sexta-feira, 30 de abril de 2021

Pérolas de tradução

 


A frase em inglês era:
The bride entered the church like an erect and elegant although a little too confident swan.
A jovem com pretensões a tradutora assim a verteu fielmente para o português:
A noiva entrou na igreja como um aprumado e elegante embora um pouco confiante demais cisne.”
Numa tradução dos poemas de William Blake para a nossa língua, encontro, entre outras, estas preciosidades: pretty pretty robin traduzido para “preto preto pardal”; merry merry sparrow para “meigo meigo melro”; little lamb para “lambidinha” – e assim por diante. Esta última me intrigou tanto que recorri ao dicionário para ver que diabo de lambidinha era essa. Não tem dúvida, lamb significa só cordeiro mesmo – deve ter sido alguma brincadeirinha do tradutor.
Tudo bem – cada um traduz como quer. A não ser que acabe traduzindo o que não quer e tenha de se valer de uma errata. Como aconteceu com Elizabeth Bishop, que viveu longos anos no Brasil mas era americana e, embora excelente poetisa, não podia conhecer bem algumas sutilezas da nossa língua. No livro de Robert Lowell Quatro poemas, por ela traduzido, o verso A colored fairy tinkles the blues ficou sendo “uma fada negra tilinta blues”, o que exigiu a seguinte errata:
Na página 190, linha 4, em vez de ‘uma fada negra’, leia-se ‘um preto veado’.”
Casos como esses em geral se devem a uma instituição que os editores se habituaram a chamar de “bagrinhos”: pequenos tradutores desconhecidos, em geral estudantes, que se valem do relativo conhecimento de algum idioma estrangeiro para desincumbir-se da tarefa que lhes transfere um tradutor de renome. E nem se veja nessa prática uma exploração do trabalho alheio, pois muitas vezes se inspira em motivação nobre: a de proporcionar uma ajuda a alguém necessitado, cujo nome por si só não basta para conseguir trabalho de tradução. E a remuneração costuma ser tão baixa que acontece não raro acabar transferida na sua totalidade ao tradutor assim subempreitado. Também não chega a constituir propriamente uma fraude literária, desde que a tradução se submeta a uma criteriosa revisão por aquele que vai assiná-la.
Não se sabe qual era a de um tradutor ilustre como Monteiro Lobato, por exemplo, mas consta que ele teria de viver mais de cem anos para dar conta de todas as traduções com sua assinatura.
E a pressuposta supervisão de quem assina nem sempre é tão rigorosa quanto se espera. Como naquele caso do editor que reclamou do “tradutor”:
Vê se toma mais cuidado com essas suas traduções! Dá ao menos uma lida, que diabo!
Tinha razão em reclamar, pois, logo nas primeiras páginas, havia esbarrado com a seguinte frase, em bom português:
“– Eu te amo – borbulhou ela aos ouvidos dele.”
São infindáveis os casos de infidelidade ao texto original, convertidos em anedotário – não há quem não cite um. Alguns já se tornaram clássicos, como o do telefonema que virou anel na frase I’ll give you a ring, ou o do estado-maior que virou um general chamado Staff, na expressão General Staff. O tradutor, aliás afamado ficcionista, ao passar para o português um livro de guerra, tanto usou e abusou do pretenso General que, para justificar a sua presença em várias frentes de batalha pelo mundo, acrescentou uma frase por conta própria, afirmando que “o General Staff era um comandante tão extraordinário que parecia estar em vários lugares ao mesmo tempo”.
Não é invenção minha: Moacir Werneck de Castro, na época comentarista literário de um jornal, ele próprio excelente tradutor, a cuja fina percepção não escapou essa tirada do outro, fez-lhe uma alusão em sua coluna, “não sem malícia e verve”, como no verso de Vinicius. Encontrando-o pouco depois na rua, recebeu dele uma sentida queixa e, sensível ele próprio aos ditames da boa convivência entre confrades, justificou-se educadamente:
Bem, não nego que haja um pouco de gozação no meu comentário. Mas você também não pode negar a mancada na sua tradução.
Ao que o “tradutor” lhe apresentou este argumento irrespondível:
Como é que você queria que eu traduzisse, se eu não sei inglês?
A recíproca é verdadeira: nas traduções de livros brasileiros que se publicam no exterior também costuma haver mancadas, como é de se imaginar.
Eu mesmo já fui vítima de algumas. A de ver, por exemplo, numa versão inglesa do romance O encontro marcado, o personagem que em português se diz um romancista, afirmando: I am a romantic.
Imagino o que se passa com um Guimarães Rosa, cuja linguagem brasileira, mais rica e elaborada, pode dar margem a desastrosos equívocos. Ou Jorge Amado, que por essas e outras em geral prefere nem saber o que fazem de sua obra em língua estrangeira. Segundo me contou, numa das poucas vezes que se interessou deu logo com algo que não constava do original: um personagem que seguia pela estrada carregando uma garrafa de aguardente. Custou a descobrir como aquela garrafa havia surgido, já que o personagem, como o concebera, ia seguindo pela estrada apenas “com uma botina ringideira”. Naturalmente, o tradutor devia ser bom era em espanhol e não em português, e daí a botina lhe ter soado como qualquer coisa parecida com botella, ou garrafa. E ringideira, em consequência, teria que ser uma espécie de aguardente.
Mencionei há algum tempo estas pérolas de tradução numa crônica, e em pouco estava pagando meus pecados. Rubem Braga logo me telefonou:
Essa última novela publicada na sua coleção já foi distribuída?
Ele se referia à coleção Novelas Imortais, que eu dirigia para a editora Rocco. A última tinha sido Bartleby, o escriturário, de Herman Melville.
Se foi publicada, foi distribuída. Por quê?
Porque vai te deixar mal. Tem um erro de tradução que é de amargar. Merecia ser recolhida.
A tradução é de Luís de Lima, e da melhor qualidade.
Não é erro do tradutor não – insiste o Braga. – É seu mesmo. Na apresentação você cita um livro do homem e traduz o título para o português.
Realmente, menciono um livro de Melville chamado White jacket, or the world in a man-of-war, que traduzi literalmente para “Túnica branca, ou o mundo num homem-de-guerra”.
Convém botar uma emenda, uma errata, qualquer coisa assim. Não vão perdoar esse seu “Homem-de-guerra”.
Man é “homem”, of é “de” e war é “guerra”. Como é que você queria que eu traduzisse?
Navio de guerra. Ou vaso de guerra, se você preferir.
Guerra é guerra. Me lembrei que o capitão Braga entendia dessas coisas, desde que fez parte da Força Expedicionária durante a Segunda Guerra Mundial. Tratava-se de verdadeiro cabo de guerra (que em inglês é war-horse, isso eu sei).
Fui conferir no Webster, mas já me reconhecendo derrotado. Não adiantava chicanar, o Braga estava com a razão. Fiquei sabendo de uma vez por todas que homem também pode ser navio, pelo menos em inglês.
Deixa o Alfredo falar! Telefonei imediatamente para ele:
Você sabe o que quer dizer man-of-war?
Sei: quer dizer navio de guerra – ele foi dizendo logo.
E não deixou por menos:
Você sabe o que quer dizer portuguese man-of-war?
Já vem você – respondi, cauteloso. – Navio de guerra português?
Nada disso. Quer dizer água-viva. Aquela medusa pegajosa que tem no mar e que queima a pele da gente. Agora me diga como o português chama água-viva.
Claro que não sei.
Caravela. Se não acredita, tira no dicionário.
Antes que ele fizesse a volta completa e chegasse de novo ao navio de guerra, agradeci e dei prudentemente o assunto por encerrado.
E para encerrar mesmo, de uma vez por todas, só repetindo Paulo Rónai, mestre no assunto, ao citar Cervantes, para quem a tradução “é o avesso de uma tapeçaria”. Ou Goethe, ao comparar os tradutores “aos alcoviteiros, que nos elogiam uma beldade meio velada como altamente digna de amor, e que despertam em nós uma curiosidade irresistível de conhecer o original”.

Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula

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