quinta-feira, 29 de julho de 2021

O escolho de Montale

Falar de um poeta na primeira página de um jornal comporta um risco: é preciso fazer um discurso “público”, sublinhar a visão do mundo e da história, o ensinamento moral implícito em sua poesia; tudo aquilo que se diz é verdadeiro, mas depois nos damos conta de que poderia ser igualmente verdade para um outro poeta, que o acento inconfundível daqueles versos permanece fora do discurso. Tratemos portanto de manter-nos o mais próximo possível da essência da poesia de Montale ao explicar como hoje as exéquias desse poeta tão pouco inclinado a qualquer oficialidade, tão distante da imagem do “vate nacional” sejam um acontecimento em que o país inteiro se reconhece. (Fato tão mais singular dado que as grandes fés proclamadas pela Itália de seu tempo jamais o incluíram entre seus adeptos, ou melhor, ele não economizou o próprio sarcasmo contra todo “clérigo vermelho ou negro”.)
Gostaria de dizer em primeiro lugar: os versos de Montale são inconfundíveis pela precisão e impossibilidade de substituir a expressão verbal, o ritmo, a imagem evocada; “il lampo che candisce/ alberi e muri e li sorprende in quella/ eternità d’istante” [o relâmpago que cristaliza/ árvores e paredes e os surpreende naquela/ eternidade do instante]. Não falo da riqueza e versatilidade dos meios verbais, dote que também outros poetas nossos tiveram em grau elevadíssimo, e que se assemelha muitas vezes a uma veia copiosa e redundante, isto é, a tudo o que está mais longe de Montale. Montale não desperdiça nunca os golpes, joga a expressão insubstituível no momento justo e a isola em sua unicidade. “Turbati/ discendevamo tra i vepri./ Nei miei paesi a quell’ora/ cominciano a fischiare le lepri” [Perturbados/ descíamos entre os espinheiros./ Na minha terra àquela hora/ começam a assoviar as lebres].
Vou direto ao que interessa: numa época de palavras genéricas e abstratas, palavras boas para todos os usos, palavras que servem para não pensar e não dizer, uma peste da linguagem que transborda do público para o privado, Montale foi o poeta da exatidão, da escolha lexical motivada; da segurança terminológica visando capturar a unicidade da experiência. “S’accesi su pomi cotogni,/ un punto, una cocciniglia,/ si udì inalberarsi alla striglia/ il poney, e poi vinse il sogno” [Acendeu-se sobre marmelos,/ um ponto, uma joaninha,/ ouviu-se empinar contra a almofaça/ o pônei, e depois venceu o sonho].
Mas essa precisão para nos dizer o quê? Montale nos fala de um mundo turbilhonante, movido por um vento de destruição, sem um terreno sólido onde apoiar os pés, com o único recurso de uma moral individual suspensa à beira do abismo. É o mundo da Primeira e da Segunda Guerra Mundial; talvez também da Terceira. Ou quem sabe a Primeira ainda permaneça fora do quadro (na cinemateca de nossa memória histórica, sobre os fotogramas já meio desbotados da Primeira Guerra Mundial movem-se como subtítulos os versos descarnados de Ungaretti) e é a precariedade do mundo que se apresenta aos olhares dos jovens no primeiro pós-guerra que serve de fundo para os Ossi di seppia [Ossos de sépia], como será a espera de uma nova catástrofe o clima das Occasioni [Ocasiões], e a sua realização e as suas cinzas o tema da Bufera [A tempestade]. La bufera é o livro mais bonito que saiu da Segunda Guerra Mundial e, mesmo quando fala de outra coisa, é daquilo que fala. Tudo já está ali implícito, inclusive nossas ansiedades posteriores, até as de hoje: a catástrofe atômica (“e un ombroso Lucifero scenderà su una proda/ del Tamigi, del Hudsoh, della Senna/ scuotendo l’ali di bitume simi-mozze dalla fatica, a dirti: è l’ora” [e um sombrio Lúcifer descerá/ do Tâmisa, do Hudson, do Sena/ sacudindo asas de betume semidecepadas pela fadiga, para dizer-nos: é a hora]) e o horror dos campos de concentração passados e futuros (“Il sogno del prigioniero”).
Mas não são as representações diretas e as alegorias declaradas o que pretendo colocar em primeiro plano: essa nossa condição histórica é vista enquanto condição cósmica; também as menores presenças da natureza na observação cotidiana do poeta se configuram como vórtices. São o ritmo do verso, a prosódia, a sintaxe que levam em si esse movimento, do princípio ao fim de seus três grandes livros. “I turbini sollevano la polvere/ sui tetti, a mulinelli, e sugli spiazzi/ deserti, ove i cavalli incappucciati/ annusano la terra, fermi innanzi/ ai vetri luccicanti degli alberghi” [Os pés de vento levantam a poeira/ sobre os tetos, em redemoinhos e nas clareiras/ desertos, onde os cavalos encapuzados/ cheiram a terra parados em frente/ dos vidros rebrilhantes dos hotéis].
Falei de moral individual para resistir ao fim do mundo histórico ou cósmico que pode cancelar de um momento para outro a lábil pegada do gênero humano; mas é preciso dizer que em Montale, mesmo distante de qualquer comunhão sincera e de qualquer impulso de solidariedade, está sempre presente a interdependência de cada pessoa com a vida dos outros. “Occorrono troppe vite per farne una” [São necessárias muitas vidas para fazer uma outra] é a conclusão memorável de uma poesia das Occasioni, em que a sombra do milhafre a voar dá o sentido do destruir-se e refazer-se que conforma toda continuidade biológica e histórica. Mas a ajuda que pode vir da natureza ou dos homens não consiste numa ilusão unicamente quando um riacho muito fino que aflora “dove solo/ morde l’arsura e la desolazione” [onde só/ morde a aridez e a desolação]; somente remontando os rios até que se tornem delicados como cabelos é que a enguia encontra o lugar seguro para procriar; é só “num fio de piedade” que podem matar a sede os porcos-espinhos do monte Amiata.
Esse difícil heroísmo escavado na interioridade, na aridez e na precariedade do existir, esse heroísmo de anti-heróis é a resposta que Montale deu ao problema da poesia de sua geração: como escrever versos depois (e contra) D’Annunzio (e depois de Carducci, e depois de Pascoli ou pelo menos de uma certa imagem de Pascoli), o problema que Ungaretti resolveu com a fulguração da palavra pura e Saba com a recuperação de uma sinceridade interior que compreendia também o pathos, o afeto, a sensualidade: aquelas características do humano que o homem montaliano recusava ou considerava indizíveis.
Não existe mensagem de consolação ou de encorajamento em Montale caso não se aceite a consciência do universo hostil e avaro: é nessa rota árdua que o discurso dele continua o de Leopardi, embora suas vozes ressoem bastante diversas. Assim como, confrontado com o de Leopardi, o ateísmo de Montale é mais problemático, atravessado por tentações contínuas de um sobrenatural logo corroído pelo ceticismo de fundo. Se Leopardi dissolve as consolações da filosofia das Luzes, as propostas de consolação que são oferecidas a Montale são aquelas dos irracionalismos contemporâneos que ele pouco a pouco avalia e deixa cair com uma sacudida de ombros, reduzindo sempre a superfície da rocha sobre a qual se apoiam seus pés, o escolho ao qual se agarra a sua obstinação de náufrago.
Um de seus temas, que com os anos se torna cada vez mais frequente, é o modo com que os mortos estão presentes em nós, a unicidade de cada pessoa que não nos conformamos em perder: “il gesto d’una/ vita che non è un’altra ma se stessa” [o gesto de uma/ vida que não é uma outra mas ela mesma]. São versos de uma poesia em memória da mãe, onde voltam os pássaros, uma paisagem em declive, os mortos: o repertório das imagens positivas de sua poesia. Não poderíamos dar agora à sua lembrança melhor moldura que esta: “Ora che il coro delle corturnici/ ti blandisce nel sonno eterno, rotta/ felice schiera in fuga verso i clivi/ vendemmiati del Mesco…” [Ora que o coro das codornizes/ te acaricia no sono eterno, roto/ feliz bando em fuga rumo às encostas/ vindimadas do Mesco…].
E continuar a ler “dentro” de seus livros. Certamente isso lhe garantirá a sobrevivência, pois quanto mais lidos e relidos, seus poemas capturam ao abrir da página e não se exaurem jamais.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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