sexta-feira, 29 de maio de 2020

Rosa em Moçambique


Caros amigos:

Interrogo-me sobre o que poderei dizer sobre Guimarães Rosa, eu que venho de tão longe e quando tanto estudo abalizado foi já produzido sobre o grande escritor mineiro. Essa dúvida marcou a preparação desta minha fala.
Vocês conhecem o escritor brasileiro melhor do que eu e não teria nenhum sentido eu, moçambicano, vir ao Brasil filosofar sobre um autor brasileiro. Sobretudo, não sendo eu um estudioso de literatura nem brasileira nem nenhuma outra.
Decidi, então, que não iria falar de um escritor nem da sua escrita. Falaria, sim, das razões que creio assistirem a essa poderosa influência que João Guimarães Rosa teve em alguma da literatura africana de língua portuguesa. Falarei também da minha relação com a escrita, falarei da minha atitude perante a produção de histórias (com h minúsculo) e a desconstrução da História (com H maiúsculo).
Na realidade, reconheço algumas razões pessoais que fizeram do meu encontro com Rosa uma espécie de abalo sísmico na minha alma. Algumas dessas razões eu as reconheço hoje. Enunciarei a seguir essas razões, uma por uma:

A importância do escritor poder não ser escritor.
Rosa não foi apenas escritor. Enquanto médico e diplomata, ele visitou, e tardiamente, a literatura mas nela não fixou residência exclusiva e permanente. Ao ler Rosa percebe-se que, para se chegar àquela relação de intimidade com a escrita, é preciso ser-se escritor e muito escritor. Mas por um tempo é preciso ser-se um não-escritor.
É preciso estar livre para mergulhar no lado da não-escrita, é preciso capturar a lógica da oralidade, é preciso escapar da racionalidade dos códigos da escrita enquanto sistema de pensamento. Esse é o desafio de desequilibrista — ter um pé em cada um dos mundos: o da escrita e o da oralidade. Não se trata de visitar o mundo da oralidade. Trata-se de deixar-se invadir e dissolver pelo universo das falas, das lendas, dos provérbios.

O exemplo de uma obra que se esquivou da obra.
João Guimarães Rosa não fez da literatura a sua carreira. Interessava-o sim a intensidade, a experiência quase religiosa. A maior parte dos seus nove livros foi publicada postumamente. Para Rosa não são os livros que importam, mas o processo da escrita. No momento em que ele se incorpora na instituição que simbolizava a solenidade da obra — a Academia Brasileira de Letras — essa luz parece ser demasiada e o faz sucumbir.

A sugestão de uma língua que se liberta dos seus regulamentos.
Eu já bebia na poesia um gosto pela desobediência da regra, mas foi com o autor da Terceira margem do rio que eu experimentei o gosto pelo namoro entre língua e pensamento, o gosto do poder divino da palavra.
Mas decidi não falar de mim, nem de Rosa, nem de escritores. O meu propósito aqui é sobretudo entender por que razão um autor brasileiro influenciou tanto escritores africanos de língua portuguesa (o caso paradigmático será o Luandino Vieira, mas há outros como o angolano Boaventura Cardoso, os moçambicanos Ascêncio de Freitas e Tomaz Vieira Mário). Haverá por certo uma necessidade histórica para essa influência. Há razões que ultrapassam o autor. Haveria uma predisposição orgânica em Moçambique e Angola para receber essa influência, e essa predisposição está para além da literatura. Tentarei neste encontro listar alguns dos factores que podem ajudar a compreender o modo como Rosa se tornou referência no outro lado do mundo.
Mia Couto, in Encontros e encantos — Guimarães Rosa (Intervenção na UFMG, Belo Horizonte, 2007).

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