domingo, 31 de maio de 2020

Linguagem

A Torre de Babel (1563), de Pieter Bruegel, o Velho

Antes da Torre de Babel não havia intérpretes porque todos entendiam o que todos falavam. Os intérpretes se tornaram necessários depois da confusão de línguas. “Interpretar” é dizer em linguagem que se entende aquilo que uma pessoa disse numa linguagem que não se entende. Os presidentes, embaixadores e reitores se valem de intérpretes. Acho que os intérpretes, quando os presidentes e reitores dizem besteiras, deveriam mentir, para não passar vergonha. Já vi intérpretes envergonhados. A interpretação começa com esta pergunta: “O que é que ele – ou ela – quis dizer?”. Versos da Cecília: “E no fundo dessa fria luz marinha nadam meus olhos, baços peixes à procura de mim mesma”. O que é que ela queria dizer? Para se fazer essa pergunta, é preciso se admitir que ela, a poeta, quis dizer algo mas não conseguiu. A poeta sofria de deficiência linguística. Mas o fato é que um poeta nunca “quer dizer algo”. O que ele diz é o que ele quer dizer. A resposta a um poema não é uma interpretação, é outro poema.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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