No
princípio era o verbo.
João
1:1
Não,
não era.
Daniel
Everett
Era
uma manhã abafada de 1991, ao longo do rio Kitiá na floresta
tropical amazônica, no Brasil, em um avião monomotor, a cerca de
320 quilômetros da cidade mais próxima. Eu me encontrava ajustando
os microfones nos dois homens magros e enrijecidos pelo clima,
Sabatão e Bidu. Àquela hora do dia, eles normalmente estariam na
selva, armados com zarabatanas de 2,4 metros e aljavas de dardos
envenenados, caçando porcos selvagens, veados, macacos ou outros
animais nativos do seu Éden. Mas naquela manhã eles estavam
conversando entre eles enquanto eu os atrapalhava com os comandos do
gravador e com o volume do som.
Antes
de começarmos, eu lhes expliquei novamente, em uma mistura de
português com a língua deles, banawá, o que queria: “conversem
entre vocês. Sobre qualquer coisa. Contem histórias um para o
outro. Falem sobre os americanos e os brasileiros que visitam a
aldeia. Qualquer coisa que vocês queiram”. Eu tinha lhes
convencido e lhes pagado para estarem ali, porque estava atrás do
Santo Graal de um pesquisador de campo em Linguística – a
conversação natural (comunicação interativa espontânea
envolvendo mais de uma pessoa). Eu sabia, pelos meus fracassos do
passado, que era quase impossível gravar conversas naturais. Isso
porque a presença do pesquisador de campo com equipamento de
gravação afeta a percepção da tarefa e contamina tão
significativamente o resultado que em geral só são obtidas trocas
não naturais e não dinâmicas que nenhum falante nativo aceitaria
como uma conversa real (imagine se alguém colocasse você sentado
com um amigo, ajustasse um microfone em vocês e ordenasse:
“conversem!”).
Mas
ali, depois de ter testado a qualidade do som da gravação que eu
estava fazendo, eu mal podia conter minha empolgação. Eles
começaram assim:
Sabatão:
Bidu, Bidu. Vamos conversar hoje!
Bidu:
Hummmm.
Sabatão:
Vamos conversar na nossa língua.
Bidu:
Hummmm.
Sabatão:
O Daniel gosta muito da nossa língua.
Bidu:
Sim, eu sei.
Sabatão:
Eu vou falar. Então, você pode contar a história da onça pintada.
Bidu:
Sim.
Sabatão:
Vamos relembrar como as coisas eram muito tempo atrás.
Bidu:
Sim, eu lembro.Sabatão: Muito tempo atrás, os homens brancos
chegaram. Muito tempo atrás os homens brancos chegaram à nossa
aldeia.
Bidu:
Eles, eu conheço.
Sabatão:
Eles nos encontraram. Nós vamos nos encontrar com eles.
Bidu:
Sim, eles eu conheço.
A
conversa deles mudou de um assunto para o outro, de forma natural,
por mais de uma hora.
Embora
eu estivesse há milhares de quilômetros de casa, suando muito,
espantando vespas e moscas sanguessugas, eu quase chorei depois que
Sabatão e Bidu terminaram, 45 minutos depois. Eu lhes agradeci
entusiasticamente pelo tesouro verbal que eles tinham me fornecido.
Eles sorriram e saíram para caçar com suas zarabatanas e dardos
envenenados. Eu continuei sozinho, transcrevendo (anotando cada
nuance fonológica), traduzindo e analisando a gravação. Depois de
alguns dias de trabalho duro para deixar os dados “apresentáveis”,
entreguei as gravações, as minhas anotações e a maior parte do
trabalho remanescente de análise para um estudante (já graduado) da
Universidade de Manchester na Inglaterra, que tinha me acompanhado
até a Amazônia.
No
fim do dia, nossa equipe de pesquisa – eu e três estudantes –
desfrutou de um jantar composto por feijão, arroz e carne de porco
selvagem – que eu tinha comprado dos banawás. Depois da refeição,
passamos algum tempo ociosos, conversando sobre o calor da selva e
sobre os insetos, sobre os gostos de cada um, que nunca tínhamos
notado antes, mas especialmente falamos sobre a conversa gravada
entre Bidu e Sabatão e sobre quão gratos nós estávamos a eles.
Conversas dentro de conversas. Conversas sobre conversas.
Logo
após o rápido pôr do sol amazônico, os banawás vieram nos fazer
uma visita, como era de costume. Nós quatro preparamos suco (em pó)
e café e abrimos um pacote de biscoitos para eles. Primeiramente
cumprimentamos as mulheres banawás. As estudantes foram as
responsáveis pela maioria da interação com as mulheres
(cumprimentar e servir), como é culturalmente apropriado entre os
banawás, que praticam uma segregação rigorosa dos sexos. Logo
depois, os homens tiveram permissão para sentar e nós servimos mais
café, suco e biscoitos. Na medida em que comíamos e bebíamos,
conversávamos com os homens, principalmente respondendo suas
questões a respeito de nossas famílias e nossos lares. Assim como
fazem as pessoas corriqueiramente em qualquer lugar, nós e os
banawás estávamos construindo relações e amizades por meio das
conversas.
Conversas
naturais desse tipo são importantes para linguistas, psicólogos,
sociólogos, antropólogos e filósofos, porque elas corporificam o
todo da linguagem, complexo e integrado, de uma maneira que nenhuma
outra manifestação de linguagem faz. As conversas são o ápice dos
estudos linguísticos e particularmente as fontes de descobertas,
porque elas são potencialmente ilimitadas em forma e significado.
Elas também são cruciais para a compreensão da natureza da
linguagem por causa de sua subdeterminação – dizendo menos do que
se pretende comunicar e deixando implícitos os pressupostos para
serem inferidos pelo ouvinte, de alguma forma. A subdeterminação
sempre fez parte da linguagem.
Para
dar um exemplo de subdeterminação, olhe para a segunda linha da
conversa entre Bidu e Sabatão. Sabatão diz para Bidu: “vamos
conversar na nossa língua”. Essa fala é estranha se for
considerada literalmente, pois eles já estão falando na língua
deles. Na verdade, esses dois homens teriam dificuldades para
continuar uma conversa natural em português, porque o conhecimento
deles de português era rudimentar e limitado principalmente a
negociações. As palavras de Sabatão supõem algo que não foi
dito. Sabatão está usando essas palavras indiretamente para me
avisar que eles não vão usar português para conversar, porque
eles sabem que eu estou tentando entender como eles conversam na
língua deles e porque eles querem me ajudar. Nada disso é
falado. Embora subdeterminado pelas palavras, está implícito no
contexto.
Da
mesma forma, na fala “vamos lembrar como as coisas eram muito tempo
atrás”, há um conhecimento compartilhado sobre a gama de coisas
que eles estavam tentando lembrar. O que está em jogo nesse caso?
Rituais? Caça? Relacionamentos com outras pessoas? Há quanto tempo?
Antes de os americanos chegarem? Antes de os brasileiros chegarem? Há
uma centena de gerações? Tanto Bidu quanto Sabatão (ou, de fato,
qualquer banawá) sabem sobre o que está sendo falado. Mas isso não
está claro inicialmente para alguém de outra cultura.
Sabatão
e Bidu são dois dos oitenta e poucos falantes de banawá, uma língua
que já ajudou a comunidade científica a aprender muito sobre
linguagem humana, cognição, Amazônia e cultura. Mais
especificamente, eles nos ensinaram sobre estruturas de som incomuns
e sobre gramática, sobre os ingredientes e sobre o processo para
fabricar veneno para dardos e flechas, sobre sua classificação para
a flora e a fauna amazônicas e suas conexões linguísticas com
outros amazonenses. Essas lições se seguiram naturalmente do
trabalho com as estruturas de conhecimento, valores, organização
linguística e social dos diferentes grupos que, como os banawás, há
milênios dominam a vida em um nicho particular.
Qualquer
comunidade – sejam os banawás, os franceses, os chineses, os
botswanas – usa a língua para construir laços sociais entre os
membros de sua comunidade e os outros. Na verdade, nossas espécies
têm conversado por muito tempo. Todas as línguas do planeta apontam
para as expressões de pensamento – subdeterminadas, restritas pela
gramática, motivadas pelo significado ou ligadas socialmente – dos
primeiros Hominini, dos Homo erectus e talvez ainda
antes. Com base nas evidências da cultura dos Homo erectus –
tais como ferramentas, casas, organização espacial das aldeais e
viagens oceânicas para terras imaginadas além do horizonte –, o
gênero Homo tem falado por 60 mil gerações, muito
possivelmente há mais de um milhão e meio de anos. Já era de se
esperar que nossa espécie, depois de milhares de milhares de anos de
prática, fosse muito boa com a linguagem. E nós também
esperaríamos que as línguas que desenvolvemos ao longo do tempo se
acomodassem melhor às nossas limitações cognitivas e perceptuais,
ao nosso campo auditivo, ao nosso trato vocal e às nossas estruturas
cerebrais. Subdeterminação significa que cada enunciado de cada
conversa, cada linha de cada romance e cada sentença de qualquer
língua contêm “espaços em branco” – conhecimento, valores,
papéis e emoções assumidos e implícitos –, um conteúdo
subdeterminado que eu chamo de “matéria escura”. A linguagem
nunca pode ser inteiramente compreendida sem um conjunto,
compartilhado e internalizado, de valores, estruturas sociais e
relações de conhecimento. Nesses componentes culturais e
psicológicos compartilhados, a linguagem filtra aquilo que é
comunicado, guiando as interpretações do ouvinte sobre aquilo que o
outro disse. As pessoas usam o contexto e as culturas das línguas
que elas ouvem para interpretá-las. Elas também usam gestos e
entonação a fim de interpretar o significado pleno do que está
sendo comunicado.
Assim
como todos os humanos, as primeiras espécies Homo – a
iniciarem o longo e árduo processo de construir uma língua do zero
– quase certamente nunca disseram de maneira completa tudo aquilo
que estava em suas mentes. Isso violaria características básicas da
linguagem. Ao mesmo tempo, esses Hominini originários não
teriam feito simplesmente sons ou gestos aleatórios. Em vez disso,
teriam usado meios para comunicarem formas que acreditavam que outros
entenderiam. E eles também pensaram que seus ouvintes poderiam
“preencher as lacunas” e conectar o conhecimento de sua cultura e
do mundo para interpretar o que foi proferido.
Essas
são algumas das razões pelas quais as origens da linguagem humana
não podem ser discutidas de maneira eficiente sem que a conversação
seja colocada no topo da lista das coisas para serem entendidas. Cada
aspecto da linguagem humana evoluiu, da mesma maneira que os
componentes do corpo e do cérebro humanos, para envolver-se na
conversação e na vida social. A linguagem não começou
integralmente quando o primeiro hominídeo proferiu a primeira
palavra ou sentença. Ela só começou de verdade com a primeira
conversa, que é tanto a fonte quanto a meta da linguagem. Na
verdade, a linguagem muda as vidas. Ela cria a sociedade, expressa
nossas maiores aspirações, nossos pensamentos mais básicos,
emoções ou filosofias de vida. Mas toda linguagem está, em última
análise, a serviço da interação humana. Outros componentes da
linguagem – coisas como a gramática e as histórias – são
secundários em relação à conversação.
Esse
ponto levanta uma questão interessante sobre a evolução da
linguagem, a saber: quem falou primeiro? Nos dois últimos séculos,
foi proposta uma infinidade de ancestrais para os humanos, da África
do Sul, Java e Beijing ao Vale de Neander e à Garganta de Olduvai.
Ao mesmo tempo, os pesquisadores propuseram muitas novas espécies de
Hominini, levando a um mosaico evolutivo confuso. Para evitar
ficar preso em uma mistura de propostas incertas, somente três
espécies detentoras de linguagem precisam ser discutidas: Homo
erectus, Homo neanderthalensis e
Homo sapiens.
Poucos
linguistas afirmam que os Homo erectus tinham linguagem.
Muitos, na verdade, negam essa ideia. Atualmente não há consenso a
respeito de quando os primeiros humanos falaram. Mas parece haver
algum consenso moderno sobre a evolução humana, os métodos usados
e um panorama da evolução das capacidades físicas e cognitivas da
nossa espécie. Em The Descent of Man (A descendência do
homem), Charles Darwin sugeriu que a África pode ter sido o
berço dos humanos, porque também é a localização da maioria dos
grandes primatas. Ele postulou (corretamente) que os humanos e os
grandes primatas provavelmente estariam intimamente relacionados,
compartilhando um ancestral comum. Darwin redigiu esses comentários
visionários antes das grandes descobertas dos primeiros Hominini
(“Hominini” refere-se ao gênero Homo e aos seus
ancestrais de postura ereta, tais como os Australopithecines
afarensis). Outro grupo aparentado, os hominídeos, são os
grandes símios. Esse grupo abrange humanos, orangotangos,
chimpanzés, bonobos e seus ancestrais comuns. O elenco da história
da evolução humana inclui os ramos dos Homo erectus até os homens
modernos. Para entender as relações entre algumas dessas diferentes
espécies e se elas falavam ou não, deve-se conhecer o que se sabe
sobre elas.
Parte
da controvérsia sobre as origens humanas está no número de
espécies Homo que existiu, mas ainda é necessário
compreender as capacidades cognitivas potenciais de todos os Hominini
(com base no tamanho do cérebro, nos kits de ferramenta e nas
viagens) antes de prosseguir para a relevância da migração dos
Hominini para a evolução da linguagem humana. Pode-se focar
na psicologia, na cultura ou em ambas; ainda assim, algumas das
evidências mais interessantes vêm da cultura.
Os
símbolos (a associação de formas largamente arbitrárias com
significados específicos, tais como o uso dos sons na palavra “cão”
para significar “canino”) foram a invenção que colocou os
humanos na rota da linguagem. Por essa razão, nós devemos
compreender não somente como eles vieram à tona, mas também como
eles foram adaptados por comunidades inteiras e como foram
organizados. Uma proposta que eu descarto é seguramente a explicação
mais influente sobre a origem da linguagem humana de todos os tempos.
É a ideia de que a linguagem resultou de uma única mutação
genética, cerca de 50-100 mil anos atrás. Essa mutação
supostamente permitiu aos Homo sapiens construírem sentenças
complexas. Esse conjunto de ideias é conhecido como “gramática
universal”. Mas uma hipótese muito diferente surge do exame
cuidadoso das evidências para a evolução biológica e cultural da
nossa espécie, qual seja, a teoria da progressão do signo para a
origem da linguagem. Isso significa simplesmente que a linguagem
surge de forma gradual a partir dos índices (itens que representam
coisas às quais eles estão fisicamente conectados, tais como a
pegada de um animal), passando pelos ícones (coisas que se
assemelham fisicamente às coisas que representam, tais como o
retrato de uma pessoa real) e finalmente chegando à criação de
símbolos (maneiras convencionais de representar significados que são
amplamente arbitrários).
No
fim, esses símbolos são combinados com outros para produzir uma
gramática, construindo símbolos complexos a partir de símbolos
simples. Essa progressão de sinais finalmente atinge um ponto na
evolução da linguagem em que os gestos e a entonação são
integrados com a gramática e com o significado para formar uma
língua humana completa. Essa integração transmite e destaca a
informação que o falante está comunicando ao ouvinte. Ela
representa um passo fundamental, embora frequentemente ignorado, para
a origem da linguagem.
Uma
vez que a evolução da linguagem é uma questão de difícil
solução, os primeiros esforços começaram previsivelmente de uma
maneira bastante equivocada. Em vez de se basear em dados e em
conhecimento, as primeiras abordagens valiam-se de especulação. Uma
hipótese popular foi a de que todas as línguas começaram com o
hebraico, uma vez que se acreditava que era a língua de Deus. Assim
como essa primeira conjectura sobre o hebraico, muitas outras foram
abandonadas, mesmo algumas que continham embriões de boas teorias.
Ainda que indiretamente, elas levaram ao entendimento atual das
origens da linguagem.
Mas
uma deficiência séria projetou-se por todos esses primeiros
esforços, e a falta de evidências, somada à especulação em
abundância, irritou muitos cientistas. Então, em 1866, a Sociedade
Linguística de Paris declarou que não aceitaria mais artigos sobre
a origem da linguagem.
A
boa notícia é que o banimento já foi suspenso. Os trabalhos
contemporâneos são, em alguma medida, menos especulativos e, de vez
em quando, mais consistentemente fundamentados em evidências sólidas
do que os trabalhos dos séculos XIX e XX. No século XXI, apesar das
dificuldades, os cientistas finalmente conseguiram juntar as peças
extremamente pequenas do quebra-cabeça da evolução da linguagem
para dar uma ideia razoável de como as línguas humanas surgiram.
Ainda
assim, um dos maiores mistérios não resolvidos com relação à
origem da linguagem, como muitos observaram, é a “lacuna
linguística”. Há um imenso e profundo abismo linguístico entre
os humanos e todas as outras espécies. Os sistemas de comunicação
do reino animal são diferentes da linguagem humana. Somente as
línguas humanas têm símbolos e somente elas são
significativamente composicionais, subdividindo enunciados em partes
significativas menores, como as histórias em parágrafos, os
parágrafos em sentenças, as sentenças em sintagmas, os sintagmas
em palavras. Cada pequena unidade contribui para o significado de uma
unidade maior da qual ela faz parte. Para alguns, essa lacuna
linguística existe simplesmente porque os humanos são criaturas
especiais, diferentes das demais. Outros afirmam que o caráter
distintivo da linguagem humana foi projetado por Deus.
Mais
possivelmente, a lacuna se formou a passos pequenos, através de
mudanças homeopáticas impulsionadas pela cultura. Sim, as línguas
humanas são radicalmente diferentes dos sistemas de comunicação
dos outros animais, mas os passos cognitivos e culturais para ir além
dos “limites da linguagem” são menores do que muitos parecem
pensar. As evidências mostram que não houve nenhuma “lacuna
repentina” para aspectos da linguagem unicamente humanos, mas que
as espécies que nos precederam no gênero Homo e mesmo antes, talvez
os australopitecíneos, ainda que de forma lenta, seguramente
progrediram até que os humanos adquirissem linguagem. Esse caminho
lento, que os primeiros Hominini tomaram, resultou, por fim,
no enorme abismo evolutivo entre a linguagem humana e a comunicação
animal. Finalmente, as espécies Homo desenvolveram
complexidade social, cultura e vantagens psicológicas e neurológicas
em relação a todas as outras criaturas.
Assim,
a linguagem humana começa de forma modesta, com um sistema de
comunicação entre os primeiros hominídeos não muito diferente dos
sistemas de comunicação de muitos outros animais, mas mais
eficiente do que o de uma cascavel.
E
se todos os 80 falantes remanescentes de banawá morressem de
repente, e seus ossos fossem descobertos somente daqui a 100 mil
anos? Deixando de lado, por enquanto, o fato de que os linguistas
publicaram gramáticas, dicionários e outros estudos sobre a língua
banawá, sua cultura material deixaria alguma evidência de que eles
eram capazes de raciocinar por meio de linguagem e de símbolos?
Seguramente, deixaria ainda menos evidências da linguagem do que as
que foram encontradas para os erectus ou os neanderthalensis.
A arte banawá (tais como os colares, os modelos de cesta e as
esculturas) e suas ferramentas (que incluem arcos, flechas,
zarabatanas, dardos, cestas e veneno) são biodegradáveis. Então,
sua cultura material desaparecia sem deixar vestígio em muito menos
tempo do que os 800 mil a 1,5 milhão de anos que se passaram desde o
surgimento das primeiras culturas. Claro, pode-se determinar pelo uso
do solo que eles tinham aldeias de um determinado tamanho, cabanas
etc., mas seria tão difícil fazer extrapolações sobre sua
linguagem, a partir das reminiscências dos seus artefatos, quanto
seria afirmar que muitos grupos antigos de caçadores-coletores
tinham (ou não) linguagem. É sabido que as populações amazonenses
contemporâneas desenvolveram plenamente línguas humanas e ricas
culturas, então é preciso ter cuidado para não concluir, de forma
premeditada, que a ausência de evidências para linguagem ou para
cultura nos registros pré-históricos indica que as populações
humanas antigas não possuíam esses atributos cognitivos essenciais.
Na verdade, quando olhamos mais de perto, há evidências de que as
primeiras espécies Homo falavam e tinham cultura, de fato.
A
solução do mistério das origens da linguagem humana começa com o
exame da natureza da evolução da única espécie linguística
sobrevivente, o Homo sapiens, ou, como escreve Tom Wolfe, o Homo
loquax: “homem que fala”. Há várias perspectivas
particulares que marcam o caminho para a evolução da linguagem.
Primeiramente,
a linguagem humana surge a partir de um fenômeno muito maior de
comunicação animal. A comunicação nada mais é do que a
(normalmente intencional) transferência de informação de uma
entidade para outra, sejam a comunicação por feromônios entre
formigas, os gritos dos macacos, as posições e os movimentos da
cauda dos cachorros, as fábulas de Esopo, sejam a leitura e a
escrita de livros. A linguagem é muito mais do que transferência de
informação.
A
segunda perspectiva da evolução da linguagem deriva do exame tanto
das vantagens biológicas quanto das culturais. Como o cérebro, o
trato vocal, o movimento das mãos e do resto do corpo humano,
somados à cultura, afetam e facilitam a evolução da linguagem?
Muitas abordagens para a evolução da linguagem focam em um ou outro
desses aspectos, biológico versus cultural, à exclusão de
outros.
Uma
última (e necessária) perspectiva pode deixar alguns curiosos.
Trata-se de olhar para a evolução da linguagem como um pesquisador
de campo da Linguística olharia. Essa perspectiva leva a duas
questões fundamentais: o quão parecidas são as línguas humanas
faladas hoje em dia e o que a diversidade das línguas modernas
revela sobre as primeiras línguas humanas? Essas perspectivas
oferecem uma visão útil dos marcos evolutivos que caracterizam o
caminho da primeira língua das espécies Homo.
Há
ainda questões adicionais a serem respondidas. Gestos são
fundamentais para as línguas humanas? Sim, são. É necessário um
trato vocal idêntico ao dos humanos modernos para as línguas
humanas? Não. Estruturas gramaticais complexas são exigências das
línguas humanas? Não, mas elas são encontradas em muitas línguas
modernas, por uma variedade de motivos. Algumas sociedades se
comunicam menos ou usam menos comunicação linguística do que
outras? Parece que sim. Os erectus podem ter sido detentores
da linguagem; não obstante, eram bastante reservados.
Daniel L. Everett, em Linguagem: a história da maior invenção da humanidade
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