domingo, 16 de outubro de 2022

O homem que escutava as abelhas


1
Estou assustado com os olhos da minha mulher. Ela não consegue enxergar o lado de fora, e ninguém consegue enxergar lá dentro. Veja, são como pedras, pedras cinza, pedras marinhas. Olhe para ela. Veja como está sentada na beirada da cama, sua camisola no chão, rolando nos dedos a bola de gude de Mohammed, esperando que eu a vista. Estou ganhando tempo colocando minha camisa e a calça, porque estou muito cansado de vesti-la. Veja as dobras da sua barriga, a cor de mel do deserto, mais escura nas dobras, e as linhas muito finas e prateadas na pele dos seus seios, as pontas dos seus dedos com cortezinhos minúsculos, onde as formas de encostas e vales já estiveram manchadas com tinta azul, amarela ou vermelha. Houve época em que sua risada era ouro, você poderia vê-la, além de escutá-la. Olhe para ela, porque acho que ela está desaparecendo.
Tive uma noite de sonhos dispersos – ela diz. – Eles encheram o quarto.
Seus olhos estão fixos um pouco à minha esquerda. Sinto náusea.
O que isso quer dizer?
Eles eram fragmentados. Estavam por toda parte. E eu não sabia se estava acordada ou dormindo. Eram muitos os sonhos, como abelhas em um quarto, como se o quarto estivesse cheio de abelhas. E eu não conseguia respirar. Acordei e pensei, por favor, faça com que eu não sinta fome.
Olho para ela, confuso. Ainda não há expressão. Não lhe conto que agora só sonho com assassinato, sempre o mesmo sonho. Sou só eu e o homem, estou segurando o bastão e minha mão está sangrando; no sonho, os outros não estão lá, e ele está no chão, as árvores acima dele, e ele me diz alguma coisa que não consigo escutar.
E sinto dor – ela diz.
Onde?
Atrás dos olhos. Uma dor bem aguda.
Ajoelho-me em frente a ela, e olho nos seus olhos. O vazio absoluto que há neles me aterroriza. Tiro o celular do bolso, acendo a luz da lanterna neles. Suas pupilas dilatam-se.
Você vê alguma coisa? – pergunto.
Não.
Nem ao menos uma sombra, uma mudança de tom ou cor?
Só preto.
Enfio o celular no bolso e me afasto dela. Desde que chegamos aqui, ela piorou. É como se sua alma estivesse evaporando.
Você pode me levar ao médico? – ela pergunta. – Porque a dor está insuportável.
Claro – eu digo. – Logo.
Quando?
Assim que conseguirmos os documentos.

Fico feliz que Afra não possa ver este lugar. Mas ela gostaria das gaivotas, do seu jeito maluco de voar. Em Alepo, estávamos longe do mar. Tenho certeza de que ela gostaria de ver estes pássaros, talvez até a costa, porque foi criada junto ao mar, enquanto eu sou do leste de Alepo, onde a cidade encontra o deserto.
Quando nos casamos e Afra veio viver comigo, sentiu tanta falta do mar que começou a pintar água onde quer que a encontrasse. Pelo árido planalto da Síria, há oásis, córregos e rios que deságuam em pântanos e pequenos lagos. Antes de termos Sami, seguíamos a água, e ela a pintava com tinta a óleo. Existe uma pintura do Queiq que eu gostaria de poder rever. Ela fez com que o rio parecesse um escoamento de águas pluviais fluindo pelo parque da cidade. Afra tinha esse jeito de ver verdade em paisagens. A pintura, e seu mísero rio, lembram-me a luta para permanecer vivo. A cerca de trinta quilômetros ao sul de Alepo, o rio desiste da luta na rigorosa estepe síria e se evapora nos pântanos.
Os olhos dela me assustam. Mas estas paredes úmidas, os fios no teto e os outdoors, não sei como ela lidaria com tudo isto, caso pudesse ver. O outdoor logo aí fora diz que nosso número é excessivo, que esta ilha se partirá com nosso peso. Estou feliz que ela esteja cega. Sei o que isto parece! Se eu pudesse lhe dar uma chave que abrisse uma porta para outro mundo, desejaria que ela voltasse a ver. Mas teria que ser um mundo muito diferente deste aqui. Um lugar onde o sol acaba de nascer, tocando os muros que circundam a cidade antiga, e fora desses muros, os bairros que parecem alvéolos, as casas, apartamentos, hotéis e vielas estreitas, uma feira livre onde mil colares pendurados brilham à primeira luz, e mais longe, pelas terras do deserto, ouro sobre ouro, vermelho sobre vermelho.
Sami estaria ali, sorrindo e correndo por aquelas vielas com seus tênis surrados, uns trocados na mão, a caminho da loja para comprar leite. Tento não pensar em Sami. Mas Mohammed? Ainda espero que ele encontre a carta e o dinheiro que deixei debaixo do pote de Nutella. Acho que um dia haverá uma batida na porta, e quando eu abrir ele estará ali parado, e eu direi:
Mas como você conseguiu chegar aqui, Mohammed? Como soube onde nos encontrar?
Ontem, vi um menino pelo espelho embaçado de vapor do banheiro compartilhado. Ele usava uma camiseta preta, mas quando me virei, era o homem do Marrocos, sentado no vaso sanitário, mijando.
Você deveria trancar a porta – ele disse, em seu próprio árabe.
Não consigo me lembrar do seu nome, mas sei que ele é de uma aldeia perto de Taza, no sopé das montanhas Rif. Ontem à noite, ele me contou que é possível que eles o mandem para o centro de remoção, em um lugar chamado Yarl’s Wood. A assistente social acha que existe uma chance de eles fazerem isto. Nesta tarde, é minha vez de me reunir com ela. O marroquino diz que ela é muito bonita, que parece uma dançarina de Paris com quem ele uma vez fez amor num hotel em Rabat, bem antes de se casar com sua esposa. Ele me perguntou sobre a vida na Síria. Contei sobre as minhas colmeias em Alepo.
À noite, a proprietária nos trás chá com leite. O marroquino é velho, talvez tenha oitenta, ou mesmo noventa anos. Tem a aparência e o cheiro de quem é feito de couro. Lê Como ser um britânico, e às vezes sorri consigo mesmo. Fica com o celular no colo, e às vezes para ao final de cada página para olhar para ele, mas ninguém nunca telefona. Não sei quem ele está esperando, e não sei como chegou até aqui, nem por que fez tal viagem com uma idade tão avançada, porque ele parece alguém à espera de morrer. Ele detesta a maneira como os não muçulmanos ficam em pé para mijar.
Existe cerca de dez de nós neste B&B decadente junto ao mar, todos de lugares diferentes, todos aguardando. É possível que eles nos aceitem, é possível que nos mandem embora, mas já não há muito o que decidir. Que estrada tomar, em quem acreditar, se levantar novamente o bastão e matar um homem. Estas coisas pertencem ao passado. Logo evaporarão, como o rio.

Pego o abaya de Afra no cabide do guarda-roupa. Ela escuta e se levanta, erguendo os braços. Parece mais velha, agora, mas se comporta como mais nova, como se tivesse se transformado numa criança. Seu cabelo tem a cor e a textura de areia, já que o tingimos para as fotos, descorando o tom árabe. Eu o prendo num coque, e envolvo sua cabeça com seu hijab, fixando-o com grampos, enquanto ela orienta meus dedos, como sempre faz.
A assistente social estará aqui à uma da tarde, e todas as reuniões acontecem na cozinha. Ela vai querer saber como chegamos até aqui, e procurará um motivo para nos mandar embora, mas eu sei que se disser as coisas certas, se convencê-la de que não sou um assassino, então conseguiremos ficar aqui por sermos os que tiveram sorte, porque viemos do pior lugar do mundo. O marroquino não tem tanta sorte, terá que provar mais coisas. Agora, ele está sentado na sala de visitas, junto às portas de vidro, segurando com as duas mãos um relógio de bolso de bronze, aninhando-o em suas palmas como se fosse um ovo incubado. Olha para ele, esperando. Pelo quê? Quando me vê aqui parado, diz:
Ele não funciona, sabe? Parou numa hora diferente.
Levanta-o para a luz pela corrente e sacode-o com delicadeza, este relógio parado feito de… bronze… era a cor da cidade lá embaixo. Vivíamos em uma casinha térrea de dois dormitórios, em uma colina. Lá do alto, podíamos ver toda a arquitetura anárquica e os lindos domos e minaretes, e mais distante a cidadela apontando.
Era agradável sentar na varanda na primavera; podíamos sentir o cheiro da terra do deserto, e ver o sol vermelho recolhendo-se sobre a terra. Mas no verão, ficávamos dentro de casa com um ventilador ligado, toalhas molhadas na cabeça, e os pés numa bacia de água fria porque era quente como um forno.
Em julho, a terra ficava ressecada, mas em nosso jardim tínhamos árvores de damasco e amendoeiras, tulipas, íris e coroas-imperiais. Quando o rio secava, eu descia até o tanque de irrigação para pegar água para o jardim e mantê-lo vivo. Em agosto era como tentar ressuscitar um cadáver, então eu via tudo aquilo morrer e se fundir com o restante da terra. Quando estava mais fresco, dávamos um passeio e observávamos os falcões voando pelo céu do deserto.
Eu tinha quatro colmeias no jardim, empilhadas uma em cima da outra, mas o restante estava num campo na periferia leste de Alepo. Detestava ficar longe das abelhas. De manhã, eu acordava cedo, antes do sol, antes do chamado do muezim3 para a oração. Dirigia os cinquenta quilômetros até os apiários e chegava quando o sol estava nascendo, os campos cheios de luz, o zumbir das abelhas uma única nota límpida.
As abelhas eram uma sociedade ideal, um pequeno paraíso em meio ao caos. As obreiras viajavam para longe e por um espaço amplo para encontrar comida, preferindo ir aos campos mais distantes. Coletavam néctar de flores de limoeiros e trevos, sementes de cominho preto e anis, eucalipto, algodão, espinheiros e urzes. Eu cuidava das abelhas, alimentava-as, e monitorava as colmeias para impedir infestações ou más condições de saúde. Às vezes, eu construía novas colmeias, dividia as colônias ou criava abelhas-rainha – tirava as larvas de outra colônia e observava enquanto as abelhas cuidadoras alimentavam-nas com geleia real.
Mais tarde, na época da colheita, eu verificava as colmeias para ver quanto mel as abelhas tinham produzido, e depois punha os quadros com os favos nos extratores e enchia os baldes, raspando o resíduo para recolher o líquido dourado por debaixo. Era meu dever proteger as abelhas, mantê-las saudáveis e fortes, enquanto elas realizavam sua tarefa de produzir mel e polinizar a terra para nos manter vivos.

Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas

Nenhum comentário:

Postar um comentário