Girando
o pacote no laço do barbante azul, Nelsinho deteve-se diante do
prédio esquálido. Conferiu o endereço no embrulho – ó
santíssimas mães de Curitiba! Ao longo do corredor sinistro, o
bafio do lixo nos cantos. Que dona Alice não estivesse em casa –
quatro da tarde, escolhida a hora de propósito – e, limpo no seio
das famílias, deixaria o regalo com o porteiro. Livre para a sua
dama dourada no bar dos marinheiros.
Aos
trancos, arrastou-se o elevador ao segundo andar. Não fosse herói
de caráter, esquecia o embrulho ali na porta e adeus, dona Alice.
Gemeu baixinho – afinal, a primeira professora da gente, ensinara-o
a ler, escrever o nome, as quatro operações – e apertou a
campainha. Nenhum som do outro lado. Sabia o que era uma antiga
professora, acha você o eterno menino de calça curta. Impossível
dar o recado e despedir-se: o pacote era a maçã no primeiro dia de
aula. Não o largaria sem que aceitasse um cafezinho e ouvisse os
queixumes de solteirona. Vou tocar outra vez e, se não atender, caio
fora. Apalpou o objeto – fofo, um cachecol? –, decidiu
abandoná-lo na porta. Era tarde: chinelos cansados arrastavam-se em
surdina. Duas voltas na fechadura – solteirona guardada a sete
chaves.
– Como
vai a senhora, dona Alice? Lembra-se de mim?
No
corpo magro a cara gorducha, pisada de sono, olheira doentia. Pela
fresta, a voz rouca, que a fisionomia era familiar, do nome não se
recordava.
– O
Nelsinho, de Curitiba. Seu aluno no grupo Tiradentes.
Escancarou
a porta e o sorriso de dentinho amarelo:
– Menino,
como cresceu! Meu Deus, quanto tempo...
Um
caco de velha – o piolho que se oferece ao machado do estudante.
Surpreendeu-o fosse menor que ele. Bem se lembrava, arco-íris de
braço nu com o quadro-negro ao fundo, cacho de glicínia azul
perfumando a sala – ah, como era linda ao olho míope da infância.
No chinelo de pano alcançava-lhe o ombro – o mesmo dentinho
separado, a sombra de buço no rosto sem pintura.
– Sábado
eu cochilo depois do almoço. Acanhada, alisou o negro cabelo, um e
outro fio branco.
– Entregar
este pacote. Dona Eponina que mandou.
– Mamãe
sempre a abusar dos outros – apertou o embrulho nos dedos trêmulos.
– Meia de lã. Muito gentil, Nelsinho. A mãe não sabe da invenção
do correio.
Com
olho de espanto:
– Então
o Nelsinho! Um bonitão. Não precisa encabular. Meus alunos são os
filhos que não tive.
Ele,
quieto: é da velha professora falar demais.
– Sempre
caladão? Não quer entrar?
– A
senhora me desculpe. Estou com pressa.
– Deixe
de cerimônia. Conversar um pouco. Saber de sua vida. Os colegas como
vão? Nelsinho entrou na sala e, a porta aberta do quarto, avistou a
cama larga de casal. Ela encostou a folha:
– Não
repare a desordem. Levantei agorinha. Sentou-se no canto do sofá e
foi respondendo. Maldição, esquecera a machadinha no outro paletó!
- às perguntas sobre os colegas. Uma, casada, mãe de dois filhos –
Virgem do céu, como passa o tempo! Outro, morto em desastre de
avião.
– O
de cachinho, Sérgio, seu preferido.
– Tinha
raiva de mim, Nelsinho? Uma vez eu o botei de castigo. De joelho
sobre grãos de milho, que horror! Bruxa pavorosa, não era?
A
mais querida das bruxas pavorosas – intacta na memória, saia preta
e blusa alvinitente de rendinha.
– Capaz
de me perdoar, Nelsinho?
– Bem
que eu merecia.
– Me
conte. Os seus planos. Gostaria de ser médico?
– Não
sei, dona Alice. Ando meio perdido.
– Bobagem,
menino. Um rapagão feito você! Quantos anos tem?
– Vinte
e um – exagerou um ano e, o carão purpurino de donzel aflito, de
novo o aluno de mão pecaminosa no bolso. Disfarçando a perturbação,
em tom dramático, o desejo de romper com a família. Ser ele mesmo.
Dar as costas à velha cidade era nascer segunda vez.
– A
vida inteira pela frente, Nelsinho. Pensativa, cruzou a perna – ai,
quanto lápis o menino derrubara a fim de espiar-lhe o joelho roliço.
Na coxa branca – ó mãe do céu – a famosa liga: preta e não
roxa, como imaginava. Ai, naquele tempo ainda se usavam ligas... Não
era tão idosa, dez anos mais, vinte que fosse.
– Nunca
devia ter saído de casa.
– Arrependida,
dona Alice?
– Menino,
por favor. Não me dê senhoria. Deixa tão velha. Olhe, fazer um
trato? Dois colegas recordando os anos de escola.
Sem
se distrair com nenhum lápis, mal sentado no sofá, ouviu mais de
uma hora os tempos que vão longe: não lhe serviu licor de ovo, ao
menos um cafezinho.
Da
casa para o emprego e do emprego para casa. Chamar de casa àquele
apartamento sem ar, sem luz, sem sol? As tipas da repartição,
vulgares e fáceis, uma promiscuidade horrorosa. Mocinha que vive só,
dar-se ao respeito. Mãe do céu, como era difícil! Assediada a toda
hora, em todo lugar. Homem? Um grande porcalhão. A moça esteja só,
exibe ares de conquistador. Chegavam a bater-lhe na porta. Mal
dormia, um ladrão debaixo da cama? Amigos não tinha. Noiva dois
anos, o rapaz ganhava pouco, sem meios de casar. Cinco meses antes,
transferido para São Paulo.
Tivesse
ficado em casa, mas como podia? O escândalo com o diretor do grupo,
senhor casado, fora inocente envolvida. Triste, com tosse: um ano no
sanatório. O médico proibiu a friagem do sul.
– Ah,
Nelsinho, você soubesse... Anoitecia, aquietavam-se os bondes. Era
sábado, apertou-lhe a mão:
– Doce
alegria o encontro de um curitibano.
Interessado
nos quadrinhos da parede – pinheiros ao pôr-do-sol –, sem
interromper o monólogo do coração oco na casca vazia da cigarra.
Alguns dias em casa para as bodas de ouro dos pais. Fim do ano, a
licença suspensa no emprego. Natal, a pior época de estar só.
Sozinha no apartamento, a alegria em todos os lares. Blusa nova e
luva de crochê, estendida na cama, olho pregado no teto. Os bondes,
a discussão dos bêbados, os vizinhos em volta da mesa.
– Esse
teu noivo? Gosta tanto de você. Como é que a deixou?
A
mãe dele, grande sirigaita, morria se o filho a abandonasse. Manhã
seguinte, a bela abriu os olhos desesperada e chorou três dias, sem
coragem de fitar-se no espelho, ir ao emprego, sair à rua. Sem lavar
a pintura do rosto, sem cozinhar, passando a leite e bolacha Maria.
Noite e dia a imaginar-se com a família. Sua alegria eram as visitas
a Curitiba. Hóspede de honra, todos cuidavam de agradá-la. Era
fevereiro – um soluço partiu a palavra, Nelsinho não desviou o
olhar dos pinheiros - e só voltaria em dezembro.
– Não
sabe quanto é feliz, menino. Encolhida no canto, fez-se ainda menor:
– Quando
viaja?
– Semana
que vem.
No
silêncio, entre as frases, o gorgolejo das entranhas famintas.
– Largar
tudo e cair na orgia. Em Curitiba falam de mim. Que sou de bacanal.
Pobre de mim, uma vida de freira. Se meu noivo não se decide, eu
perco a esperança.
Perseguida
na repartição, as colegas recebiam aumento, ela se defendia das
mãos imundas – todo patrão é porco. Em dúvida se o pai a
aceitaria de volta.
– Alberto
não se decide, eu perco a esperança. Capaz de uma loucura. O que as
outras fazem. Boba, esperando carta do menino, agarrado à saia da
mãe.
Piedade
ou fome, Nelsinho acudiu:
– Tem
algum programa, dona Alice? Se não tem, quer jantar comigo?
Mordeu
a língua, arrependido: pouco dinheiro, não podia gastar com a
professora. No Rio para uma bacanal com a dama pintada de ouro.
– Pronta
em cinco minutos. Fique à vontade. Ouvir música?
Ele
deu alguns passos pela sala em penumbra. Cubículo escuro: a cozinha.
Na mesa, copo de leite coberto por um pires. E o prato vazio: nem
lima só migalha. Dona Alice surgiu à porta do quarto.
– Uma
condição: pago a metade.
– A
senhora é minha convidada.
– Que
mal tem? Aqui é costume.
– Aqui
pode ser. Não de onde eu venho.
– Bem
paranaense, hein? No terceiro disco, ela voltou:
– Estou
pronta.
Toda
de azul, luva de crochê, salto alto. Uma fita no cabelo, não se
pintara. Sem brinco ou pulseira – não tinha anel de noiva?
– Quer
ir ao banheiro?
Bem
paranaense, embora com vontade, o herói recusou.
– Tem
restaurante por perto?
– Restaurante
é que não falta.
No
elevador desceram com um sujeito que, mão no bolso, ficou a
encará-la de alto a baixo.
– Reparou
no tipo? O prédio é meio suspeito. No quinto andar uma colega
promovia festinha. Sugeriu restaurante onde ia com o noivo. Os
automóveis em corrida louca e, para atravessar a rua, segurou-lhe o
braço. Ao manso toque, Nelsinho examinou-a de relance – gesto
natural de defesa. Na calçada, Alice retirou a mão.
– Envergonhada
do triste papel. Chega de falar de mim. Conte alguma coisa. Como vai
de namorada?
Primeiro
assunto que o interessava: a catástrofe da última paixão! Nunca
mais gostaria de outra mulher.
Oito
horas de uma noite quente de fevereiro: casais à sombra das árvores,
escondidos nos portais, ao longe deitados na praia.
– Cuide-se,
menino. Aqui dá muita vigarista. O olhar dos outros, chocados da
diferença de idade entre Nelsinho e a companheira, confundindo-os
com um par de namorados. O senhor gordo atalhou o caminho.
– O
rapaz é da minha terra. Veja o ar saudável.
Apalpando-lhe
o braço, o sujeito em voz baixa:
– Olhe,
querida. Não faça isso, minha flor. A bela ria-se – o brilho
suspeito do dentinho de ouro. Outra, não a moça infeliz do
apartamento, debruçada no ombro do gordo, muito íntimo.
– Mais
respeito, Moreira. Olhe que é do Paraná. O menino pensa que sou
bandida.
O
herói mordeu-se de raiva. Com ares protetores, ah cadelinha.
– Paciência,
Moreira. Não pode ser. Que tal amanhã?
Luz
vermelha acendeu na testa de Nelsinho, bruxuleou um momento,
apagou-se.
– Vamos,
meu bem.
Ela
o chamara meu bem. Única mulher que, aos oito anos, meu bem o
chamara, nunca mais esqueceu.
No
restaurante, Alice beliscou a carne branca do frango. Sem apetite,
jantava a hora tardia, essa vida de cidade grande.
– A
senhora...
– Me
chame de você.
– Mais
um pedacinho. Muito magra... Cala-te, boca! Era tarde: olho cheio de
terror.
– Magra,
não é? Me achou magra, não é? Não tenho passado bem. Uma gripe
muito forte.
– Outro
conhaque. Não bebe nada?
– Suco
de laranja. Fazer companhia.
A
bela evocou o noivo. Nelsinho bebericava mais uma dose. Alice acabou
aceitando uma cerveja. Falava de futebol, Alberto era fanático.
Aprendera tudo a fim de conversar com ele. Triste consolo de sua
ausência, no domingo ouvia os jogos de São Paulo.
– Não
fumo, obrigada. Me faz mal - e tossiu no lenço machucado entre os
dedos.
Outra
vez, cala-te boca. Sentimento delicado, a saúde delicada: ano
inteiro no sanatório. Nelsinho sonhava com a orgia do doente, a
febre o excita. Marcada na cidade natal: moça fraca do peito, falada
demais para casar. Bancando a virgem: o tal noivo devia ser amante,
quem sabe gigolô. Ai, ai, estou de pileque.
– Pronta?
O
programa era o bar dos marinheiros. Chamou o garçom.
– Vamos
dividir.
– Que
é isso, Alice? Senão me ofendo. Refizeram o caminho, ele um pouco
na frente, tomado de pressa. Ofegante, Alice falava menos. Deixo-a no
elevador, nunca mais me vê. Empurrou a porta, bem agitado:
– Que
horas serão?
Ela
espiou o relógio de pulso:
– Onze
e meia. É cedo. Entre um pouco. Uma caminhada e tanto.
Brilhou
o foco na testa e não se apagou. Pena, tão abatida, a cara balofa
no ressequido corpo.
– Um
cafezinho. Depois livre de mim. Abriu a porta, já descalça:
– Mulher
é boba. Só usa sapato apertado. Foi botar o chinelo e, no caminho,
um disco na radiola.
– Entre
aqui. Ouve melhor.
A
bela dirigiu-se ao banheiro. Ele sentou-se na beira da cama. Alguns
discos ao pé da radiola: Para a querida Alice, com o amor do... A
querida Alice, do seu querido... Alice, sempre querida, com o amor do
... Na capa, em cada dedicatória um nome diferente.
Ela
tornava do banheiro, sem o casaco. Ó não, pintara o lábio carnudo.
Uma senhora gasta e cansada, a mãe da professorinha - enganar a
filha com a mãe seria trair a mais doce lembrança da infância.
Perturbada,
Alice encontrou o seu olhar. Arrastando o chinelo, abriu a cortina,
debruçou-se na sacada.
– Venha
ver.
Grupo
de meninos ensaiava marchinha de carnaval.
– O
tempo de professora foi o melhor de minha vida.
Sacada
estreita e, ao indicar um dos pretinhos, roçou-lhe no braço o peito
mirrado.
– Ai,
que frio! Toda arrepiada.
– Dormir
com esse barulho?
Mão
na boca, sofreu acesso de tosse. Em Curitiba a notícia de que
desenganada. Durante o jantar, tossiu mais de uma vez, sem largar o
lencinho. Arregalada de pavor quando a achou magra. Enxugando as
lágrimas, o barulho da rua não era nada. O inferno eram os bondes.
Primeiros meses debatia-se na cama até de manhã. Com o tempo a
gente acostuma. As vezes um sedativo, não queria se viciar - muito
nervosa.
– Como
estou arrepiada...
Entrou
no quarto para mudar o disco. Nelsinho cuspiu na rua. Já que não
fazia o café:
– Preciso
ir.
Ocupada
com a radiola, nem ergueu os olhos:
– Alguém
esperando? Se não tem, fique aqui. Sem responder, Nelsinho
insinuou-se no banheiro – estou perdido, e agora? Duas voltas na
chave e urinou, cuidado de não fazer barulho. Como se lançar da
janela, se não havia janela? Bonitão no espelho, assim calado, deu
um arrotinho: puxa, estou bêbado. Abriu o armário e, atrás do pote
de creme, uma caixa de preservativo. Boca amarga, cigarro demais:
esfregou a pasta nos dentes. Ensaiou uma frase de despedida. Abro a
porta, aceno de longe – Adeus, beleza! e me atiro pela escada.
Abriu
a porta e estacou: a luz apagada. O quarto na penumbra vermelha do
painel da radiola, um disco em surdina. Imaginou Alice na sacada. Ou
na cozinha preparando o café. Então ela se mexeu na cama.
Alguns
passos, hesitante no meio do quarto. Outra vez, ela se agitou na
cama. Devia-lhe alguma coisa pelas primeiras letras? Arrastava o pé,
receio de tropeçar no tapete: não havia tapete. Calcou objeto
macio, o pacote das meias, ainda fechado. Na sombra distinguiu a
cama, os dois travesseiros, a dona inteirinha nua.
Suplicante,
estirou-lhe os braços, crispando os dedos no vazio. Irresoluto, o
moço apoiou o joelho na cama.
Chio
de triunfo no peito, Alice prendeu-lhe as mãos na nuca. Rosto
sanguinolento à luz mortiça, a boca aberta de vampiro descarnado e
lascivo – sem poder esperar, a ponta da língua dardejava entre os
dentes. Ele se deixou beijar – o soluço azedo de cerveja –,
adeus para sempre ao menino. A agulha recorreu o último sulco e
passou a arranhar o disco, sem que nem um dos dois a desligasse.
Dalton Trevisan, em O Vampiro de Curitiba
Nenhum comentário:
Postar um comentário