sexta-feira, 1 de maio de 2020

Uma harami

Mariam tinha cinco anos quando ouviu pela primeira vez a palavra harami.
Foi numa quinta-feira. Não poderia ter sido em outro dia, porque ela se lembrava de estar inquieta e preocupada, e só ficava assim às quintas-feiras, quando Jalil vinha visitá-la na kolba onde morava. Para passar o tempo, até a hora em que finalmente o veria, atravessando a grama da clareira, que lhe batia nos joelhos, e acenando para ela, Mariam desceu da prateleira o serviço de porcelana chinesa de Nana. Esse serviço de chá era a única relíquia que sua mãe tinha herdado de sua avó, que morreu quando Nana tinha dois anos de idade. Ela adorava cada uma daquelas peças de porcelana azul e branca: a curva graciosa do bico do bule, os pássaros e os crisântemos pintados a mão, o dragão do açucareiro, destinado a espantar os maus espíritos.
Foi esta última peça que escapuliu das mãos da menina e se espatifou no chão da kolba.
Quando Nana viu o açucareiro, seu rosto ficou vermelho, seu lábio superior começou a tremer e seus olhos, tanto o vesgo quanto o bom, se detiveram em Mariam de um jeito inexpressivo, sem sequer piscar. A mãe parecia tão furiosa que Mariam teve medo de que um jinn fosse se apoderar de seu corpo novamente. Mas o gênio não veio, não desta vez. O que aconteceu foi que Nana agarrou Mariam pelos pulsos, puxou-a para bem perto de si e disse, entre dentes:
Você é uma harami desastrada. Vejam só a minha recompensa por tudo o que tive de aguentar: uma harami desastrada, que quebra a louça de família.
Na hora, Mariam não entendeu nada. Não conhecia aquela palavra, harami, e não sabia que significava “bastarda”. Tampouco tinha idade suficiente para avaliar aquela injustiça, para ver que a culpa é dos que geram os harami, e não dessas crianças cujo único pecado foi ter nascido.
É claro que, pelo jeito como Nana disse aquela palavra, a menina deduziu que ser harami era uma coisa ruim, repugnante, como um inseto, como aquelas baratas que a mãe estava sempre maldizendo e varrendo para fora da kolba.
Tempos depois, já mais velha, entendeu enfim. Foi o jeito como Nana pronunciou a palavra —quase como se a cuspisse na sua cara — que fez com que Mariam se sentisse atingida por ela. Então entendeu o que a mãe estava querendo dizer, que um harami era algo indesejável, que ela, Manam, era um ser ilegítimo que nunca teria condições de exigir o que as outras pessoas possuíam, como amor, família, aceitação ou mesmo um lar.
Jalil nunca a chamava assim. Dizia que ela era a sua florzinha. Gostava de pegá-la no colo e lhe contar histórias, como daquela vez que lhe contou que Herat, a cidade onde Mariam nasceu em 1959, foi o berço da cultura persa, onde viviam escritores, pintores e sufis.
Era impossível esticar a perna sem dar um chute no traseiro de um poeta — disse ele. Rindo.
Jalil lhe contou também a história da rainha Gauhar Shad, que, no século XV, mandou erguer os célebres minaretes da cidade como uma ode de amor a Herat. Ele descreveu os trigais verdejantes que a cercavam, os seus pomares, os seus vinhedos carregados de frutos, os seus bazares abobadados e repletos de gente.
Ha um pé de pistache, Mariam jo — disse-lhe um dia Jalil —, debaixo do qual esta enterrado ninguém menos que o grande poeta Jami. — Inclinou-se para frente e sussurrou: — Jami viveu há cerca de quinhentos anos. E verdade. Levei você até lá uma vez, para ver a árvore. Você era bem pequena.
Não deve se lembrar.
Ele tinha razão. Manam não se lembrava disso. E, embora tenha passado os primeiros 15 anos de sua vida nos arredores de Herat, nunca viu essa celebre árvore. Nunca viu os famosos minaretes de perto, nunca colheu frutos dos pomares da cidade ou passeou pelos seus campos de trigo. Mas sempre que Jalil contava aquelas histórias, Mariam o ouvia, encantada. Admirava Jalil pelo tanto que conhecia do mundo. Estremecia de orgulho por ter um pai que sabia tantas coisas.
Quantas mentiras! — exclamou Nana depois que Jalil tinha ido embora. — Um ricaço mentiroso, é isso que ele é! Nunca levou você para ver árvore nenhuma. E não se deixe seduzir. O seu adorado paizinho nos traiu. Ele nos expulsou, nos botou para fora da sua bela casa como se não valêssemos nada. E fez isso feliz e contente.
Mariam só ficava ouvindo, sem nenhuma convicção. Nunca teve coragem de dizer a Nana que não gostava nada, nada de vê-la falar assim de Jalil. Na verdade, perto dele, não se sentia uma harami.
Toda quinta-feira, por uma ou duas horas, quando Jalil vinha vê-la, todo sorrisos e cheio de presentes e carinhos, Mariam se sentia digna das belezas e das coisas boas que a vida tinha para oferecer. E, por isso, amava Jalil. Mesmo tendo que dividi-lo com outras pessoas.
Jalil tinha três esposas e nove filhos, nove filhos legítimos, e Mariam não conhecia nenhum deles. Era um dos homens mais ricos de Herat. Era dono de um cinema, que Mariam jamais tinha visto, mas que Jalil descreveu para ela depois de muita insistência da menina. Portanto, conhecia a fachada de azulejos azuis e terracota, sabia que tinha um balcão com lugares privativos e um teto de treliça. E conhecia também as portas de duas folhas que se abriam para um saguão azulejado onde havia pôsteres de filmes indianos em vitrines emolduradas. Às terças-feiras, segundo lhe disse Jalil, as crianças podiam tomar sorvete de graça na bombonière.
Nana ouviu isso com um sorriso de desdém. Esperou ele sair da kolba para dizer, com uma risadinha:
Os filhos dos estranhos ganham sorvete. E para você, Mariam, o que ele tem a dar? Histórias de sorvete...
Além do cinema, Jalil também era proprietário de terras em Karokh e em Farah, tinha três lojas de tapetes, uma de roupas e um Buick Road-master preto, modelo 1956. Era um dos homens mais bem relacionados de Herat, amigo do prefeito e do governador da província. Tinha uma cozinheira, um motorista e três empregadas.
Nana havia sido uma dessas empregadas. Até a sua barriga começar a crescer.
Quando isso aconteceu, nas palavras da própria Nana, a sufocação coletiva da família de Jalil foi tão grande que parecia até que toda Herat tinha ficado sem ar. Seus sogros e cunhados juraram que haveria derramamento de sangue. Suas esposas exigiram que ele a pusesse para fora daquela casa, O próprio pai de Nana, um humilde entalhador de Gul Daman, uma aldeia vizinha, a repudiou. Vendo-se caído em desgraça, fez as malas e embarcou num ônibus para o Irã. E nunca mais se ouviu falar dele.
Às vezes — disse-lhe Nana certa manhã, bem cedinho, enquanto alimentava as galinhas no quintal da kolba — gostaria que meu pai tivesse sido homem bastante para afiar um dos seus cinzéis e tomar a atitude mais honrada. Teria sido melhor para mim. — Atirou mais um punhado de grãos no cercado, fez uma pausa, e olhou para a filha. — E acho que não só para mim. Você teria sido poupada da dor de saber que é o que é. Mas meu pai era um covarde. Não tinha tido, não tinha coragem para tanto.
Nem Jalil, acrescentou Nana. Ele também não teve coragem de agir como um homem honrado, enfrentando a família, as esposas, os sogros e os cunhados, e assumindo a responsabilidade por seus atos. Tudo o que fizeram foi chegar a um acordo, a portas fechadas, para salvar as aparências.
Logo no dia seguinte, Jalil mandou que ela juntasse os seus poucos pertences lá no quarto das empregadas e fosse embora.
Sabe o que ele disse as suas esposas para se defender? Que fui eu quem forcei aquela situação.
A culpa era minha. Didi? Está vendo só? Isso e que e ser mulher neste mundo.
Nana pós no chão a tigela com a comida das galinhas e ergueu o rosto de Manam com um dos dedos.
Olhe para mim.
A menina obedeceu, com alguma relutância.
Aprenda isso de uma vez por todas, filha: assim como uma bússola precisa apontar para o norte, assim também o dedo acusador de um homem sempre encontra uma mulher a sua frente. Sempre. Nunca se esqueça disso, Mariam.
Khaled Hosseini, in A Cidade do Sol

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