Nelsinho
abriu o portão, equilibrou-se nos tijolos soltos e, diante da porta,
conchegado no saco de estopa, onde limpava os pés, deu com o Paxá.
Tarde o cachorro descobriu que era ele, havia rolado os três degraus
com o pontapé. Velho e doente, nem rosnou, apenas gemeu de dor;
trêmulo, arrastando a perna, perdeu-se no fundo do quintal. O rapaz
bateu na porta e, sem esperar, entrou na cozinha deserta. Ouviu as
vozes do rádio e, pontinha de pé, dirigiu-se para a sala.
Do
corredor espiou a velha na cadeira de balanço, tigela erguida ao
peito, a engolir com avidez o caldo de feijão. Imóvel à porta, ele
não a tinha enganado: a velha sorvia ruidosamente a sopa, sem deixar
de seguir a novela. Nada que denunciasse a atenção – nem piscar
de pálpebra, nem arfar de narina, escancarada a boca quando a colher
ainda na tigela –, sabia de sua presença desde que saltara do
ônibus na esquina. Sob a ladainha dos atores percebia o chio do
sapato na areia, o leve toque na porta. Jamais lhe deu as costas –
não seria ela, velha matadora, quem se descuidasse do touro. O herói
espreitava o dia em que a surpreendesse no sótão, à beira da
escada...
– Boa
noite, dona Gabriela. Já veio a Neusa?
– Trocando
de roupa. – E segundo a regra do jogo: – Que susto, meu filho, me
pregou! – e a colher raspava o fundo da tigela. – O Paxá,
coitado, não tem força de latir.
Aviso
de que não subestimasse as velhas matadoras: sabia do pontapé no
guapeca do coração. Depositou a tigela na mesa do lado. Mão
trêmula, alcançou o copo.
– Tomando
sua cervejinha, dona Gabriela? Expressão obscena de gozo, bebia de
olho fechado.
– Ganhei
do Noca.
– A
primeira?
– É,
sim.
– Acabou
a garrafinha de rum?
Bigode
de espuma na boca encarquilhada.
– Fale
baixo, a Neusa escuta.
Exibiu
entre as raízes podres o último canino amarelo.
– Um
restinho só.
– Que
tal mais uma?
– Minha
perdição é você, meu filho. Emprestada, hein? Faço questão de
pagar.
– O
Zezinho não aliviou a carteira?
– Nem
queira saber.
Suspiro
nas entranhas da velha, que emborcou o copo. Apressou-se o rapaz em
servi-la.
– Bem
que escondi – e deu um arrotinho. – Essa tosse. Quero ver se
descobre.
– Tem
muito dinheiro, não é?
A
velha girou o rosto – não desvie o olho, conde Nelsinho, que está
perdido.
– Ai
de mim. Tivesse dinheiro, estava gemendo e sofrendo nesta cadeira?
Pensa que tenho, é?
No
buço da velha secavam as bolhas de espuma.
– Quer
outra garrafa?
O
dedinho inchado de nós catou fiapos da saia.
– Conte
para ninguém, meu filho. Senão eles escondem. Não me dão um gole.
– Fique
descansada. É segredinho.
– Cuidado,
a Neusa.
Ele
virou-se, não disfarçou a careta de desgosto.
– Que
foi, meu bem?
– Esse
vestido.
Até
que engraçadinho, xadrez azul e preto.
– Que
é que tem?
– Sabe
que tenho pavor.
– A
virgem há que fazê-la rastejar. Lavar meu pé, enxugá-lo no cabelo
perfumado.
– Quer
que mude?
Alguma
vez iria enfrentá-lo, não hoje:
– Bobinha
de mim.
Neusa
ergueu-se para beijá-lo. Ele voltou o rosto e, franzindo a
sobrancelha, designou ali a múmia, pescoço torto a fim de
aproveitar a última gota. A garrafa vazia deixou a velha amarga. Mal
o percebeu instalado na cadeira:
– Ai,
meu filho. O que é a doença. Deus te livre sofrer como eu. Velho
pode morrer, ninguém liga.
Cruz
na boca, ó diaba agourenta.
– Disse
bem, dona Gabriela. Cadê o pessoal?
– Lígia
no cinema com o Artur.
– E
o Zezinho?
– Acha
que podiam ir só os dois? Afogá-la no barril de rum – ela e o
chantagista do Zezinho.
– Não
tem medo de ficar sozinha?
Ela
reclinou-se na cadeira, à mostra o tornozelo inchado – um
labirinto de grossas varizes roxas.
– O
velho sempre só. Nem queira saber o que é viver assim. A ninguém
desejo o que sofro. Eu que sei. Isso não é vida. Deus me perdoe.
Deus não existe. Se existisse, me deixava tanto sofrer?
Faraó
sentado no sarcófago, crispava no joelho pontudo a mão
transparente. Ali grudadas duas, três moscas.
– Justo
cada um pague os seus pecados. Não eu, que nunca desejei mal. Me
matei de bater roupa no tanque. Gastei os dedos de esfregar a chapa
do fogão. Perdi os olhos de costurar à noite. Se alguém devia
sofrer não eu – era o Carlito. Devia ter acontecido para o
Carlito.
– Ele
não morreu?
– Levou
uma vida feliz. E não sofreu para morrer. Os dias bebendo com as
vagabundas. Me arrebentei de trabalhar, condenada a esta cadeira. Ele
se regalou e morreu na força do homem.
– Morreu
de quê?
– Tumor
na cabeça. Sem ninguém. Pedindo o meu perdão. Que o fosse ver na
hora da morte. Rezei no velório, isso sim. Perdoar é que não.
Mão
no bolso, Nelsinho batia-se pela saleta, encurralado. Fingindo
admirar a Santa Ceia, careta medonha para o papagaio pesteado.
Apontou-lhe espingarda imaginária na nuca. Se bem não espantasse as
moscas, ela coçou o alvo no pescoço. – Me ouvindo, meu filho? Não
queira ficar igual a mim. Fui moça feito você.
Lá
estava a praguejá-lo, rainha louca. Bem feito, castigo do céu.
Sempre
a falar, dirigiu-se à escada, abriu a porta da despensa. Um passo na
escuridão, dobrou a cabeça e, sem acender a luz, afastou as latas
de açúcar, feijão, arroz, desentranhou outra garrafa.
– Reze
por mim, meu filho. Não sei o que é dormir. Sentada na cama, à
escuta... A bulha do morcego. Um grilo preto no canteiro de couve. Lá
no degrau os dentes do Paxá estalando. Se não é a cervejinha...
– Não
se trata com médico?
– Única
esperança é um milagre.
Fez-se
o milagre: Neusa assomou à porta. Num salto o rapaz agarrou-lhe a
mão. Atravessando o corredor, arrastou-a para a sala vizinha;
primeiro exibiu a língua para a velha, entretida em derramar a
bebida sem fazer espuma.
Tirou
o paletó, estendeu-se com gemido no sofá. Neusa fechou a janela –
Zezinho, oito anos, era o olho da diaba. Ao erguer o braço, a blusa
branca revelou nesga de carne: sei que não devo, muito magro, uma
tosse feia – se não me cuido, nasce cabelo na palma da mão. A
bela sentou-se na ponta do sofá, ele cruzou os pés na mesinha.
– Por
favor, Neusa. Nunca me deixe só com ela. Para aguentar tua avó
precisa ser santo. Por que não serve vidro moído na sopa?
– Fale
baixo. Ela escuta.
– O
rádio ligado.
– Ela
entende através da parede.
– Bem
desconfiei. Ouviu o pontapé no Paxá.
– É
bruxa.
– Mudá-la
para o sótão. Acaba rolando da escada.
– Não
diga bobagem, querido. Chega dessa velha horrorosa.
– Que
você fez?
Abriu
os braços no espaldar. Neusa apoiou a cabeça no seu ombro.
– Trabalhei.
– Faz
tempo que chegou?
– Pouco
antes de você.
– Teu
patrão paga extraordinário?
– Nem
um tostão.
– Não
quis se fazer de engraçadinho?
– Seja
bobo, querido. É casado.
– E
daí?
– Tenho
noivo particular.
– Como
é que ele sabe?
– Você
nunca foi me esperar?
– Que
foi que falou?
– Achou
você muito simpático. Até pergunta quando são os doces.
Ah,
os doces, e? Esses doces, quem vai comer é o Paxá. Ela aninhou-se
no peito e, erguendo a cabeça, beijou-o na pontinha da orelha.
– Tenho
de esperar muito, querido? Não posso com essa diaba.
– Faça
isso não. Todo arrepiado.
A
moça prendeu-lhe a cabeça nas mãos, deu um beijo frenético: a
língua se oferecia no lábio entreaberto.
– Não
para de chupar bala de hortelã.
– Quer
que jogue?
– Mania
essa!
A
oportunidade de me salvar: fazer uma cena e adeus, beleza!
– Não
fique bravo, meu bem.
Com
os olhos procurou um lugar: o vaso de violetas? A janela, fechada.
Fitou-o chorosa.
– Que
eu engula?
– Se
gosta de mim, engole.
Deglutiu
a bala inteirinha. Doeu, uma lágrima saltou de cada olho. Esta não
me escapa – é minha.
– Falei
brincando.
– Tudo
que você quiser.
– Tudo,
Neusa? Tudo mesmo? Ofereceu-lhe, sim, a boca inchada de beijos.
Crisparam-se
as mãos do rapaz no espaldar – sei que não devo, é loucura. A
velha na saleta, assim não adianta xarope de agrião. De leve afagou
o braço lisinho. Sabe o delírio de uma carne em flor? A mão
escorregou – sou fraco, Senhor, não mereço – até empalmar a
pêra descascada do seio. O que é prender um pintassilgo no alçapão?
O herói apertou a pálpebra: o biquinho do pintassilgo beliscava a
mão do dono.
Esmagada
pelo abraço, a moça libertou uma das mãos e introduziu-a sob a
camisa – cinco patinhas úmidas de mosca a arrepiá-lo da nuca à
ponta do pé. Derretido de gozo, comprimiu segunda vez a pálpebra –
uma cóceguinha no céu da boca, prestes a uivar.
Estalavam
as molas do sofá. Ó Deus, se a velhota, de repente? Sentou-se
penosamente, suportando o peso da moça. Ofegante, respirou de boca
aberta, dedo tremente abriu a blusa. Afastou-a do sofá para
desprender a blusa, espirrou o sutiã no colo da moça. Sempre nova a
descoberta do pequeno seio, metade exata de limão – e
precipitou-se para beijá-lo. Diante do peito alvacento de pombinha
as dores do mundo perdiam o sentido.
Mal
o tempo de esconjurar a velha – afogado que afunda terceira vez a
cabeça – e rolou, e rolaram os dois pelo sofá, pequeno demais
para os acolher. Não podiam deitar-se, suspendeu-a pela cintura,
ficaram de pé.
Largou-a
um instante, com repelão desfez-se da camisa. Beijou a bela que
desfalecia, filhotes famintos roubando alimento um da boca do outro.
Mão frenética nas prendas deliciosas, encontrou a lasca da saia,
libertou o único botão. Aos poucos a saia preta devassava a
calcinha rósea. Um passo atrás, a saia deslizou ao pé da moça:
Neusa ai, Neusa! Cheia de aflição, gemeu baixinho – Por lavar,
por favor! Desesperado – tomara a velha pense que é o Paxá –,
ergueu-a com as duas mãos, que ficasse do seu tamanho. Ela entendeu,
alçou-se na ponta do pé, um coube direitinho no outro.
O
herói pairou a nove centímetros do chão. Ao tatalar da asa da
loucura: Qual é teu nome? Responda depressa: Quem é você? Depressa
– e antes que pudesse, dona Gabriela entrou na sala.
Separaram-se,
cambaleando cada um de seu lado. O coração de Nelsinho disparou a
mil por minuto. Uma veia, de que nunca suspeitara, latejava na testa
a ponto de rebentar: Me acuda, mãe do céu.
– Que
é... a senhora quer, vovó?
Da
garganta de Neusa – não era a sua voz. A velha recolheu o braço
estendido, balançou a cabeça em silêncio, olho bem aberto. Na teia
escura de rugas lampejo azul de desconfiança.
– Por
que tão quietos?
O
herói estupefato diante da velha que os enfrentava sem piscar.
– Por
que está de pé, menina?
– Eu...
trocando a lâmpada.
– O
foco queimou?
– Agora
mesmo.
– Vocês
se comportaram? O Nelsinho é de confiança. O que esperando, minha
filha? Pegue um foco na despensa.
Neusa
pisou o monte de roupa. Ao alcance da megera, junto da porta. Agora
estende a mão, agarra a menina – tenho de fazer uma carnificina.
Quase um grito, para que o olhasse:
– Quer
que eu – a voz partiu-se, continuou sem fôlego – outra
cervejinha?
– Muito
gentil, meu filho. Daqui a pouco... Se soubesse. Tão só, lá na
sala. Uma dor fininha no coração. Pensei que era o fim.
A
moça tornou de mansinho, o seio na mão:
– Aqui
o foco, vovó.
Descalçou
o sapato, subiu na cadeira:
– Pronto.
Sentou-se
ao lado do rapaz, que enxugava o suor frio da testa. Sempre a vigiar
a velha, quase sem vê-la, óculo embaçado. Com um suspiro, a anciã
afundou-se na poltrona, repuxou o xale negro polvilhado de caspa.
– Ah,
minha filha, você soubesse... Contava para o Nelsinho – e o pé
sacudido por tremores, um pangaré que espantasse as varejeiras. –
Pagando o pecado de outro.
Ah,
meus filhos, o que é sofrer como eu – e deu um arroto.
A
bruxa de pilequinho.
– Mais
uma garrafa, dona Gabriela? Mil garrafas não a fariam calar a boca.
– Gosto
de você, Nelsinho. Como de um filho. Deus o livre e guarde da minha
doença. Reze por mim.
Derrotado,
baixou a cabeça, prendeu três botões da camisa,
– Não
queira ficar como eu. Só eu sei. Isso não é vida.
Observando
a avó cega e concordando com ela – Sim, vovó. Pois é, vovó. É
sim, vovó – Neusa desabotoou um, dois, três botões e voltou a
beijá-lo na pontinha da orelha.
Dalton Trevisan, em O Vampiro de Curitiba
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