sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Linguagem: a história da maior invenção da humanidade | Introdução



No princípio era o verbo.
João 1:1

Não, não era.
Daniel Everett

Era uma manhã abafada de 1991, ao longo do rio Kitiá na floresta tropical amazônica, no Brasil, em um avião monomotor, a cerca de 320 quilômetros da cidade mais próxima. Eu me encontrava ajustando os microfones nos dois homens magros e enrijecidos pelo clima, Sabatão e Bidu. Àquela hora do dia, eles normalmente estariam na selva, armados com zarabatanas de 2,4 metros e aljavas de dardos envenenados, caçando porcos selvagens, veados, macacos ou outros animais nativos do seu Éden. Mas naquela manhã eles estavam conversando entre eles enquanto eu os atrapalhava com os comandos do gravador e com o volume do som.
Antes de começarmos, eu lhes expliquei novamente, em uma mistura de português com a língua deles, banawá, o que queria: “conversem entre vocês. Sobre qualquer coisa. Contem histórias um para o outro. Falem sobre os americanos e os brasileiros que visitam a aldeia. Qualquer coisa que vocês queiram”. Eu tinha lhes convencido e lhes pagado para estarem ali, porque estava atrás do Santo Graal de um pesquisador de campo em Linguística – a conversação natural (comunicação interativa espontânea envolvendo mais de uma pessoa). Eu sabia, pelos meus fracassos do passado, que era quase impossível gravar conversas naturais. Isso porque a presença do pesquisador de campo com equipamento de gravação afeta a percepção da tarefa e contamina tão significativamente o resultado que em geral só são obtidas trocas não naturais e não dinâmicas que nenhum falante nativo aceitaria como uma conversa real (imagine se alguém colocasse você sentado com um amigo, ajustasse um microfone em vocês e ordenasse: “conversem!”).
Mas ali, depois de ter testado a qualidade do som da gravação que eu estava fazendo, eu mal podia conter minha empolgação. Eles começaram assim:

Sabatão: Bidu, Bidu. Vamos conversar hoje!
Bidu: Hummmm.
Sabatão: Vamos conversar na nossa língua.
Bidu: Hummmm.
Sabatão: O Daniel gosta muito da nossa língua.
Bidu: Sim, eu sei.
Sabatão: Eu vou falar. Então, você pode contar a história da onça pintada.
Bidu: Sim.
Sabatão: Vamos relembrar como as coisas eram muito tempo atrás.
Bidu: Sim, eu lembro.Sabatão: Muito tempo atrás, os homens brancos chegaram. Muito tempo atrás os homens brancos chegaram à nossa aldeia.
Bidu: Eles, eu conheço.
Sabatão: Eles nos encontraram. Nós vamos nos encontrar com eles.
Bidu: Sim, eles eu conheço.

A conversa deles mudou de um assunto para o outro, de forma natural, por mais de uma hora.
Embora eu estivesse há milhares de quilômetros de casa, suando muito, espantando vespas e moscas sanguessugas, eu quase chorei depois que Sabatão e Bidu terminaram, 45 minutos depois. Eu lhes agradeci entusiasticamente pelo tesouro verbal que eles tinham me fornecido. Eles sorriram e saíram para caçar com suas zarabatanas e dardos envenenados. Eu continuei sozinho, transcrevendo (anotando cada nuance fonológica), traduzindo e analisando a gravação. Depois de alguns dias de trabalho duro para deixar os dados “apresentáveis”, entreguei as gravações, as minhas anotações e a maior parte do trabalho remanescente de análise para um estudante (já graduado) da Universidade de Manchester na Inglaterra, que tinha me acompanhado até a Amazônia.
No fim do dia, nossa equipe de pesquisa – eu e três estudantes – desfrutou de um jantar composto por feijão, arroz e carne de porco selvagem – que eu tinha comprado dos banawás. Depois da refeição, passamos algum tempo ociosos, conversando sobre o calor da selva e sobre os insetos, sobre os gostos de cada um, que nunca tínhamos notado antes, mas especialmente falamos sobre a conversa gravada entre Bidu e Sabatão e sobre quão gratos nós estávamos a eles. Conversas dentro de conversas. Conversas sobre conversas.
Logo após o rápido pôr do sol amazônico, os banawás vieram nos fazer uma visita, como era de costume. Nós quatro preparamos suco (em pó) e café e abrimos um pacote de biscoitos para eles. Primeiramente cumprimentamos as mulheres banawás. As estudantes foram as responsáveis pela maioria da interação com as mulheres (cumprimentar e servir), como é culturalmente apropriado entre os banawás, que praticam uma segregação rigorosa dos sexos. Logo depois, os homens tiveram permissão para sentar e nós servimos mais café, suco e biscoitos. Na medida em que comíamos e bebíamos, conversávamos com os homens, principalmente respondendo suas questões a respeito de nossas famílias e nossos lares. Assim como fazem as pessoas corriqueiramente em qualquer lugar, nós e os banawás estávamos construindo relações e amizades por meio das conversas.
Conversas naturais desse tipo são importantes para linguistas, psicólogos, sociólogos, antropólogos e filósofos, porque elas corporificam o todo da linguagem, complexo e integrado, de uma maneira que nenhuma outra manifestação de linguagem faz. As conversas são o ápice dos estudos linguísticos e particularmente as fontes de descobertas, porque elas são potencialmente ilimitadas em forma e significado. Elas também são cruciais para a compreensão da natureza da linguagem por causa de sua subdeterminação – dizendo menos do que se pretende comunicar e deixando implícitos os pressupostos para serem inferidos pelo ouvinte, de alguma forma. A subdeterminação sempre fez parte da linguagem.
Para dar um exemplo de subdeterminação, olhe para a segunda linha da conversa entre Bidu e Sabatão. Sabatão diz para Bidu: “vamos conversar na nossa língua”. Essa fala é estranha se for considerada literalmente, pois eles já estão falando na língua deles. Na verdade, esses dois homens teriam dificuldades para continuar uma conversa natural em português, porque o conhecimento deles de português era rudimentar e limitado principalmente a negociações. As palavras de Sabatão supõem algo que não foi dito. Sabatão está usando essas palavras indiretamente para me avisar que eles não vão usar português para conversar, porque eles sabem que eu estou tentando entender como eles conversam na língua deles e porque eles querem me ajudar. Nada disso é falado. Embora subdeterminado pelas palavras, está implícito no contexto.
Da mesma forma, na fala “vamos lembrar como as coisas eram muito tempo atrás”, há um conhecimento compartilhado sobre a gama de coisas que eles estavam tentando lembrar. O que está em jogo nesse caso? Rituais? Caça? Relacionamentos com outras pessoas? Há quanto tempo? Antes de os americanos chegarem? Antes de os brasileiros chegarem? Há uma centena de gerações? Tanto Bidu quanto Sabatão (ou, de fato, qualquer banawá) sabem sobre o que está sendo falado. Mas isso não está claro inicialmente para alguém de outra cultura.
Sabatão e Bidu são dois dos oitenta e poucos falantes de banawá, uma língua que já ajudou a comunidade científica a aprender muito sobre linguagem humana, cognição, Amazônia e cultura. Mais especificamente, eles nos ensinaram sobre estruturas de som incomuns e sobre gramática, sobre os ingredientes e sobre o processo para fabricar veneno para dardos e flechas, sobre sua classificação para a flora e a fauna amazônicas e suas conexões linguísticas com outros amazonenses. Essas lições se seguiram naturalmente do trabalho com as estruturas de conhecimento, valores, organização linguística e social dos diferentes grupos que, como os banawás, há milênios dominam a vida em um nicho particular.
Qualquer comunidade – sejam os banawás, os franceses, os chineses, os botswanas – usa a língua para construir laços sociais entre os membros de sua comunidade e os outros. Na verdade, nossas espécies têm conversado por muito tempo. Todas as línguas do planeta apontam para as expressões de pensamento – subdeterminadas, restritas pela gramática, motivadas pelo significado ou ligadas socialmente – dos primeiros Hominini, dos Homo erectus e talvez ainda antes. Com base nas evidências da cultura dos Homo erectus – tais como ferramentas, casas, organização espacial das aldeais e viagens oceânicas para terras imaginadas além do horizonte –, o gênero Homo tem falado por 60 mil gerações, muito possivelmente há mais de um milhão e meio de anos. Já era de se esperar que nossa espécie, depois de milhares de milhares de anos de prática, fosse muito boa com a linguagem. E nós também esperaríamos que as línguas que desenvolvemos ao longo do tempo se acomodassem melhor às nossas limitações cognitivas e perceptuais, ao nosso campo auditivo, ao nosso trato vocal e às nossas estruturas cerebrais. Subdeterminação significa que cada enunciado de cada conversa, cada linha de cada romance e cada sentença de qualquer língua contêm “espaços em branco” – conhecimento, valores, papéis e emoções assumidos e implícitos –, um conteúdo subdeterminado que eu chamo de “matéria escura”. A linguagem nunca pode ser inteiramente compreendida sem um conjunto, compartilhado e internalizado, de valores, estruturas sociais e relações de conhecimento. Nesses componentes culturais e psicológicos compartilhados, a linguagem filtra aquilo que é comunicado, guiando as interpretações do ouvinte sobre aquilo que o outro disse. As pessoas usam o contexto e as culturas das línguas que elas ouvem para interpretá-las. Elas também usam gestos e entonação a fim de interpretar o significado pleno do que está sendo comunicado.
Assim como todos os humanos, as primeiras espécies Homo – a iniciarem o longo e árduo processo de construir uma língua do zero – quase certamente nunca disseram de maneira completa tudo aquilo que estava em suas mentes. Isso violaria características básicas da linguagem. Ao mesmo tempo, esses Hominini originários não teriam feito simplesmente sons ou gestos aleatórios. Em vez disso, teriam usado meios para comunicarem formas que acreditavam que outros entenderiam. E eles também pensaram que seus ouvintes poderiam “preencher as lacunas” e conectar o conhecimento de sua cultura e do mundo para interpretar o que foi proferido.
Essas são algumas das razões pelas quais as origens da linguagem humana não podem ser discutidas de maneira eficiente sem que a conversação seja colocada no topo da lista das coisas para serem entendidas. Cada aspecto da linguagem humana evoluiu, da mesma maneira que os componentes do corpo e do cérebro humanos, para envolver-se na conversação e na vida social. A linguagem não começou integralmente quando o primeiro hominídeo proferiu a primeira palavra ou sentença. Ela só começou de verdade com a primeira conversa, que é tanto a fonte quanto a meta da linguagem. Na verdade, a linguagem muda as vidas. Ela cria a sociedade, expressa nossas maiores aspirações, nossos pensamentos mais básicos, emoções ou filosofias de vida. Mas toda linguagem está, em última análise, a serviço da interação humana. Outros componentes da linguagem – coisas como a gramática e as histórias – são secundários em relação à conversação.
Esse ponto levanta uma questão interessante sobre a evolução da linguagem, a saber: quem falou primeiro? Nos dois últimos séculos, foi proposta uma infinidade de ancestrais para os humanos, da África do Sul, Java e Beijing ao Vale de Neander e à Garganta de Olduvai. Ao mesmo tempo, os pesquisadores propuseram muitas novas espécies de Hominini, levando a um mosaico evolutivo confuso. Para evitar ficar preso em uma mistura de propostas incertas, somente três espécies detentoras de linguagem precisam ser discutidas: Homo erectus, Homo neanderthalensis e Homo sapiens.
Poucos linguistas afirmam que os Homo erectus tinham linguagem. Muitos, na verdade, negam essa ideia. Atualmente não há consenso a respeito de quando os primeiros humanos falaram. Mas parece haver algum consenso moderno sobre a evolução humana, os métodos usados e um panorama da evolução das capacidades físicas e cognitivas da nossa espécie. Em The Descent of Man (A descendência do homem), Charles Darwin sugeriu que a África pode ter sido o berço dos humanos, porque também é a localização da maioria dos grandes primatas. Ele postulou (corretamente) que os humanos e os grandes primatas provavelmente estariam intimamente relacionados, compartilhando um ancestral comum. Darwin redigiu esses comentários visionários antes das grandes descobertas dos primeiros Hominini (“Hominini” refere-se ao gênero Homo e aos seus ancestrais de postura ereta, tais como os Australopithecines afarensis). Outro grupo aparentado, os hominídeos, são os grandes símios. Esse grupo abrange humanos, orangotangos, chimpanzés, bonobos e seus ancestrais comuns. O elenco da história da evolução humana inclui os ramos dos Homo erectus até os homens modernos. Para entender as relações entre algumas dessas diferentes espécies e se elas falavam ou não, deve-se conhecer o que se sabe sobre elas.
Parte da controvérsia sobre as origens humanas está no número de espécies Homo que existiu, mas ainda é necessário compreender as capacidades cognitivas potenciais de todos os Hominini (com base no tamanho do cérebro, nos kits de ferramenta e nas viagens) antes de prosseguir para a relevância da migração dos Hominini para a evolução da linguagem humana. Pode-se focar na psicologia, na cultura ou em ambas; ainda assim, algumas das evidências mais interessantes vêm da cultura.
Os símbolos (a associação de formas largamente arbitrárias com significados específicos, tais como o uso dos sons na palavra “cão” para significar “canino”) foram a invenção que colocou os humanos na rota da linguagem. Por essa razão, nós devemos compreender não somente como eles vieram à tona, mas também como eles foram adaptados por comunidades inteiras e como foram organizados. Uma proposta que eu descarto é seguramente a explicação mais influente sobre a origem da linguagem humana de todos os tempos. É a ideia de que a linguagem resultou de uma única mutação genética, cerca de 50-100 mil anos atrás. Essa mutação supostamente permitiu aos Homo sapiens construírem sentenças complexas. Esse conjunto de ideias é conhecido como “gramática universal”. Mas uma hipótese muito diferente surge do exame cuidadoso das evidências para a evolução biológica e cultural da nossa espécie, qual seja, a teoria da progressão do signo para a origem da linguagem. Isso significa simplesmente que a linguagem surge de forma gradual a partir dos índices (itens que representam coisas às quais eles estão fisicamente conectados, tais como a pegada de um animal), passando pelos ícones (coisas que se assemelham fisicamente às coisas que representam, tais como o retrato de uma pessoa real) e finalmente chegando à criação de símbolos (maneiras convencionais de representar significados que são amplamente arbitrários).
No fim, esses símbolos são combinados com outros para produzir uma gramática, construindo símbolos complexos a partir de símbolos simples. Essa progressão de sinais finalmente atinge um ponto na evolução da linguagem em que os gestos e a entonação são integrados com a gramática e com o significado para formar uma língua humana completa. Essa integração transmite e destaca a informação que o falante está comunicando ao ouvinte. Ela representa um passo fundamental, embora frequentemente ignorado, para a origem da linguagem.
Uma vez que a evolução da linguagem é uma questão de difícil solução, os primeiros esforços começaram previsivelmente de uma maneira bastante equivocada. Em vez de se basear em dados e em conhecimento, as primeiras abordagens valiam-se de especulação. Uma hipótese popular foi a de que todas as línguas começaram com o hebraico, uma vez que se acreditava que era a língua de Deus. Assim como essa primeira conjectura sobre o hebraico, muitas outras foram abandonadas, mesmo algumas que continham embriões de boas teorias. Ainda que indiretamente, elas levaram ao entendimento atual das origens da linguagem.
Mas uma deficiência séria projetou-se por todos esses primeiros esforços, e a falta de evidências, somada à especulação em abundância, irritou muitos cientistas. Então, em 1866, a Sociedade Linguística de Paris declarou que não aceitaria mais artigos sobre a origem da linguagem.
A boa notícia é que o banimento já foi suspenso. Os trabalhos contemporâneos são, em alguma medida, menos especulativos e, de vez em quando, mais consistentemente fundamentados em evidências sólidas do que os trabalhos dos séculos XIX e XX. No século XXI, apesar das dificuldades, os cientistas finalmente conseguiram juntar as peças extremamente pequenas do quebra-cabeça da evolução da linguagem para dar uma ideia razoável de como as línguas humanas surgiram.
Ainda assim, um dos maiores mistérios não resolvidos com relação à origem da linguagem, como muitos observaram, é a “lacuna linguística”. Há um imenso e profundo abismo linguístico entre os humanos e todas as outras espécies. Os sistemas de comunicação do reino animal são diferentes da linguagem humana. Somente as línguas humanas têm símbolos e somente elas são significativamente composicionais, subdividindo enunciados em partes significativas menores, como as histórias em parágrafos, os parágrafos em sentenças, as sentenças em sintagmas, os sintagmas em palavras. Cada pequena unidade contribui para o significado de uma unidade maior da qual ela faz parte. Para alguns, essa lacuna linguística existe simplesmente porque os humanos são criaturas especiais, diferentes das demais. Outros afirmam que o caráter distintivo da linguagem humana foi projetado por Deus.
Mais possivelmente, a lacuna se formou a passos pequenos, através de mudanças homeopáticas impulsionadas pela cultura. Sim, as línguas humanas são radicalmente diferentes dos sistemas de comunicação dos outros animais, mas os passos cognitivos e culturais para ir além dos “limites da linguagem” são menores do que muitos parecem pensar. As evidências mostram que não houve nenhuma “lacuna repentina” para aspectos da linguagem unicamente humanos, mas que as espécies que nos precederam no gênero Homo e mesmo antes, talvez os australopitecíneos, ainda que de forma lenta, seguramente progrediram até que os humanos adquirissem linguagem. Esse caminho lento, que os primeiros Hominini tomaram, resultou, por fim, no enorme abismo evolutivo entre a linguagem humana e a comunicação animal. Finalmente, as espécies Homo desenvolveram complexidade social, cultura e vantagens psicológicas e neurológicas em relação a todas as outras criaturas.
Assim, a linguagem humana começa de forma modesta, com um sistema de comunicação entre os primeiros hominídeos não muito diferente dos sistemas de comunicação de muitos outros animais, mas mais eficiente do que o de uma cascavel.
E se todos os 80 falantes remanescentes de banawá morressem de repente, e seus ossos fossem descobertos somente daqui a 100 mil anos? Deixando de lado, por enquanto, o fato de que os linguistas publicaram gramáticas, dicionários e outros estudos sobre a língua banawá, sua cultura material deixaria alguma evidência de que eles eram capazes de raciocinar por meio de linguagem e de símbolos? Seguramente, deixaria ainda menos evidências da linguagem do que as que foram encontradas para os erectus ou os neanderthalensis. A arte banawá (tais como os colares, os modelos de cesta e as esculturas) e suas ferramentas (que incluem arcos, flechas, zarabatanas, dardos, cestas e veneno) são biodegradáveis. Então, sua cultura material desaparecia sem deixar vestígio em muito menos tempo do que os 800 mil a 1,5 milhão de anos que se passaram desde o surgimento das primeiras culturas. Claro, pode-se determinar pelo uso do solo que eles tinham aldeias de um determinado tamanho, cabanas etc., mas seria tão difícil fazer extrapolações sobre sua linguagem, a partir das reminiscências dos seus artefatos, quanto seria afirmar que muitos grupos antigos de caçadores-coletores tinham (ou não) linguagem. É sabido que as populações amazonenses contemporâneas desenvolveram plenamente línguas humanas e ricas culturas, então é preciso ter cuidado para não concluir, de forma premeditada, que a ausência de evidências para linguagem ou para cultura nos registros pré-históricos indica que as populações humanas antigas não possuíam esses atributos cognitivos essenciais. Na verdade, quando olhamos mais de perto, há evidências de que as primeiras espécies Homo falavam e tinham cultura, de fato.
A solução do mistério das origens da linguagem humana começa com o exame da natureza da evolução da única espécie linguística sobrevivente, o Homo sapiens, ou, como escreve Tom Wolfe, o Homo loquax: “homem que fala”. Há várias perspectivas particulares que marcam o caminho para a evolução da linguagem.
Primeiramente, a linguagem humana surge a partir de um fenômeno muito maior de comunicação animal. A comunicação nada mais é do que a (normalmente intencional) transferência de informação de uma entidade para outra, sejam a comunicação por feromônios entre formigas, os gritos dos macacos, as posições e os movimentos da cauda dos cachorros, as fábulas de Esopo, sejam a leitura e a escrita de livros. A linguagem é muito mais do que transferência de informação.
A segunda perspectiva da evolução da linguagem deriva do exame tanto das vantagens biológicas quanto das culturais. Como o cérebro, o trato vocal, o movimento das mãos e do resto do corpo humano, somados à cultura, afetam e facilitam a evolução da linguagem? Muitas abordagens para a evolução da linguagem focam em um ou outro desses aspectos, biológico versus cultural, à exclusão de outros.
Uma última (e necessária) perspectiva pode deixar alguns curiosos. Trata-se de olhar para a evolução da linguagem como um pesquisador de campo da Linguística olharia. Essa perspectiva leva a duas questões fundamentais: o quão parecidas são as línguas humanas faladas hoje em dia e o que a diversidade das línguas modernas revela sobre as primeiras línguas humanas? Essas perspectivas oferecem uma visão útil dos marcos evolutivos que caracterizam o caminho da primeira língua das espécies Homo.
Há ainda questões adicionais a serem respondidas. Gestos são fundamentais para as línguas humanas? Sim, são. É necessário um trato vocal idêntico ao dos humanos modernos para as línguas humanas? Não. Estruturas gramaticais complexas são exigências das línguas humanas? Não, mas elas são encontradas em muitas línguas modernas, por uma variedade de motivos. Algumas sociedades se comunicam menos ou usam menos comunicação linguística do que outras? Parece que sim. Os erectus podem ter sido detentores da linguagem; não obstante, eram bastante reservados.

Daniel L. Everett, em Linguagem: a história da maior invenção da humanidade

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