quarta-feira, 30 de junho de 2021

A brasilidade no traço do argentino/baiano Carybé

 

Torto Arado / 6

Quando Tobias retornou o sol já estava manso e começava a baixar no horizonte. Estava fraca de fome, enganei o estômago com os araçás bicados pelos pássaros e caídos no chão. Encontrei a casa de Maria Cabocla e foi de lá que trouxe a chama. Ela não se surpreendeu ao me ver, já nos conhecíamos de vista nas brincadeiras de jarê. Maria disse que não precisava de lenha. Depois percebeu que eu não respondia e estava parada diante dela como se aguardasse algo. Aí perguntou se era eu quem precisava de lenha. Por último, entendeu que queria fogo e me deu uma das achas que queimavam em seu fogão e que estavam com a ponta em brasa.
De imediato, Tobias abriu um sorriso quando entrou na casa. Temi por um momento que reclamasse por ter mexido em suas coisas, por ter tentado arrumar a bagunça, ainda que não tivesse conseguido fazer tudo naquelas horas que permaneci sozinha. Mas a diferença era clara. Ele olhava os cantos, a cama arrumada, o rasgo no colchão de palha de milho costurado – com linha e agulha que trouxe em minha trouxa –, a mesa limpa, as moscas que voavam mais distantes, a comida que fumegava no fogão. Não agradeceu, era um homem, por que deveria agradecer, foi o que se passou em minha cabeça, mas conseguia ver em seus olhos a satisfação de quem tinha feito um excelente negócio ao trazer uma mulher para sua tapera. Fiz um prato farto para ele, postei-me de pé ao seu lado, esperei que comesse, queria ver em seu rosto o deleite por provar meu tempero. Comeu ávido, com as mãos, despejava largas porções de farinha de mandioca em seu prato, até esvaziá-lo. Joguei as espinhas no mato. Nem esperei que pedisse por mais e repus o feijão e o peixe. Esvaziou com o mesmo entusiasmo do primeiro. Deixei que se afastasse para o banho na lata cheia que tinha ido buscar no rio, ao terminar a minha tentativa de arrumar a casa. Estava exausta quando entrei para me banhar no Santo Antônio.
Quando a noite caiu, acendi o candeeiro com o querosene que havia achado misturado ao lixo. Coloquei-me por perto da luz, sentada para costurar um dos dois lençóis puídos e com grandes rasgos que havia lavado pela manhã. Estava tomada pela agonia e tentava me concentrar na agulha. Tobias me cercou, bebia a cachaça que havia deixado em cima da mesa. Passou a falar do dia, das reses, de Sutério, dos trabalhos na fazenda. Eu parava por uns minutos para olhar um pouco para seu rosto, para que não pensasse que era desfeita minha costurar àquela hora. Para que não desconfiasse que temia o que estava por acontecer a nós dois, na mesma cama em que havia batido com o cabo da vassoura para levantar o pó e que havia costurado. Mas bastava que encontrasse seus olhos para de imediato desviar para a agulha que rompia a trama do tecido entrando de um lado a outro. E com o coração aos pulos dizia a mim mesma “a cada hora, sua agonia”.
Depois que ele me deitou na cama, beijou meu pescoço e levantou minha roupa, não senti nada que justificasse meu temor. Era como cozinhar ou varrer o chão, ou seja, mais um trabalho. Só que esse eu ainda não tinha feito, desconhecia, mas agora sabia que, como mulher que vivia junto a um homem, tinha que fazer. Enquanto ele entrava e saía de mim num vai-e-vem que me fez recordar os bichos do quintal, senti um desconforto no meu ventre, aquele mesmo que me invadiu pela manhã com o trotar do cavalo. Virei minha cabeça para o lado da janela. Tentei olhar pelas frestas a luz da lua que tinha despontado no céu mais cedo. Senti algo se desprender de seu corpo para meu interior. Ele se levantou e foi se lavar com o resto de água. Abaixei minha roupa e fiquei de costas com os olhos no teto de palha procurando filetes de luz. Procurando alguma estrela perdida, que se apresentasse como uma velha conhecida, para dizer que não estava sozinha naquele quarto.
No dia seguinte, logo depois que Tobias saiu para a lida, minha mãe apareceu trazendo Domingas. Tinha um farnel de comida: um pouco de carne seca, mel, ovos e feijão verde debulhado. Queria ver como eu estava, saiu cedo de casa, vieram caminhando aproveitando enquanto o sol ainda não estava a pino. Senti certo alívio de ver as duas. Salu tinha a apreensão nos olhos. Se não fosse a vergonha, teria me perguntado se me fiz mulher direito durante a noite, se ele tinha sido respeitoso comigo. Se espantaram com a quantidade de entulho que havia separado. Eu estava agitada, minhas mãos cortavam o ar, Domingas tentava acompanhar meu raciocínio e ria das minhas tarefas de nova dona de casa. Passamos horas felizes naquela manhã, mas senti um aperto no peito ao vê-las se afastarem tomando o rumo para casa.
Tobias retornava ao fim da tarde e a primeira coisa que fazia era dar uma talagada na garrafa de cachaça que ficava em cima da mesa. Depois tomava banho ou ia direto se sentar à mesa para a refeição. Eu parava o que estivesse fazendo para servir. No começo, parecia apreciar minha comida, sempre repetia. Depois passou a reclamar que tinha muito ou pouco sal. Que o peixe estava cru, e me mostrava pedaços em que eu não conseguia enxergar a falta de cozimento, ou outros que se esbagaçavam com as espinhas, dizendo que tinham cozido demais. Nessas horas eu ficava aflita, o coração aos pulos, magoada comigo mesma, me sentindo uma tonta por ter sido desleixada com o preparo. Mas suas queixas não passavam disso, não alterava o tom da voz, não falava alto. Falava como se olhasse para o cultivo e constatasse alguma coisa que enfraquecia a plantação.
Enquanto o tempo passava, Tobias parecia não sentir satisfação pelo que eu fazia. Se queixava de algum objeto que procurava e não encontrava. Dizia que eu não poderia mexer em tudo, que às vezes algo poderia parecer estar fora do lugar, mas estava no lugar certo, porque ele havia escolhido assim. Concordava. Assentia com a cabeça, mas evitava olhar seus olhos. Nessas horas, crescia a vontade de deixar tudo para trás, de voltar para minha casa, mas o que os vizinhos não diriam? Continuávamos a frequentar a casa de meu pai nas noites de jarê, todos agora sabiam que eu não era mais “Belonísia de Zeca Chapéu Grande” e que agora vivia com Tobias, logo, eu era “Belonísia de Tobias”. Deixava aquela mágoa morrer no peito, mormente quando ele levantava a roupa antes de dormir para entrar em mim. Ele dormia, roncava, não reclamava da mulher deitada, então ficava quieta por dentro, como se estivesse tudo bem.
Me levantava logo quando o via se mexer na cama, antes de o sol levantar. Mas era só acordar que vinha mais queixa: ou o café estava ralo como xixi de anjo, ou estava forte, uma borra de amargo. Procurava enxada, procurava foice, coisas que eu nem havia mexido. E se ele mesmo colocasse as coisas num lugar diferente, só por não lembrar, perguntava “mulher, onde está isso?”, “onde está aquilo?”, e sentia aflição, parava o que estava fazendo para ajudar a procurar. Se eu encontrasse, era como se ele tivesse feito, nem dizia palavra para agradecer. A coisa ficou tão ruim que eu me antecipava, nem esperava ele pedir, já dava tudo em suas mãos: cinto, sapato, chapéu, gibão, facão, só para não o ouvir chamando “mulher”. Me sentia uma coisa comprada, que diabo esse homem tem que me chamar de mulher, minha cabeça agitada gritava. Na casa de meu pai, quando íamos a cada quinze dias, ou nas visitas de minha mãe e Domingas, me chamava por meu nome e eu ignorava, não levantava nem a cabeça para concordar. Senti minha mãe um pouco cismada com minhas feições, com os desvios de meus olhos, com as coisas que minha presença queria reclamar, mas eu disfarçava, tentava nada expressar. O que mais me inquietava era que aquele não era meu jeito. Arisca, parei de ir para a escola mesmo sabendo qual a vontade de meu pai. Mesmo admitindo que aquilo fosse uma pequena frustração para ele, que labutou para que Água Negra tivesse uma escola para os filhos dos trabalhadores, mas enfrentando os sentimentos enviesados dos donos que só não foram contra a ideia porque o prefeito resolveu dar o nome do senhor pai deles à construção. Para eles era mais uma benfeitoria, não uma escola que daria estudo aos filhos da gente da fazenda. Os rapazes não se aproximavam de mim, ou porque me achavam feia, ou porque não poderiam conversar comigo, principalmente sem a interseção de Bibiana, ou porque me viam como um desafio, alguém que desafiava à força o que achavam ser privilégio dos homens. Era assim que me sentia. Mas ali, na casa do homem com quem vivia, nos limites daquele casebre de paredes que ruíam, era uma intrusa. Não me sentia à vontade para reagir, nem que fosse de forma serena, sem rompantes de violência nos gestos.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

Na ponta dos pés

de repente descobri
não digo américa nem pólvora
obra de tantos
conta perdida
ficar na ponta dos pés
além de nobre exercício
a mais sábia medida
para subir na vida.

Paulo Leminski

Zeca Baleiro / A Filha do Ogro

A vida é como a mãe Bubulina

Docemente, sem perceber, fui levado pelo sono. No dia seguinte, de madrugada, vi Zorba sorridente, repousado, vir puxar meus pés.
Levante-se, patrão — disse ele. — quero lhe contar meu projeto. Está me ouvindo?
Estou.
Sentou-se no chão à turca e pôs-se a explicar como ele instalaria um teleférico do pico da montanha até o mar; nós faríamos descer assim toda a madeira de que precisávamos para abrir galerias, e poderíamos vender o resto como madeira de construção.
Tínhamos decidido alugar uma floresta de pinheiros que pertencia ao mosteiro, mas o transporte custava caro e nós não encontrávamos mulas. Zorba havia, portanto, imaginado pôr em construção um teleférico com um grosso cabo, pilares e polias.
De acordo? — perguntou ele quando acabou. — você topa?
Topo, Zorba. De acordo!
Acendeu o braseiro, pôs a chaleira no fogo, preparou meu café; jogou-me um cobertor sobre os pés para que eu não sentisse frio e partiu, satisfeito.
Hoje — disse ele, — vamos abrir uma nova galeria. Encontrei um filão daqueles: um verdadeiro diamante negro!
Abri o manuscrito sobre Buda e penetrei em minhas próprias galerias. Trabalhei todo o dia, e à medida em que avançava, ia me sentindo aliviado, sentia uma emoção complexa — alivio, orgulho e nojo. Mas, me deixava empolgar porque sabia que, uma vez terminado esse manuscrito, arrumado e guardado, eu estaria livre.
Tinha fome. Comi umas uvas secas, amêndoas e um pedaço de pão. Esperava que Zorba voltasse, portador de todos os bens que alegram os homens — o riso claro, a boa palavra, as comidas saborosas.
No fim da tarde ele apareceu. Preparou o jantar, comemos, mas sua cabeça estava longe. Pôs-se de joelhos, enfiou na terra pequenos pedaços de madeira, estendeu um cordão e suspendeu, em polias minúsculas, um palito de fósforo; esforçava-se em achar a inclinação necessária do cordão para que a amarração toda não desabasse.
Se há mais inclinação do que é preciso, ele me explicava, estamos perdidos do mesmo jeito. É preciso achar a inclinação certa até o menor detalhe. E para isso, patrão, é preciso vinho e ciência.
Vinho temos bastante, mas ciência...
Zorba estalou uma gargalhada:
Você não é bobo, patrão — disse ele olhando-me com carinho.
Sentou-se para descansar e acendeu um cigarro. Ele estava de novo de bom humor e sua língua se desatou.
Se o teleférico tiver sucesso — disse ele, — poderíamos pôr abaixo toda a floresta; abriríamos uma serraria, faríamos tábuas, postes, madeirames, ganharíamos dinheiro à beça.
Depois, meteríamos um veleiro num dique, botávamos ele em ponto de bala e íamos correr o mundo!
Os olhos de Zorba brilharam, encheram-se de mulheres distantes, de cidades, luzes, casas gigantescas, de máquinas, de barcos.
É que já estou de cabelos brancos, patrão, e meus dentes já não são mais firmes; não tenho tempo a perder. Você é jovem, você pode ter paciência. Eu não posso. Palavra de honra, quando mais eu fico velho, mais eu fico selvagem! E não me diga que a idade adoça o homem e acalma o seu ardor! Nem vendo a morte ele estica o pescoço dizendo: “Corte-me a cabeça, faz favor, para que eu vá para o céu!” Eu, quanto mais passa o tempo, mais fico rebelde. Não desço a bandeira, eu quero conquistar o mundo!
Levantou e tirou da parede o seu santuri.
Venha cá, demônio — disse ele. — que está você fazendo nessa parede, sem dizer nada? Canta um pouco!
Eu não me cansava de ver com que precauções e ternura Zorba tirava o santuri dos panos em que o havia envolvido. Parecia que estava descascando um figo, despindo uma mulher.
Pousou o santuri em seus joelhos, debruçou-se sobre ele, acariciou ligeiramente as cordas — dir-se-ia que o consultava sobre a música que iria cantar, que ele lhe pedia para acordar, que ele docemente lhe pedia que viesse faze companhia a sua alma dolorida, fatigada da solidão. Começou uma canção: não deu certo, abandonou-a, começou outra; as cordas arranhavam como sentido dores, como se não quisessem. Zorba apoiou-se na parede, enxugou o suor que subitamente porejou de sua testa.
Ele não quer — murmurou, olhando com esforço para o santuri. — ele não quer.
Guardou-o de novo com cuidado, como se fosse uma fera e ele tivesse medo de ser mordido: levantou-se lentamente e recolocou-o na parede.
Ele não quer — murmurou de novo, — ele não quer e não podemos forçá-lo.
Sentou-se novamente no chão e colocou umas castanhas nas brasas, encheu os copos de vinho. Bebeu, bebeu mais, descascou uma castanha e deu-ma.

Você compreende, patrão? — perguntou-me. — eu não. Todas as coisas têm uma alma: a madeira, as pedras, o vinho que se bebe, a terra onde se caminha... Tudo, tudo, patrão.
Ergueu seu copo:
À sua saúde!
Esvaziou o copo e encheu de novo.
Porcaria de vida! — murmurou ele. — porcaria! Essa é também como a mãe Bubulina.
Pus-me a rir.
Ouça o que eu digo, patrão, não brinque. A vida é como a mãe Bubulina. Ela é velha, hein? Pois bem, e no entanto não deixa de ser picante. Conhece truques de lhe fazer rodar a cabeça. Fechando os olhos, parece que você tem nos braços uma mocinha de vinte anos. Vinte anos ela tem, eu juro, meu velho, quando você está em forma e apaga a luz. Você vai me dizer que ela está passada, que levou a vida de pau-para-toda-obra, que refocilou com almirantes, marinheiros, soldados, pregadores e juízes de paz. E daí? Que tem isso? Ela esquece depressa, a miserável, não se lembra de nenhum dos seus amantes, ela volta a ser, sem brincadeira, uma pomba inocente, uma patinha branca, uma pombinha, e ela cora, pode crer, ela cora e treme como se fosse a primeira vez. É um mistério a mulher, patrão! Ela pode cair mil vezes, que mil vezes se erguerá Virgem. Mas, por que, perguntará? Pois bem, porque ela não se lembra.
O papagaio se lembra, Zorba — disse eu para implicar. — ele grita sempre um nome que não é o seu. Isso não enraivece você, no momento em que você sobe com ela ao sétimo céu, ouvir o papagaio gritar: “Canavarro! Canavarro!” Não sente você vontade de agarrá-lo pelo pescoço e estrangulá-lo? Pelo menos já era tempo de você ensiná-lo a gritar: “Zorba! Zorba!”
Oh! Como você é ultrapassado! — disse Zorba, tapando os ouvidos com suas grandes patas. — por que você quer que eu o estrangule? Eu adoro ouvi-lo gritar esse nome. De noite ela pendura-o em cima da cama, a miserável, e logo que ele nos vê brincando, com seus olhos que furam a obscuridade, o tolo põe-se a gritar!
Canavarro! Canavarro!”... E imediatamente, eu juro patrão, embora você não possa compreender isso, você que está apodrecido pelos seus livrecos, eu juro que me sinto de sapatos de verniz nos pés, com plumas na cabeça, e uma barba doce com seda e que cheira a âmbar. “Buon giorno! Buona será! Mangiate macarroni?” eu viro Canavarro, de verdade. Subo ao meu navio capitânia com mil bocas de fogo e lá vou eu... fogo nas mechas! E o canhoneiro começa!
Zorba riu às gargalhadas. Fechou o olho esquerdo e me olhou.
Você me desculpe, patrão — disse ele, — mas eu pareço meu avô, o Capitão Alexis, Deus tenha sua alma! Com cem anos ele se sentava, de tarde, diante da sua porta para ficar olhando as jovens que iam à fonte. Sua vista estava diminuindo, ele não distinguia mais as formas. Então ele chamava as moças: “Diga-me, quem é você?” — Lenio, filha de Mastrandoni! — “Venha cá um pouco para que eu a toque! Venha, não tenha medo!” ela engolia o sorriso e se aproximava. Meu avô levantava sua mão até o rosto dela e encostava os dedos nele, percorrendo lentamente, com ternura, gulosamente. E lágrimas corriam de seus olhos. “Por que chora, avô?” perguntei-lhe uma vez. “Você acha que não há razão para chorar, meu filho, quando eu estou quase morrendo e deixando atrás tantas moças bonitas?”
Zorba suspirou:
Ah! Meu pobre avô! Como te compreendo! Às vezes eu penso comigo mesmo: Ah! Miséria! Se ao menos todas as mulheres bonitas pudessem morrer ao mesmo tempo que eu! Mas, as danadas viverão, levarão uma boa vida, homens as terão em seus braços, irão beijá-las, e Zorba estará transformado em poeira para que elas passem por cima!
Tirou algumas castanhas das brasas e descasco-as. Tocamos nossos copos. Por muito tempo ficamos ali, bebendo e mastigando sem pressa, como dois grandes coelhos, enquanto ouvíamos lá fora mugir o mar.

Nikos Kazantzakis, in Zorba o Grego

Bicho-de-pé

Todo menino tinha bicho-de-pé. Eu tive muitos. Ter um bicho-de-pé era uma felicidade...
Como é provável que a maioria dos meus leitores nem tenha tido a felicidade de ter um bicho-de-pé no dedo do pé e nem mesmo tenha ouvido falar desse minúsculo animal, trato de dar as informações devidas. Trata-se de uma espécie de pulga, nome científico Tunga penetrans, que tem especial predileção pelos dedos dos pés. Esse gosto é específico das fêmeas, que, penetrando sob a pele dos humanos, ali se põem a botar uma enorme quantidade de ovos minúsculos que formam uma bolha transparente, como se fosse de plástico, do tamanho de uma pimenta-do-reino. Essa bolha recebe vulgarmente o nome de “batata”.
A descoberta de uma ou mais batatas nos dedos era sempre um motivo de felicidade, por uma razão que explicarei depois. A extração de uma batata requeria uma habilidade protocirúrgica, ou seja, a manipulação de uma agulha de costura. Procedia-se de forma ordenada: com a ponta da agulha ia-se cortando a pele circularmente à volta da batata até que, completada a operação, espetava-se a mesma no seu centro, marcado pelo ponto negro da Tunga penetrans, para então cuidadosamente proceder-se à conclusão da cirurgia, qual seja, puxar a batata para fora. Sendo bem-sucedida a operação, a batata saía redonda e inteira, sendo exibida triunfalmente como um troféu pela cirurgiã. No seu lugar fica uma pequena cratera, cratera esta que tem uma capacidade enorme de produzir prazer, sob a forma de coceira.
Coceira é uma coisa estranha: dor que dá prazer. Todo mundo já teve frieira — prazer parecido com o da batata. A gente coça até sair sangue. É provável que o mistério do masoquismo encontre sua explicação mais profunda no prazer doloroso da coceira. Meu irmão Murilo, por medo da agulha, não deixava que suas batatas fossem extraídas. Mas tratava de obter o prazer a que tinha direito por meio de um interminável esfrega-esfrega das batatas com uma bucha.
O amor à verdade obriga-me a uma informação desagradável: o bicho-de-pé, para existir, precisa de sujeira. É nos chiqueiros que ele engorda. Há prazeres que necessitam de um ambiente suíno para existir.
O bicho-de-pé, juntamente com as pulgas, eram partes normais da vida, conviviam com os humanos. De noite as pulgas começavam a fazer cócegas, andando sobre a pele, à procura de um lugar propício à sua mordida hematófaga. Mas depois vieram os inseticidas, o BHC, o Neocid, e elas se foram. Hoje só sobrevivem em locais distantes. São animais em perigo de extinção, mas ninguém sai em sua defesa. Os bichos-de-pé mereceriam sobreviver pelo seu uso metafórico na educação sexual. A jovem, com medo da noite de núpcias, perguntou à mãe se doía muito. Ao que a mãe respondeu: “É feito bicho-de-pé. Dói um pouquinho mas depois a gente não quer parar de esfregar...” .

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

terça-feira, 29 de junho de 2021

Uma vida mais elevada

As alegrias desta vida não são as dela, mas o nosso medo de ascender a uma vida mais elevada; os tormentos desta vida não são os dela, mas o nosso autotormento por causa daquele medo.”

Franz Kafka, in Aforismos reunidos

Calvin

 

A vida com suas dúvidas

O irmão, o mais velho, recontava as histórias ouvidas da professora. Depois da morte fuga, abandono, traição, afirmava: “Foram felizes para sempre”. Sempre pensei o “sempre” como um tempo muito longe. O sempre começava no nascimento e acabava, para cada um, numa hora que fugiu do relógio. Viajar para o sempre não demanda bilhete de partida. Quando se assusta, somos expulsos para o sempre, mesmo sem passagem. Eu sabia que viver um dia é ter menos um dia. Comer o tomate era subtrair um tomate. Para sempre me convenci de que o tomate era meu calendário.
Seis. Mais breve que o susto o irmão foi-se. Diferente da partida da mãe, ele escolheu afastar-se sem noticiar seu endereço. Não houve flor, cera, reza, terra, nem o mais profundo.
Como pássaro, voou com desnorteio sem deixar rastro. Procurei por ele em todas as horas, sem encontrá-lo mesmo fora do relógio. A lucidez da solidão enforcava-me, impedindo-me de gritar por ele.
Já não se entrevia o arroz através da fatia do tomate. A faca fatiava com precisão cirúrgica. O exílio do irmão deu mais sustância ao tomate. Agora dividido por seis. Não era possível devorá-lo com apenas uma colherada. Minha fatia eu dividia ao meio. Um pedaço para mim, outro para minha fantasia.
Por ouvir dizer, apontavam-me como semelhante à sua fotografia, escondida no fundo da arca de madeira de lei. Na névoa do olhar, na melancolia escrita na fronte, na parcimônia do sorriso, nas meias-luas nas unhas, nas pausas semibreves ao pontuar o mundo, no desconforto pela incógnita do futuro, minha mãe vivificava em mim. Em mim, prolongava-se o ranço de sua presença. Impossível ignorá-la diante de mim. Doía. Doía o corpo inteiro.
Mas havia as tardes, com essências inodoras de crepúsculos. Neste instante de incertezas — entre cores — a vida com suas dúvidas se torna por demais demorada. (Viver fica entre parênteses.) A paciência aconchega a alma e adormece a dor. A beleza gratuita das tardes arranha até os olhos e toda ausência mais dói, e mesmo o silêncio é insuficiente para suportar esse meio-termo.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

Terra, planeta único

 


Devemos, agora mais do que nunca, pensar com frequência sobre nossa casa cósmica. Vivendo em cidades, na correria do dia a dia, a gente pouco se dá conta do que ocorre ao nível planetário, ou de como nosso planeta é especial. Mas a Terra é única, e devemos nossa existência a ela. Primeiro, temos uma cumplicidade com o Sol, nossa estrela-mãe. A energia que vem de lá, e que vem chegando aqui por quase 5 bilhões de anos, é fundamental para a vida.
A Terra fica no que chamamos de zona de habitabilidade, a faixa de distância de uma estrela onde a água, se houver, tem chance de ser líquida. A premissa, aqui, é que, sem água, a vida é impossível. Por outro lado, vemos Vênus e Marte, nossos planetas vizinhos também na zona de habitabilidade do Sol, e a história lá é bem diferente. Como no futebol, estar bem posicionado não é suficiente para marcar um gol. O que, num jogador, chamamos de talento, num planeta chamamos de propriedades adequadas. Vênus é um verdadeiro inferno, tão quente que as rochas, lá, são incandescentes. Além do mais, sua atmosfera ultradensa é rica em compostos de enxofre, incluindo o que dá o fedor dos ovos podres. Marte, o oposto, é um deserto gelado, com cânions de rios e outras estruturas geológicas que mostram que seu passado foi diferente.
Acreditamos que, na sua infância, o Planeta Vermelho tenha tido água em abundância e até, quem sabe, algum tipo de vida rudimentar. Mas sua atmosfera foi desaparecendo aos poucos, vítima da gravidade mais fraca e dos ventos solares, a radiação que sai do Sol e se espalha pelo sistema solar, e a vida, se houve, tornou-se inviável. A Terra tem uma idade aproximada de 4,53 bilhões de anos. Nos primeiros 600 milhões de anos, a situação aqui era bem dramática, com bombardeios constantes vindos dos céus, colisões de asteroides e cometas que "sobraram" durante a formação dos planetas e das suas luas.
Esses visitantes trouxeram toda uma gama de compostos químicos e muita água, ingredientes da sopa que, em torno de 3,5 bilhões de anos atrás ou mesmo antes disso, daria origem às primeiras criaturas vivas. Essas criaturas, muito simples, eram seres unicelulares do tipo procariotas. Vemos fósseis deles em algumas rochas bem antigas, como as descobertas na costa oeste da Austrália, na Baía do Tubarão. Durante um bilhão de anos, pouco aconteceu.
A Terra foi se resfriando, os oceanos já bem formados, e regiões com terra firme foram cobrindo pequenas partes da superfície. Foi então que, em torno de 2,4 bilhões de anos atrás, esses seres unicelulares passaram por uma ou mais mutações fundamentais: descobriram a fotossíntese, a capacidade de transformar a energia solar em energia metabólica, consumindo gás carbônico e produzindo oxigênio. Aos poucos, essas criaturas foram mudando a composição da atmosfera da Terra, que foi ficando cada vez mais rica em oxigênio.
Devemos, em grande parte, nossa existência a essas bactérias e a essa mutação. Mas oxigênio não foi o suficiente. Formas de vida só podem evoluir de forma sustentável quando o planeta onde existem oferece condições para tal. Apesar das grandes transformações no decorrer da sua existência, a Terra permaneceu relativamente estável nos últimos 2 bilhões de anos, permitindo que formas de vida primitivas pudessem passar por incontáveis mutações. Os cataclismos que ocorreram – enormes erupções vulcânicas, emissão de metano em escala global, bombardeios de asteroides e cometas – mudaram as condições planetárias e, com isso, renegociaram as formas de vida que poderiam existir aqui. Felizmente, nunca a ponto de eliminar a vida por completo. (Se bem que a grande extinção do Permiano-Triássico chegou bem perto, eliminando cerca de 95% das formas de vida na Terra.)
Comparada aos outros mundos que conhecemos, a Terra se distingue por ser um oásis para a vida. Sua atmosfera protege a superfície dos raios ultravioleta letais que vêm do Sol. O campo magnético – resultado da circulação de ferro e níquel líquidos no centro do planeta – funciona como um escudo contra a radiação nociva que vem do espaço, principalmente partículas oriundas do Sol. O movimento lento das placas tectônicas, os grandes blocos de terra firme onde estão os continentes, recicla o gás carbônico entre os oceanos e a atmosfera.
Termos apenas uma Lua, bem grande, que estabiliza o eixo de rotação da Terra em sua inclinação de 23,5 graus, permitindo que as estações do ano continuem ritmicamente por milhões de anos. Juntas, essas propriedades transformam nosso planeta no que é, a casa de milhões de formas de vida, das profundezas dos oceanos até os picos gelados das montanhas geladas. (Contanto que abaixo de 6 mil metros.)
Portanto, viva a Terra! Não estamos aqui por acaso. Somos produto disso tudo, das inúmeras mutações que transformaram bactérias em pessoas, dos acidentes cataclísmicos que redefiniram as condições planetárias, das inúmeras mudanças que ocorreram no decorrer de bilhões de anos de história. Saber disso não nos diminui; pelo contrário, nos remete ao topo dessa cadeia de vida, nós que somos as criaturas capazes de reconstruir nosso passado com tanto detalhe e, ao mesmo tempo, nos questionar sobre o futuro.
Por outro lado, é bom lembrar que estar no topo não significa desprezar o que está abaixo. Do poder vem a responsabilidade, no caso, a responsabilidade de proteger a vida e o planeta, entendendo que somos parte dessa dinâmica planetária, ou mais, completamente dependentes dela. Aprendemos muito sobre a Terra, mas continuamos à mercê da Natureza. Tratar a Terra e suas formas de vida com humildade e respeito é a única opção que temos se quisermos continuar por aqui por outros tantos milhares de anos.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

O que faz um escritor

Leio no jornal uma entrevista do autor de Cem anos de solidão. Só que seu nome é Gabriel García Márquez e não Marques, como saiu publicado.
Não que eu seja lá muito cioso dessas coisas, pelo contrário: meus lapsos ortográficos costumam ser bem mais graves que uma simples troca do Z pelo S. Fixei na memória a grafia certa do nome do escritor, não só por ter sido com Rubem Braga o seu primeiro editor no Brasil, mas principalmente por causa daquela sensacional entrevista sobre ele, que dei na época a uma estagiária de um jornal do Rio.
Me mandaram fazer com você uma entrevista sobre o marquês – e ela foi ligando logo o gravador.
Que marquês? – estranhei.
Esse que vocês editaram.
Não editamos nenhum marquês, que eu saiba.
O autor desse best-seller de vocês, Cem anos de perdão.
De solidão.
Ou isso: de solidão. Ele não é marquês?
Não. Ele não é marquês. O nome dele é Gabriel García MÁRQUEZ. Com z no fim. Se duvidar, é capaz de ter até o acento no A.
Então é isso. Foi confusão minha – e ela não se deu por achada, muito menos por perdida, sempre empunhando um microfone junto ao meu nariz. – Por que é que o livro dele está fazendo tanto sucesso?
Porque é um livro muito bom.
Foi por isso que vocês publicaram?
Respirei fundo:
Por isso o que, minha filha? Por ser muito bom?
Ela me olhou como se estivesse entrevistando uma toupeira:
O que eu estou querendo saber é por que vocês publicaram o livro dele.
Porque nos foi recomendado como sendo um livro muito bom.
Recomendado por quem?
Pelo Neruda.
Quem?
Pablo Neruda. Quando ele esteve no Rio pela última vez, falou com o Rubem que se tratava do romance mais importante em língua espanhola desde Dom Quixote.
Quem é esse?
Esse quem? O Rubem?
Não: o outro.
Dom Quixote?
Não: esse cara que você falou antes. O que recomendou o livro.
Resolvi deixar cair:
Você vai me desculpar, minha filha, mas não dá. A entrevista fica para outra vez, quem sabe. É muita honra para um pobre marquês, mas infelizmente... Ou Márquez, se você não se incomoda. No mais, muito obrigado.
Eu é que agradeço!
Ela desligou o gravador, com ar satisfeito, despediu-se e foi embora.

Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula

Flávio Venturini & Orquestra Opus / Espanhola

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Metamorfose

Foi assim que meu pai me disse uma vez:
Você anda feito cavalo velho, procurando grota’.

As cigarras atrelavam as patas nos troncos
e zuniam com decisão os seus chiados.
As árvores cantavam no quintal,
refolhadas de novíssimo verde.
Arregacei as narinas e fui pastar
com minha cabeça minúscula.
O que mais quente e amarelo pode ser,
era o sol, um dia de pura luz.
Mugi entre as vacas, antediluviana,
sei de moitas, água que achei e bebi.
Na volta sacudi pescoço e rabo.
Só dois sinais restaram:
um mundo guloso de cheirar os verdes;
um modo de pisar, só casco e pedras.

Adélia Prado

Quem bate?

Cecília. Cecília que chega de um pátio da infância... Traz ainda sereno nas tranças, seus sapatinhos andaram pulando na grama... Depois assenta-se nos degraus da torre, e canta...
Mas o chaveiro do sonho pegou-lhe as tranças, teceu cordoalhas para o seu navio. Mas o chaveiro do sonho pegou-lhe a canção... E fez um vento longo e triste.
E eu pensava que toda a minha tristeza vinha apenas do vento, da solidão do mar, da incerteza daquela viagem num navio perdido...

Mário Quintana, in A rua dos cataventos

A vida começa no fim da sua zona de conforto

Conforto. Conforto é uma palavra deliciosa. Conforto nos remete diretamente à ideia de um edredom branco, bem fofinho e cheiroso no qual nos afundamos nos fins de semana. Mas experimente colocar “zona de” na frente do conforto para vê-lo estragar automaticamente.
Eu me lembro bem. Faltava meia hora para a minha banca de mestrado, eu estava tão apavorada… Com enjoo e tudo mais, surtando. Lembro de me perguntar por que é que eu me metia nessas coisas, em vez de ficar sossegada. Segundos depois deparei com a seguinte frase solta pelas redes sociais: “A vida começa no fim da sua zona de conforto.” Parei. Li outra vez. Aquilo fazia algum sentido. Transformei o pânico em frio na barriga. Entrei na sala, defendi minha dissertação e deu tudo certo.
É engraçado pensar quantas vezes nós usamos desculpas esfarrapadas para esconder nossa falta de coragem. Não vou me candidatar a esse curso porque não tenho tempo (e não por medo de não ser aprovado), não vou fazer essa viagem porque não quero gastar dinheiro (e não por medo de avisar no trabalho que vai ficar uma semaninha fora), não vou ligar porque ele não é tudo isso (e não por medo de ouvir um não).
A vida é povoada de nãos, de medos, de riscos. E sair da zona de conforto é trabalhoso. Custa coragem, custa tentativa, custa alguns erros, alguns empregos, alguns relacionamentos, algumas certezas. Mas a zona de conforto, frequente e ironicamente, é bastante desagradável. É o trabalho das 8h às 18h. O trânsito na ida e na volta. É a mesma comida, a mesma coisa na televisão. O mesmo domingo, as mesmas queixas. A zona de conforto está lá, nos cozinhando em banho-maria, matando os nossos dias devagarzinho, acinzentando nossos hábitos.
Não tem jeito: se a gente não fizer mais do que costuma e sabe fazer, a vida vai ficar sempre igual. Se a gente não se meter em umas encrencas, não se colocar em certos desafios, não jogar meia dúzia de coisas pro alto, a vida nunca vai ficar mais vida do que ela é.
Adoro o Po, do Kung Fu Panda, porque ele é exatamente isso. Ele se sente extremamente inapto para os desafios que a vida lhe impôs – não sabe lutar, não sabe treinar, não se sente à vontade naquele ambiente, preferia ficar comendo, sentado num cantinho –, mas sabe que precisa encarar. E sabe que, de um jeito ou de outro, tudo vai dar certo.
Eu me sinto como o Po em muitas esferas da vida. Um certo sentimento de inadaptação. De não saber se sou capaz. É assim toda quarta-feira com o blog, dá medo. Foi assim quando tive que escrever o primeiro livro. Quando entrei no mestrado. Quando advogo em causas grandes. Quando mudei de país. Quando entrei no doutorado. Mas a gente tem que acreditar. Tem que pegar os desafios pelo chifre, rir da zona de conforto e seguir em frente.
E não há sensação melhor do que conseguir. Às vezes com maestria, às vezes com certa mediocridade, mas conseguir. E mesmo nas vezes em que a gente não consegue… Tentar também faz muito sentido. Faz sentido sair do raso, do previsível, do seguro (que morre de velho ou morre de chato).
Faz sentido abrir a janela, abrir a porta, colocar a cara no sol. Porque a vida está lá fora. E ficar sempre aqui dentro é uma escolha. Uma escolha triste, mas possível e até bastante confortável. Esse é o perigo.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

Um Sábado Qualquer

 

Serviço social

Os donos de jardins sempre me perguntam se árvores muito próximas podem acabar roubando luz e água umas das outras. Nas florestas comerciais os troncos devem engrossar e amadurecer o mais rápido possível, e para isso precisam de muito espaço e uma copa grande, redonda e uniforme. Além desse cuidado, de cinco em cinco anos suas supostas concorrentes são derrubadas. Como elas são enviadas para a serraria aos 100 anos, não chegam a envelhecer, por isso mal podemos notar os efeitos negativos dessas ações na saúde da árvore. Quais efeitos negativos? Não parece lógico que uma árvore cresça melhor quando não há concorrência e ela tem à disposição muito sol para a copa e água para as raízes?
De fato, para espécimes de espécies diferentes, essa lógica faz sentido, pois elas competem entre si pelos recursos. No entanto, no caso de árvores da mesma espécie, a situação muda. Já comentei que as faias podem fazer amizade e até alimentar umas as outras. A floresta não tem interesse em perder seus membros mais fracos, pois com isso surgiriam lacunas entre as copas. Com isso, a alta incidência de luz solar e o excesso de umidade do ar perturbariam o microclima sensível.
Por outro lado, com o isolamento, em tese a árvore poderia se desenvolver com liberdade e levar a vida individualmente. Poderia, pois na prática as faias pelo menos parecem valorizar o compartilhamento de recursos. Vanessa Bursche, da Universidade Técnica da Renânia do Norte-Vestfália em Aachen, fez uma descoberta fantástica com relação à fotossíntese em florestas de faias intocadas: as árvores se sincronizam de tal forma que todas têm o mesmo rendimento, o que é curioso, pois cada faia ocupa um lugar único. O solo pode ser pedregoso ou muito solto, armazenar muita ou pouca água, ser rico em nutrientes ou extremamente árido – e essas condições podem variar bastante em questão de metros. Dessa forma, cada árvore tem condições de crescimento diferentes e cresce em seu ritmo, de modo que pode produzir mais ou menos açúcar e madeira.
Tais fatores tornam a pesquisa ainda mais surpreendente: constatou-se que as árvores igualam os pontos fracos e fortes entre si. Não importa se têm o tronco grosso ou fino: todos os espécimes produzem a mesma quantidade de açúcar por folha. Esse nivelamento acontece nas raízes. No subterrâneo ocorre uma troca ativa, segundo a qual quem tem muito cede e quem tem pouco recebe ajuda. E é nesse momento que entram em cena os fungos, que, com sua rede extensa, funcionam como uma gigantesca redistribuidora de energia. Lembra um trabalho de assistência social tentando evitar que o abismo para os indivíduos desfavorecidos da sociedade cresça ainda mais.
Voltando à pergunta dos jardineiros, a proximidade não é um problema para o crescimento das faias, pelo contrário: elas gostam da situação e com frequência seus troncos ficam a menos de 1 metro de distância. Como resultado, as copas permanecem pequenas e grudadas. Muitos engenheiros florestais dizem que essa proximidade não é saudável, por isso algumas árvores são derrubadas para separar as demais. No entanto, pesquisadores da Universidade de Lubeque descobriram que a mata de faias cujos membros ficam próximos é mais produtiva. Há um crescimento nitidamente
maior de biomassa, sobretudo de madeira, o que comprova a saúde do grupo. Elas otimizam a divisão de nutrientes e água e, assim, cada indivíduo pode se desenvolver da melhor forma possível.
Quando o homem resolve “ajudar” alguns espécimes livrando-os da suposta concorrência da mesma espécie, acaba deixando as árvores restantes solitárias. Elas mandam mensagens às árvores vizinhas em vão, pois restam apenas os tocos de seus troncos. Com isso, cada uma passa a cuidar apenas de si, e surgem grandes diferenças de produtividade entre os membros. Muitos indivíduos realizam tanta fotossíntese que transbordam açúcar. Assim, crescem melhor e ficam saudáveis, mas não vivem mais tempo, pois a qualidade da árvore depende da mata que a rodeia.
Na floresta também existem muitos perdedores, membros mais fracos que foram auxiliados pelos mais fortes mas mesmo assim ficaram para trás. Não importa se o motivo é a localização, a falta de nutrientes, a disposição genética ou outro problema qualquer: eles serão presas mais fáceis de insetos e fungos.
Do ponto de vista evolutivo, faz sentido que apenas os membros mais fortes da comunidade sobrevivam. Mas o bem-estar do grupo depende da comunidade, e, quando os membros supostamente fracos desaparecem, os outros também saem perdendo. A floresta fica mais exposta e o sol quente e as tempestades de vento alcançam o solo, interferindo na umidade e na temperatura ideal. Mesmo as árvores fortes adoecem muitas vezes no decorrer da vida. Quando isso acontece, passam a precisar do auxílio das vizinhas mais fracas. Caso as árvores menores já tenham morrido, bastará um inofensivo ataque de insetos para selar o destino de árvores gigantescas.
Certa vez, contribuí para um caso extraordinário de ajuda. No começo da carreira, eu realizava anelamento em faias mais jovens (técnica que consiste em retirar da árvore uma faixa de casca de 1 metro de largura para provocar sua morte). No fim das contas, é um método de redução do número de árvores no qual o tronco não é serrado, mas a árvore é abandonada ressecada e permanece morta na floresta. Apesar disso, elas abrem espaço para as vivas, porque suas copas se desfolham e deixam passar mais luz para as vizinhas.
Trata-se de um método brutal, pois elas demoram anos para morrer e foi por essa razão que parei de usá-lo. Vi como as faias lutavam e, sobretudo, que algumas sobreviviam apesar de tudo. Normalmente isso não é possível, pois sem casca (mesmo que seja apenas uma faixa dela) a árvore não consegue transportar açúcar das folhas para as raízes. Ela morre de fome, o bombeamento para e, como não chega mais água da madeira do tronco à copa, ela resseca. No entanto, mesmo assim, muitos espécimes continuaram crescendo com variados níveis de sucesso.
Hoje sei que isso só foi possível com a ajuda de suas vizinhas intactas. Usando a rede subterrânea, elas assumiram o fornecimento interrompido das raízes e possibilitaram a sobrevivência de suas companheiras. Muitas conseguiram até recuperar a casca cortada, fazendo crescer uma nova. Confesso que quando vejo o que fiz na época eu sinto vergonha. De qualquer forma, descobri como a comunidade das árvores pode ser forte. O antigo ditado que diz que “A corrente tem a força de seu elo mais fraco” poderia muito bem ter sido criado pelas árvores. E, como elas sabem disso por intuição, ajudam umas às outras de maneira incondicional.

Peter Wohlleben, in A vida secreta das árvores: O que elas sentem e como se comunicam

Margarida

A garota em êxtase brandiu o postal que recebera do namorado em excursão na Grécia:
Coisa mais linda! Olhe só o que ele me escreveu: “Eu queria desfolhar teu coração como se ele fosse a mais margarida de todas as margaridas”. Marquinhos é genial, o senhor não acha?
Pode ser que seja, não conheço Marquinhos. Se bem que antes da era Pierre Cardin, genial era Dante, Da Vinci, Einstein, outros assim. Mas essa frase não é de Marquinhos.
Não é de Marquinhos?! Tá com a letra dele, assinada por ele.
Estou vendo que assinou, mas é de Darío.
Quem? O Darío, do Atlético Mineiro? Sem essa!
Não, minha florzinha, Darío, Rubén Darío, o poeta da Nicarágua.
Não conheço. Então Rubén Darío falou pra Marquinhos e Marquinhos achou bacana e pediu emprestado a ele?
Tenho a impressão que o Marquinhos não pediu nada emprestado a Rubén Darío. Tomou sem consultar.
Como é que o senhor sabe?
É muito difícil consultar o Darío.
Por quê? Ele não dá bola pra gente? Não gosta da mocidade? É careta?
Não é nada disso. O Darío não é encontrado em parte alguma.
Ah, ele gosta de bancar o invisível, né?
Não creio que goste, mas é exatamente o caso dele: invisível.
Não dá pra entender.
Vai entender logo. Ele morreu em 1916.
Ah! E como é que o Marquinhos descobriu essa margarida, me conte!
Simples. Leu num livro de poemas de Rubén Darío.
Marquinhos não é ligado a leitura. Duvido.
Se não leu no livro, leu em alguma revista, em alguma parte.
Hã…
Ficou tão triste — os olhos, a boca, a testa franzida — que achei de meu dever confortá-la:
Que importância tem isso? A frase é de Darío, é de Marquinhos, é de toda pessoa sensível, capaz de assimilar o coração à margarina… Desculpe: à margarida.
Muxoxo:
Se é de todos, não é de ninguém, não vale nada.
Pelo contrário. Fica valendo mais, torna-se sentimento universal.
Ah, o senhor está por fora. Eu queria a margarida só pra mim. Copiada não tem graça. A graça era imaginar Marquinhos, muito sério, desfolhando meu coração transformado em margarida, para saber se eu gosto dele, um pouquinho, bastante, muito loucamente, nada. E a margarida sempre com uma pétala escondida por baixo da outra, entende? pra ele não ter certeza, por que essa certeza eu não dava… Era gozado.
Continue imaginando.
Agora não dá pé. Marquinhos roubou a margarida, quis dar uma de poeta. Não colou.
Espere um pouco. Eu disse que a margarida era de Rubén Darío? Esta cabeça! Esquece, minha filha. Agora me lembro que Rubén Darío nem podia ouvir falar em margarita, começava a espirrar, a tossir, ficava sufocado, uma coisa horrível. Alergia — que no tempo dele ainda não estava batizada. Pois é. Garanto a você, posso jurar que a margarida não é de Darío.
De quem é então?
De Marquinhos, ué.
Tem certeza que nunca ninguém antes de Marquinhos escreveu “a mais margarida de todas as margaridas”? O senhor lê milhões, pode me responder. Tem certeza?
Absoluta. Marquinhos é genial, reconheço. Mas, por via das dúvidas, continue escondendo uma pétala de reserva, sim?
Pode deixar por minha conta. Puxa, quase que eu parava de transar com o Marquinhos por causa do senhor. Agora tá legal, tchau, vovô!
Vovô: foi assim que ela me agradeceu a mentira generosa, a bandida.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

Preciso Aprender A Só Ser / Gilberto Gil e Mauro Senise

domingo, 27 de junho de 2021

Mudança de idade

Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.

Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.

Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?

Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?

Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.

Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.

Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.

Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.

A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.

As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores noturnos.

O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.

Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.

Agora sei:
apenas o amor nos rouba do tempo.

E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.

Mia Couto

Estilo

Como uma forma de depuração, eu sempre quis um dia escrever sem nem mesmo o meu estilo natural. Estilo, até próprio, é um obstáculo a ser ultrapassado. Eu não queria meu modo de dizer. Queria apenas dizer. Deus meu, eu mal queria dizer.
E o que eu escrevesse seria o destino humano na sua pungência mortal. A pungência de se ser esplendor, miséria e morte. A humilhação e a podridão perdoadas porque fazem parte da carne fatal do homem e de seu modo errado na terra. O que eu escrevesse ia ser o prazer dentro da miséria. É a minha dívida de alegria a um mundo que não me é fácil.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Nenhum escocês de verdade

 


Este argumento costuma aparecer quando alguém faz uma generalização sobre um determinado grupo e depois é desafiado com evidências que o desmentem. Em vez de reavaliar sua posição ou contestar a evidência, a pessoa foge do desafio redefinindo arbitrariamente o critério para se pertencer àquele grupo.

Por exemplo, alguém alega que programadores são criaturas antissociais. Se outra pessoa repudiar essa afirmação dizendo “mas o John é programador e extrovertido, sem dificuldade alguma de se relacionar socialmente”, isso pode provocar a seguinte resposta: “Sim, mas o John não é um programador de verdade.” Aqui, não está claro o que ele considera um verdadeiro programador; a categoria não é precisamente definida como, por exemplo, as de pessoas de olhos azuis. A ambiguidade permite que a mente teimosa redefina as coisas a seu bel prazer.

Essa falácia foi descrita pela primeira vez em 1975 por Antony Flew em seu livro Thinking about Thinking (Pensando sobre pensar), em que ele nos dá o seguinte exemplo: Hamish está lendo o jornal e se depara com uma notícia sobre um inglês que cometeu um crime hediondo, à qual reage dizendo: “Nenhum escocês cometeria algo tão terrível”. No dia seguinte, ele lê outra notícia em que um escocês é autor de um crime ainda pior. Em vez de mudar sua opinião sobre os escoceses, Hamish afirma: “Nenhum escocês de verdade faria tal coisa” (Flew).

Ali Almossawi, in O livro ilustrado dos maus argumentos

Velas

Perde-se no tempo a origem dos barcos a vela. Os mais antigos de que se tem notícia datam de quatro mil anos antes de Cristo, e resquícios ou registros foram encontrados em muitas partes do planeta, no Pacífico, no Índico, no Mediterrâneo ou no Mar do Norte.
Dentre as muitas tarefas para manter uma embarcação a vela — a limpeza, a mastreação, o cuidado com a quilha, o pastilhão, o leme, as manobras, o treinamento, a alimentação, o conhecimento das estrelas —, a dobra eficiente e rápida das velas é uma das mais necessárias para o ofício de um marinheiro.
Não é um trabalho fácil. Nas embarcações mais antigas, especialmente, havia tantas velas, seus formatos eram tão variados e a necessidade de manejá-las ao longo de uma viagem tão essencial, que o cuidado com sua dobra era habilidade fundamental para uma navegação eficaz. Ser um marinheiro capaz, na Antiguidade, era ter a vida garantida, com comida e abrigo para sempre. Os mestres na arte da dobra dos velames tornavam-se pessoas respeitadas, quando navegar já não lhes era mais possível e faltavam ao seu corpo forças para continuar dobrando.
Não espanta, por isso, que tanto se tenha cantado e elogiado o marinheiro e as embarcações:

Manobra o Timoneiro, a nave se desloca,
E sem nenhuma aragem;
Os marujos se põem a trabalhar nas cordas,
E tal como antes agem;
Instrumentos sem vida tornam-se seus membros(Coleridge)

Vela de seda e cordas de sândalo
Tais como brilham no antigo folclore;
E o canto dos marinheiros,
E a resposta que vem da costa!… (Longfellow — tradução livre)

Ó Capitão! Meu capitão! Nossa terrível viagem se cumpriu,
O Navio cruzou tormentas, é nosso o prêmio pio,
O porto vê-se ao perto os sinos dobram, o povo espera,
Olhos que à quilha firme tornam, desta nave forte e fera;
Mas ó coração, coração!
Ó gotas de vermelho brio,
No convés em que ele dorme,
Deitado morto e frio. (Walt Whitman)

Ou, em Portugal, do mar que, saudoso, pergunta pelo marinheiro que foi para a Terra:

E o espírito do mar pergunta:
Que é feito daquele
Para quem eu guardava um reino puro
De espaços e vazios
De ondas brancas e fundas
e de verde vazio? (Sophia de Mello Breyner Andresen)

O desenrolar da história se dá não pelas vitórias dos imperadores, pelos acordos entre grandes estirpes ou pelas derrotas sofridas pelos menos afortunados, mas a partir dos botões bem ou mal costurados urdidos em noites insones, o grude mais ou menos eficaz dos lacres, as pernas dos mensageiros e as velas mais ou menos bem dobradas pelos marinheiros. Disso dependia a rapidez com que os barcos singravam os mares e, no final das contas, a vitória na batalha, uma transação comercial, o transporte de bens e da princesa prometida.
Entretanto, embora o ofício tenha sido tão cantado, pouco se sabe — ou talvez nada — sobre a relação entre alguns termos do vocabulário especificamente ligado à dobra das velas e algumas palavras importantes de nosso léxico atual.
O encontro consonantal “pl”, cujo som lembra o de um “plic”, “plic” ou o da manipulação de algo macio — e que também pode ser substituído por “fl” —, acabou resultando, em várias línguas, em palavras que remetem ao ato de dobrar: plier, em francês; plesti, em eslavo; plekein, em grego; ou fletir, em português. E era justamente esse um dos gestos mais importantes dos marinheiros, “plier les voiles”, dobrar as velas. As instruções para esse exercício precisavam ser claras e rápidas, ditas com as palavras mais incisivas possíveis. E foi daí que vieram os gritos urgentes durante as tempestades da história da navegação:
Simplificar!
Explicar!
Complicar!
Duplicar!
Aplicar!
Ou, traduzindo: igualar as dobras!; tirar as dobras!; aumentar as dobras!; dobrar mais uma vez ou, mais singelamente, apenas dobrar!
Mas disso ninguém sabe e usam-se essas palavras com significados filosóficos ou abstratos, como se a filosofia, coitada, fosse mais importante do que a dobra das velas.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou