O Grito (1893), de Edvard Munch
O
que é arte, então, se descartamos o confuso conceito de beleza? As
últimas e mais compreensíveis definições, independentes do
conceito de beleza, seriam as seguintes: a arte é uma atividade que
já emerge no mundo animal, proveniente da sexualidade e de uma
propensão para a brincadeira (Schiller, Darwin, Spencer),
acompanhada por uma excitação agradável da energia nervosa (Grant
Allen). Essa é a definição fisiológico-evolucionária. Ou, a arte
é uma manifestação exterior, por meio de linhas, cores, gestos,
sons ou palavras, de emoções vivenciadas pelo homem (Véron). Essa
é a definição prática. Ou, segundo a mesma recente definição de
Sully, a arte é “a produção de um objeto permanente ou ação
passageira, que se presta não somente a proporcionar desfrute ativo
ao seu produtor, mas a comunicar impressão prazerosa a um certo
número de espectadores ou ouvintes, independentemente de qualquer
benefício pessoal a ser auferido disso”.
A
despeito da superioridade dessas definições em relação às
definições metafísicas baseadas no conceito de beleza, elas ainda
estão longe de ser precisas. A primeira delas,
fisiológico-evolucionária, é imprecisa porque não fala da
atividade que constitui a essência da arte, mas de suas origens.
Essa definição pelo impacto fisiológico sobre o organismo humano é
imprecisa, ainda, porque muitas outras atividades relativas ao homem
podem caber nela, como ocorrem nas novas teorias estéticas que acham
que é arte fazer belas roupas e perfumes agradáveis, e até mesmo
comida. A definição prática que supõe que a arte é a expressão
das emoções é imprecisa porque um homem pode expressar suas
emoções por meio de linhas, cores, sons e palavras sem afetar
outros com isso, e essa expressão então não será arte.
A
terceira definição, de Sully, é também imprecisa porque, na
produção de objetos que proporcionam prazer ao produtor e uma
impressão agradável aos espectadores ou ouvintes, independentemente
de algum benefício para eles, podem ser incluídos a execução de
truques de mágica, números de ginástica e outras atividades que
não são arte. Por sua vez, muitos objetos que produzem uma
impressão desagradável, como uma cena lúgubre e cruel em uma
descrição poética ou no teatro, são inquestionavelmente obras de
arte.
A
imprecisão de todas essas definições resulta do fato de que em
todas elas, tal como nas definições metafísicas, o objetivo da
arte está colocado no prazer que extraímos dela, e não em seu
propósito na vida do homem e da humanidade.
Para
definir arte com precisão, devemos antes de tudo parar de olhar para
ela como veículo de prazer e considerá-la desta forma: não podemos
deixar de ver que a arte é um meio de comunhão entre as pessoas.
Cada
obra de arte faz com que aquele que a recebe entre em um certo tipo
de comunhão com aquele que a produziu ou está produzindo e com
todos aqueles que, simultaneamente ou antes ou depois dele, receberam
ou irão receber a mesma impressão artística.
Tal
como a palavra, transmitindo os pensamentos e experiências dos
homens, serve para unir as pessoas, a arte serve exatamente para o
mesmo propósito. A peculiaridade desse meio de comunhão, que a
distingue da comunhão por meio da palavra, é que pela palavra um
homem transmite seus pensamentos a outro, enquanto que com a arte as
pessoas transmitem seus sentimentos umas às outras.
A
atividade da arte é baseada no fato de que o homem, ao receber pela
audição ou visão as expressões dos sentimentos de outro homem, é
capaz de experimentar os mesmos sentimentos daquele que os expressa.
O
exemplo mais simples: um homem ri e outro homem se sente alegre; ele
chora, e o homem que ouve esse choro se sente triste; um homem está
animado, aborrecido, e outro, olhando-o, entra no mesmo estado. Com
seus movimentos, o som da sua voz, um homem demonstra alegria,
determinação, ou, ao contrário, melancolia, calma — e essa
disposição se comunica aos outros. Um homem sofre, expressando-se
com gemidos e convulsões — e esse sofrimento é comunicado a
outros. Um homem demonstra seu sentimento de admiração, assombro,
medo, respeito por certos objetos, pessoas ou fenômenos — e outras
pessoas ficam contagiadas, experimentam os mesmos sentimentos de
admiração, assombro, medo, respeito pelos mesmos objetos, pessoas
ou fenômenos.
A
atividade da arte se baseia nessa capacidade que as pessoas têm de
ser contagiadas pelos sentimentos de outras pessoas.
Se
um homem contagia outro, ou outros, diretamente por sua aparência ou
pelos sons que produz no momento em que experimenta um sentimento, se
faz alguém bocejar quando ele mesmo sente vontade de bocejar, ou rir
e chorar quando ele mesmo ri ou chora por alguma coisa, ou sofrer
quando sofre, isso ainda não é arte.
A
arte começa quando um homem, com o propósito de comunicar aos
outros um sentimento que ele experimentou certa vez, o invoca
novamente dentro de si e o expressa por certos sinais exteriores.
Tomemos
o caso mais simples: um garoto que uma vez vivenciou, digamos, medo
ao encontrar um lobo nos conta sobre esse encontro e, para invocar
nos outros o sentimento que experimentou, descreve a si mesmo seu
estado de espírito antes do encontro, os arredores, a floresta, sua
despreocupação, e então a aparição do lobo, seus movimentos, a
distância entre o lobo e ele, e assim por diante. Tudo isso — como
se ao contar a história o garoto revivesse os sentimentos que
experimentou, contagiando seus ouvintes e fazendo-os reviver tudo que
ele, narrador, viveu — é arte. Mesmo que o garoto não tivesse
visto um lobo, mas tivesse muitas vezes sentido medo disso e,
querendo invocar em outros o sentimento que teve, inventasse o
encontro com o lobo, contando-o de tal maneira que por meio de sua
narrativa ele invocasse nos ouvintes o mesmo sentimento que teve ao
imaginar o lobo — isso também é arte. E, de modo idêntico, é
arte se um homem, tendo experimentado na realidade ou em imaginação
o horror do sofrimento ou a delícia do prazer, expressa esses
sentimentos sobre a tela ou no mármore de tal maneira que outros
sejam contagiados por eles. E da mesma forma será arte se um homem
que vivenciou ou imaginou sentimentos de regozijo, felicidade,
tristeza, desespero, alegria, melancolia, bem como as transições
entre esses sentimentos, vier a expressá-los em sons de forma que os
ouvintes se contagiem com eles e os vivenciem da mesma maneira como
ele os experimentou.
Sentimentos
os mais diversos, muito fortes e muito fracos, significativos e sem
valor, muito ruins e muito bons, desde que contagiem o leitor, o
espectador, o ouvinte, constituem a matéria da arte. O sentimento de
autonegação e submissão ao destino ou a Deus, retratado num drama;
os enlevos de amantes descritos em um romance; o sentimento de
sensualidade descrito em uma pintura; a vivacidade transmitida por
uma marcha triunfal na música; a alegria evocada por uma dança; a
comicidade causada por uma história engraçada; o sentimento de paz
transmitido por uma paisagem vespertina ou uma canção acalentadora
— tudo isso é arte.
Desde
que os espectadores ou ouvintes sejam contagiados pelo mesmo
sentimento que o autor experimentou, trata-se de arte.
Invocar
em si mesmo um sentimento certa vez experimentado e, havendo-o
invocado, transmiti-lo por meio de movimentos, linhas, cores, sons,
imagens expressas em palavras, de forma que outros vivenciem o mesmo
sentimento — nisso consiste a atividade da arte. Portanto, arte é
a atividade humana que consiste em um homem conscientemente
transmitir a outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que
ele vivenciou, e esses outros serem contagiados por esses
sentimentos, experimentando-os também.
A
arte não é, como dizem os metafísicos, a manifestação da ideia
misteriosa, ou beleza, ou Deus; não é, como os
estetas-fisiologistas dizem, uma forma de brincar em que o homem
libera um excedente de energia estocada; não é a manifestação de
emoções por meio de sinais exteriores; não é a produção de
objetos agradáveis; não é, acima de tudo, prazer; é, sim, um meio
de intercâmbio humano, necessário para a vida e para o movimento em
direção ao bem de cada homem e da humanidade, unindo-os em um mesmo
sentimento.
Da
mesma forma que, graças à capacidade humana de entender pensamentos
expressos em palavras, qualquer homem pode aprender tudo que a
humanidade fez por ele no domínio do pensamento, e pode no presente,
em virtude da capacidade de entender os pensamentos, participar das
atividades de outras pessoas, e pode ele mesmo, graças a essa
capacidade, transmitir os pensamentos que recebeu de outros, bem como
os seus próprios pensamentos a seus contemporâneos e à
posteridade. Assim, a capacidade humana de contagiar-se pelos
sentimentos de outras pessoas por meio da arte proporciona ao homem
acesso a tudo que a humanidade experimentou antes dele no domínio do
sentimento e aos sentimentos vivenciados por seus contemporâneos e
por outros homens milhares de anos antes, sendo ainda possível para
ele transmitir esses sentimentos a outras pessoas.
Se
os homens fossem incapazes de receber todos os pensamentos
transmitidos em palavras por aqueles que viveram antes deles, ou de
transmitir seus próprios pensamentos a outros, eles seriam como as
bestas ou como Kaspar Hauser.
Se
não possuíssem essa outra capacidade — a de serem contagiados
pela arte —, talvez fossem ainda mais selvagens e, acima de tudo,
mais divididos e hostis.
Portanto,
a atividade da arte é muito importante; tão importante quanto a
fala e da mesma forma amplamente disseminada.
Tal
como a palavra nos afeta não apenas em sermões, orações e livros,
mas em todas aquelas enunciações nas quais transmitimos nossos
pensamentos e experiências uns aos outros, assim também a arte, no
sentido amplo da palavra, permeia toda a nossa vida, ao passo que, no
sentido estrito da palavra, chamamos de arte somente algumas de suas
manifestações.
Estamos
acostumados a considerar arte somente o que lemos, ouvimos e vemos em
teatros, concertos e exposições, edificações, estátuas, poemas,
romances... Mas isso tudo é somente uma pequena parte da arte pela
qual nos comunicamos uns com os outros em nossa existência. A vida
humana está cheia de obras de arte de vários tipos, de canções de
ninar, piadas, mímica, decoração de ambientes, roupas e
utensílios, até serviços religiosos e procissões solenes. Tudo
isso é atividade da arte. Portanto, no sentido estrito da palavra,
não podemos denominar arte toda atividade humana que transmite
sentimentos, mas somente aquelas que, por alguma razão, escolhemos
entre todas e às quais damos importância especial.
Essa
importância especial sempre foi dada, por todo o mundo, àquela
porção de atividade que transmite sentimentos derivados de sua
consciência religiosa, e é essa pequena parte do todo que foi
chamada de arte no sentido pleno da palavra.
Essa
era a visão da arte entre os homens da Antiguidade — Sócrates,
Platão, Aristóteles. A mesma visão foi partilhada pelos profetas
hebreus e os primeiros cristãos; e ela é compreendida da mesma
maneira, hoje, pelos muçulmanos e pelos homens religiosos do povo.
Alguns
mestres da humanidade, como Platão, em A república, os
primeiros cristãos, os muçulmanos ortodoxos e os budistas muitas
vezes chegaram a rejeitar a arte em sua totalidade.
As
pessoas que têm essa visão, contrária à visão moderna que
considera qualquer arte boa desde que dê prazer, pensavam e pensam
que a arte, diferentemente da palavra — que é algo que não se
precisa escutar —, é tão altamente perigosa em sua capacidade de
contagiar as pessoas contra sua vontade que a humanidade perderia
muito menos se toda arte fosse banida do que se todo tipo de arte
fosse tolerado.
Essas
pessoas que rejeitaram toda arte estavam obviamente erradas, porque
rejeitaram o que não pode ser rejeitado — um dos meios mais
necessários de comunicação, sem o qual a humanidade não pode
viver. Mas não estão menos erradas as pessoas de nossa civilizada
sociedade europeia, do nosso círculo e da nossa época, ao tolerar
toda arte, desde que sirva à beleza — isto é, desde que dê
prazer às pessoas.
Antigamente,
havia o medo de que entre os objetos de arte houvesse alguns que
pudessem corromper, portanto toda arte era proibida. Agora, existe
somente o medo de que se possa ser privado de algum prazer
proporcionado pela arte, portanto toda arte é patrocinada. E eu acho
que o segundo erro é muito maior do que o primeiro, e suas
consequências são muito danosas.
Leon Tolstói, in O que é arte?
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