domingo, 28 de novembro de 2021

O som do rugido da onça | IV

A vida é o tempo que segue correndo, Iñe-e aprendeu. Até que se deu a chegada daquele homem desconhecido. Ele viera em uma grande comitiva como se fosse um grande chefe. Havia três montarias, um pequeno séquito de escravos, caçadores e pescadores a seu dispor, e muitos outros homens, entre eles um parente e um outro branco já conhecido do povo miranha. Esse branco, sempre com as armas postas na cintura, era muito animado, falador, conhecedor da floresta e das gentes de origem dela. Uma comitiva de muitas canoas fora anunciada dias antes pelos vizinhos, mas a embarcação do desconhecido, que era a principal, veio coberta de folhas de tamarica, para protegê-lo do sol, e só isso já indicava sua importância. Doze homens remavam para ele, uns da nação dos coerunas e outros da nação dos macunás. O homem que era como um grande chefe tinha um aspecto lastimável, por estar doente parecia que houvesse sido banhado na tintura rubra do achiote. Picadas dos carapanãs formavam calombos em seu corpo, e Iñe-e achou que aquele era um homem muito feio.
O alvoroço do povo reverberava no estampado das chitas, no chiado das miçangas, no tilintar dos troços de metal. Algumas crianças que de primeiro foram arredias agora cercavam os visitantes com seus olhos curiosos, admirados, e a presença daqueles homens monopolizava o cochicho das mulheres, ao mesmo tempo que dobrava a ocupação delas no preparo das comidas. Os homens agora tocavam os trocanos em resposta aos moradores adjacentes, anunciando que os brancos chegaram bem, que o principal deles repousava por causa da febre, que os subordinados estavam comendo, que todos eles estavam dançando, que vieram interessados em fazer negócios lucrativos.
O homem de aspecto lastimável é cuidado com beijus, sopa de yuca, água fresca e frutas até que a moléstia dê uma trégua a seu corpo. O velho avô faz o seu trabalho de cura com as ervas. E tão logo o branco se recupera, aqueles se tornam verdadeiramente dias de festa. Inaugurando um novo costume, a mãe de Iñe-e e Tsittsi recentemente havia sido repudiada e trocada por uma mulher mais jovem e mais alta pelo seu pai, o tuxaua. Temerosa do que poderia significar aquela perda de posição, recomendara, desde a chegada dos estrangeiros, com voz trêmula, que a filha mantivesse distância daqueles homens, especialmente quando estivessem tratando com o pai. Suas mãos trançando o fio de buriti em exato movimento de dedos em dança; seu coração, porém, palpitando, bambo. Igual recomendação lhe fez o avô, que por sua vez parecia mais encarquilhado e até tristonho.
Alguns dias depois de sarado, o branco partiu para as cachoeiras do Araracoara, e o pai se embrenhou com os guerreiros em busca dos escravos que o homem encomendara. Quando o tuxaua regressou, trazia alguns poucos homens, muitas mulheres e várias crianças. Eram crianças que aquele branco queria, Iñe-e ouviu o avô dizer a outro velho. Porém, na noite em que o tuxaua e o branco negociavam, Iñe-e ficou mais próxima do centro daquelas transações do que deveria. Ouviu o pai rir muito alto. Ouviu a voz do branco vexada, vacilante. Antes era costume que seu povo trocasse com os brancos apenas os inimigos e os órfãos dos inimigos por mercadorias variadas e ferramentas de trabalho. Mas, desde que esses negócios com os estrangeiros se haviam tornado mais constantes, muitas coisas tinham mudado, e alguns dos seus modos e hábitos começaram a se entranhar no tuxaua, o pai de Iñe-e, que se barbeava como eles e que passara mesmo a usar calça comprida e até uma casaca que a menina achava esquisita e feia. Ocasionalmente o pai até dizia palavras na língua dos brancos, a maioria das quais ele mesmo desconhecia o significado. Em uma de suas viagens fora batizado por um frade e desde então exigia ser chamado de João Manoel.
Iñe-e escutara uma vez as mulheres, sua mãe entre elas, dizendo que o pai pegara a doença dos brancos e que estava se tornando um estrangeiro em sua própria nação. Mas os guerreiros mais velhos e mesmo os jovens pareciam estar todos de acordo com ele, e o povo miranha se congratulava pelas trocas que o chefe se empenhava em realizar. Foi assim que nos últimos tempos as crianças órfãs e mulheres do seu povo haviam virado moeda também, e por isso a mãe e o avô de Iñe-e temiam as visitas dos brancos, especialmente por causa dela, e tentavam escondê-la dos olhos do pai, como se isso o fizesse esquecer de sua existência. Mas todos os esforços se revelaram inúteis. Não havia nenhum esconderijo a seus olhos, nada e nem ninguém que o impedisse.
Uma manhã em que o sol se levantou do mesmo jeito que sempre se levantava, e em que a mata falava sua língua do mesmo modo com que sempre falava, nada denunciava o que estava por acontecer. O pai de Iñe-e e o estrangeiro, que atendia pelo nome de Martius, firmaram acordo sobre a venda de sete crianças. Mas o homem branco deixaria o porto dos Miranhas levando consigo oito vidas. Iñe-e lhe fora dada como presente.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

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