sexta-feira, 9 de agosto de 2024

A captura


Em uma mistura de iorubá e achanti, uma das mulheres perguntou se estávamos sozinhas, eu respondi que sim, e que morávamos em Uidá mesmo. Ela então quis saber se tínhamos família e eu contei sobre a minha avó. Quando soube que éramos apenas nós três, ela disse que era melhor assim, pois deixaríamos uma só pessoa chorando por nós, confirmando que seríamos mandadas para o estrangeiro, que muitos deles já estavam ali havia vários dias, como ela, esperando para embarcar. Todos os dias chegava mais gente capturada em muitos lugares da África, falando línguas diferentes e dando várias versões sobre o nosso destino. Perguntei onde ficava o estrangeiro e ela não sabia, mas outra mulher que estava por perto disse que era em Meca. Ela e alguns outros que nos mostrou, dizendo serem muçurumins, estavam todos indo para Meca, e deveríamos nos alegrar por Meca ser uma terra sagrada e feliz, para onde todos tinham que ir pelo menos uma vez na vida, cumprindo as obrigações com Alá. Como eu não sabia quem era Alá, ela disse que é o todo-poderoso, o que tudo vê, o que tudo pode, o que tudo sabe, o que nunca se engana. A muçurumim se chamava Aja e estava acompanhada da irmã, Jamila, e do Issa, marido das duas, que estava no meio dos homens. Eles pareciam felizes e tinham chegado ao forte no dia anterior. A Tanisha, a mulher com quem eu tinha conversado primeiro, disse que não, que havia um grande engano, que tinha sido aprisionada junto com o marido e o filho, e estávamos todos sendo levados para o estrangeiro, que até poderia ser Meca, pois não sabia onde ficava, mas era para virarmos carneiros dos brancos, pois eles gostavam da nossa carne e iam nos sacrificar.
As duas mulheres iniciaram uma discussão e logo todas as outras já estavam falando ao mesmo tempo. Não éramos muitas, um pouco mais que os meus dedos e os da Taiwo, que era como eu sabia contar na época. A grande maioria era de homens, quase todos jovens. A Tanisha explicou que os lançados tinham matado todos os velhos e as crianças, alguns pelo caminho e outros logo ao chegarem ao barracão, e que a Aja ainda não tinha visto nada disso por ter chegado havia pouco tempo. Disse também que, às vezes, alguns guardas batiam muito em todos, talvez para amaciar a carne. Os brancos não gostavam de carne de crianças e de velhos, e nós, eu e a Taiwo, só tínhamos sido escolhidas porque éramos ibêjis e dávamos sorte. Eu e a Taiwo estávamos bastante assustadas, e ela começou a chorar e a dizer que queria a nossa avó, mas a Tanisha não se importou e continuou falando coisas horríveis, parando apenas quando os muçurumins se levantaram, viraram todos na mesma direção e começaram a rezar, segurando um colar de contas. Depois de correrem os dedos por um certo número de contas, eles se ajoelharam e inclinaram o corpo para a frente, encostando a testa no chão, para depois se levantarem e repetirem tudo muitas vezes. Só depois que eles terminaram foi que a Aja e a Jamila começaram a fazer a mesma coisa, e então reparei nos panos com que cobriam a cabeça e nos vestidos que iam até os pés. Eram bonitos, e elas me disseram depois que era um traje de festa e de grandes ocasiões, como visitar a terra sagrada.
Eu queria que o Kokumo e a minha mãe estivessem por perto, porque talvez eles soubessem o que fazer, ou pelo menos em quem acreditar, já que eu não sabia. Tanto a Tanisha quanto a Aja pareciam ter muita certeza do que diziam, mas, em qualquer das hipóteses, eu estava muito preocupada com a minha avó, que não sabia onde estávamos. Se soubesse, ela poderia falar com o Ayodele, que conhecia muitos estrangeiros e talvez até conhecesse o Chachá, que a Tanisha disse ter o poder de mandar prender e mandar soltar quem bem entendesse. Não perguntei como ela sabia de tudo aquilo, mas desconfio que tivesse ouvido nas conversas dos lançados, pois disse também que o Chachá nos trocava por armas, fumo, pólvora e bebidas, e que eu e a Taiwo, se não fôssemos ibêjis e para presente, não seríamos trocadas porque éramos pequenas e valíamos pouco. Por isso eles tinham deixado os outros filhos dela em Oyó, os três menores, e pegado apenas o marido, Amari, e o filho mais velho, que se chamava Daren porque tinha nascido à noite.
Somente quando entraram alguns guardas, distribuindo feijão, farinha, inhame e tinas de água que passavam de mão em mão, foi que percebi como estava com fome. Nem todos ganharam, como alguns homens que estavam amarrados a um canto, de castigo por terem brigado. Primeiro, brigaram entre si, e a Tanisha não soube dizer o motivo porque eles falavam uma língua que ela não conhecia, e quando os guardas tentaram separar a briga, avançaram em cima deles. Mesmo quem antes estava quieto entrou na briga, e só não participaram os muito cansados por terem chegado havia pouco tempo, às vezes caminhando desde muito longe, e os que ainda não tinham sido desamarrados. E nem as mulheres. Mas logo apareceram mais guardas, que conseguiram controlar a briga e levar seus companheiros para fora, alguns bem machucados, outros provavelmente mortos. Entre os pretos havia mortos com certeza, pois lutaram com homens armados e deixaram no armazém o cheiro que reconheci, cheiro de sangue, o mesmo do riozinho do Kokumo e da minha mãe. O vestido novo da Taiwo estava sujo de terra e, quando perguntei, ela disse que o meu também estava. Mesmo assim, continuávamos as mais limpas entre todos os prisioneiros, muito mais ainda do que os que estavam de castigo. Alguns deles estavam amarrados por uma só corda que prendia os pulsos aos tornozelos, o que fazia com que mantivessem as pernas dobradas e as cabeças enfiadas entre os joelhos. A Tanisha disse que, desde a briga, três deles haviam morrido e ainda não tinham sido retirados, estavam em um canto, cobertos com uma antiga vela de navio, e que logo o cheiro começaria a incomodar ainda mais. Como se já não incomodasse, como se fosse possível respirar bem em um ambiente onde, sabe-se lá há quanto tempo, acumulavam-se os cheiros de sangue, de urina e de merda, que venciam facilmente a terra jogada por cima do buraco cavado no chão quando precisávamos fazer as necessidades.
Era noite, dava para perceber a falta de claridade por entre a palha do teto, quando a porta se abriu e entraram mais capturados, todos homens. Àquela altura, eu já achava que a Tanisha estava certa, que éramos mesmo prisioneiros e seríamos trocados por mercadorias do estrangeiro. Mercadorias vendidas nos mercados de Uidá e, quem sabe, até no de Savalu, e que provavelmente nós mesmos já tínhamos comprado quando outras pessoas foram trocadas. Os novos prisioneiros chegaram amarrados uns aos outros pelos pés e pelo pescoço, vigiados por guardas que carregavam lanças em uma das mãos e tochas acesas na outra. O lugar já estava bastante cheio e quase não havia espaço para eles, mesmo porque muitos estavam deitados, dormindo. Para que se sentassem e dessem lugar para mais pessoas, foram cutucados com lança e com fogo, e quando parecia que iam reagir por causa do susto, foram contidos a pontapés e com ameaças de queimadura de verdade. A lança, a Tanisha disse que só usariam em último caso, para se defenderem, porque poderia matar e o Chachá não gostava de perder mercadoria, o que significava perder dinheiro. Alguns guardas tinham um pano amarrado por cima do nariz e gritaram que éramos uns porcos, que merecíamos o destino que nos seria dado pelos dois brancos que entraram logo em seguida, os mesmos que eu tinha visto na praia. Eles mandaram que os guardas fossem na frente, iluminando com as tochas, e seguiram passando os olhos sobre nossas cabeças, como se estivessem contando. O que nos tinha escolhido não nos reconheceu, e fiquei com medo de que não nos quisesse mais para presente, que tivesse mudado de ideia e nós também virássemos carneiros. Eu sentia muita vontade de chorar, mas não queria amedrontar ou entristecer a Taiwo ainda mais.
Quando os homens saíram, a Tanisha nos abraçou e disse que logo partiríamos. Os muçurumins se alegraram e viraram todos na mesma direção, repetindo juntos e inúmeras vezes uma única palavra, que não consegui entender. A Tanisha chorava e, encostada no peito dela, que era magro igual ao da minha avó, eu pensei em Xangô, em Nanã, em Iemanjá e nos Ibêjis, pedindo que estivessem sempre conosco, e mesmo quando fôssemos embora dali, que fossem junto. Acho que foi a primeira vez que os senti. Abracei a Taiwo e coloquei a cabeça dela sobre os peitos de Nanã, e fiquei com os de Iemanjá. Xangô sentou-se ao nosso lado e passou a mão sobre nós, abençoando, e os Ibêjis cantaram até que conseguíssemos dormir. Foi como cachaça, não como felicidade, mas sentimos uma quentura por dentro do corpo abrandando a tristeza. Era o que dava para sentir, porque, mesmo se tivéssemos ayo20 em nossos nomes, como a Titilayo e o Ayodele, não ficaríamos felizes pensando que nunca mais veríamos a nossa avó, nem a esteira nova, nem a casa nova, nem a estátua dos Ibêjis, da qual não era bom que eu e a Taiwo nos afastássemos, pois eles nos protegiam.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

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