para ver o estado das plaquetas (não me perguntem o
que são plaquetas) que haviam descido a um nível perigoso em
consequência das cirurgias.
Peguei
o jornal sem interesse. Chamou a minha atenção com tristeza e com
um sentimento de “assim é a vida” a notícia da morte daquela
mulher paradigmática que foi a senhora Zilda Arns, irmã do cardeal
Arns, totalmente dedicada à causa das crianças. Setenta e cinco
anos. Eu, setenta e seis... Com a idade nos setenta, é normal e
esperado que se morra. Ela morreu, eu quase, estive bem perto do
buraco negro. Tristeza, mas não espanto. Morrer faz parte da
normalidade da vida.
Só
li as letras grandes. As pequenas não consigo ler. Pus os óculos.
Aí o mundo ficou absurdo. Zilda Arns, que só vivia para as
crianças, havia sido morta atingida por escombros de um terremoto
grau 7 enquanto caminhava numa missão de paz, para que as crianças
do Haiti sofressem menos. Logo o Haiti, um dos países mais pobres do
mundo.
O
jornal New York Times, no dia seguinte ao ataque terrorista às
torres do World Trade Center, publicou um editorial com o título
“Onde estava Deus no dia 11 de setembro de 2001?”. Era a pergunta
certa a ser feita. Milhares de perguntas técnicas poderiam e foram
feitas. Mas a pergunta crucial não tinha a ver com segurança
militar, nem com a economia, nem com a morte de centenas de pessoas.
A pergunta crucial seria aquela que atinge o nervo da alma. A
pergunta crucial tem a ver com a a última palavra que se pronuncia
quando “o destino bate à porta”. Valem, para aquele momento, as
palavras de Unamuno: “O que existe de mais sagrado num templo é o
fato de ser o lugar aonde se vai chorar em comum. Um Miserere cantado
em coro por uma multidão açoitada pelo destino vale tanto quanto
uma filosofia”. Os Estados Unidos são um país cheio de templos,
moradas de Deus. Muitas pessoas foram chorar nos templos naquele dia.
Mas Deus, onde estava ele naquele dia? Deus é confiável? Se ele
tivesse querido bastaria ter movido um dedo... Pode-se acreditar nas
palavras sagradas do salmista que declarou: “Caem mil à tua
esquerda e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido”. O
sentido da pergunta era a resposta que ninguém se atrevia a dizer:
“Não temos mais um Deus em quem confiar”... Ou o certo será
“Deus é fiel?”.
Misturei
a pergunta teológica com a manchete do jornal. Fui para a Clínica
Lane. A televisão dava notícias graves sobre o acontecido no Haiti,
mas logo passou a dar notícias alegres sobre futebol. É difícil
viver num mundo em que a tragédia e o banal aparecem juntos, na
mesma tela. O certo é chorar ou é rir? Ou tudo será uma farsa?
Uma
senhora lia um Novo Testamento enquanto esperava sua vez. Há Novos
Testamentos por todos os lugares, distribuídos pelos “Gedeões”.
Pensei que um bom versículo para ser lido seria Romanos 8:28:
“Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam
a Deus...”. Confesso não entender: qual o bem que acontece aos
milhares de velhos, crianças, homens e mulheres mortos por um
deslizamento de terra, terremoto ou tsunami? Segundo dizem os
teólogos, Deus, onisciente e onipotente, sabia com antecedência de
milênios que as tragédias iriam acontecer e ele poderia tê-las
evitado apenas com um piscar de olhos. Não evitou porque não quis.
Com
a morte de dona Zilda Arns, o mundo ficou mais triste. Sentimo-nos
mais órfãos. Podemos gritar. Não haverá resposta: “Nenhuma
palavra veio ao homem ajoelhado. Ele só ouviu a canção do vento.
Ou o barulho seco de asas que não via, não eram anjos, eram
morcegos no alto do forro da igreja. Ele não virá mais...”.
Rubem Alves, em Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo
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