quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A tartaruga

             Em novembro, Babette saiu de viagem.
Disse às donas da casa que tinha alguns preparativos para fazer e precisaria de uma folga de uma semana ou dez dias. O sobrinho, que outrora a levara até Cristiânia, continuava a passar pela cidade em seu navio; tinha de vê-lo e conversar alguns assuntos com ele. Babette era péssima marinheira; contava sobre sua única viagem marítima, da França à Noruega, como a experiência mais terrível de sua vida. Agora estava estranhamente controlada; as mulheres sentiam que seu coração já se achava na França.
Dez dias depois, voltou a Berlevaag.
Conseguira fazer os arranjos conforme desejara?, perguntaram as duas. Sim, respondeu, havia se encontrado com o sobrinho e lhe passado uma lista de artigos para trazer da França. Para Martine e Philippa, aquilo era uma declaração obscura, mas não queriam se afligir em falar de sua partida, de modo que não fizeram mais perguntas.
Babette ficou um pouco nervosa ao longo das semanas seguintes. Mas, certo dia, em dezembro, anunciou triunfante às patroas que os artigos haviam chegado em Cristiânia, de lá foram baldeados e, nesse exato dia, tinham chegado a Berlevaag. E, acrescentou, havia combinado com um velho senhor com um carrinho de mão para transportá-los do porto até a casa.
Mas que artigos, Babette?, perguntaram as senhoras. Ora, madames, replicou Babette, os ingredientes do jantar de aniversário. Louvado seja Deus, chegaram todos em bom estado de Paris.
A essa altura, Babette, como o gênio engarrafado do conto de fadas, inchara e crescera numa dimensão tal que as donas da casa sentiram-se pequenas diante dela. Viam agora o jantar francês vindo em sua direção, uma coisa de natureza e alcance incontroláveis. Mas jamais em suas vidas haviam quebrado uma promessa; entregaram-se às mãos de sua cozinheira.
Mesmo assim, quando Martine viu um carrinho de mão abarrotado de garrafas entrando pela cozinha, ficou paralisada. Tocou-as e ergueu uma delas. “O que é isto na garrafa, Babette?”, perguntou em voz baixa. “Seria vinho?” “Vinho, madame!?”, retrucou Babette. “Não, madame. É um Clos Vougeot 1846!” Após um minuto, acrescentou: “De Philippe, na Rue Montorgueil!”. Martine jamais suspeitara que vinhos pudessem ter nome, então ficou em silêncio.
Mais para o final da tarde, abriu a porta ao ouvir o sino da campainha e novamente viu-se diante do carrinho de mão, dessa vez com um pequeno marujo ruivo atrás dele, como se o velho houvesse a essa altura ficado exausto. O jovem sorriu para ela conforme erguia um objeto grande, indefinível, do carrinho. À luz do lampião, parecia um tipo de pedra verde-escura, mas ao ser pousada no chão da cozinha, subitamente pôs para fora uma cabeça em forma de serpente e moveu-se ligeiramente de um lado a outro. Martine já vira desenhos de tartarugas e chegara até a possuir uma tartaruga de estimação, quando criança, mas aquela coisa era de um tamanho monstruoso, terrível de se olhar. Retrocedeu da cozinha sem emitir uma palavra.
Não ousava contar à irmã o que vira. Passou a noite praticamente insone; pensava no pai e sentia que justo na noite de seu aniversário ela e a irmã cediam sua casa para um sabá de bruxas. Quando enfim pegou no sono, teve um sonho terrível, em que via Babette envenenando os velhos irmãos e irmãs, Philippa e ela própria.
Bem cedo de manhã ela se levantou, vestiu sua capa cinza e saiu para a rua escura. Caminhou de casa em casa, abriu o coração para os irmãos e irmãs e confessou sua culpa. Ela e Philippa, disse, não tiveram má intenção; haviam condescendido com uma prece de sua criada e não previram o que poderia advir daquilo. Agora não saberia dizer o que, no aniversário do pai, seria servido aos convidados para comer e beber. Não mencionou de fato a tartaruga, mas era algo presente em seu rosto e sua voz.
A gente mais velha, como já se contou, conhecia Martine e Philippa desde garotinhas; haviam-nas visto chorar amargamente por causa de uma boneca quebrada. As lágrimas de Martine trouxeram lágrimas a seus próprios olhos. Reuniram-se à tarde e conversaram sobre o problema.
Antes de se separar outra vez, prometeram uns aos outros que, em nome de suas irmãzinhas, iriam, no grande dia, manter silêncio quanto a qualquer tipo de comida ou bebida. Nada que pudesse ser posto diante deles, fossem rãs ou lesmas, arrancaria uma palavra de seus lábios.
Mesmo assim”, disse um irmão de barbas brancas, “a língua é um pequeno membro e jacta-se de grandes coisas. Não nasceu homem capaz de domá-la; é um demônio rebelde, cheio de veneno mortífero. No dia de nosso mestre, limparemos nossas línguas de todo paladar e as purificaremos de todo prazer ou aversão dos sentidos, resguardando-as e preservando-as para coisas mais elevadas de louvor e ação de graças.”
Tão poucas coisas já haviam acontecido na tranquila existência da irmandade de Berlevaag que se sentiram nesse momento profundamente comovidos e elevados. Apertaram as mãos sobre sua promessa solene e foi como se o estivessem fazendo diante do rosto do mestre.

Karen Blixen, in A festa de Babette

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