Atribuem
a Carlos Prestes um papel diversamente considerado neste vivo tempo
de exaltações ásperas: ídolo da massa. Isto lhe ocasiona louvores
excessivos e objurgatórias às vezes não isentas de algum despeito.
Doces panegiristas e detratores amargos concordam num ponto:
responsabilizam, pelo menos fingem responsabilizar essa estranha
figura por se haver tornado uma espécie de mito nacional.
Vamos
refletir um pouco. Será que realmente se tornou? No caso afirmativo,
poderia ter evitado essa canonização leiga? Afinal é ela
conveniente ou inconveniente?
O
que sucede a Carlos Prestes ocorre, em maior ou menor grau, a todos
os indivíduos forçados a romper o casulo e entrar na vida pública.
Não os veem como de fato são: enxergam-nos através de lentes
deformadoras. Qualquer literato sabe isto: pequenas alterações,
acumuladas, chegam a transformar uma pessoa: a frase largada na
livraria modifica-se no jornal, emprestando a um sujeito opinião que
ele nunca teve; críticos sagazes decifram complicados enigmas em
livros comuns. De repente surgimos autores de pensamentos alheios,
recebemos ataques ou elogios por uma entrevista dada pelo telefone,
em meia dúzia de palavras desatentas. Ora, se tal acontece ao
modesto colecionador de ideias mirins, em país analfabeto, que não
se dará com o dirigente político, em horas de efervescência como
as atuais? Lenda? Com certeza. Mas na história também fervilham
exageros — e às vezes, conhecendo as deturpações, não nos
livramos delas, tanto nos imbuíram.
Conseguiria
o homem assim crescido eximir-se da grandeza e readquirir o tamanho
natural? Pouco provável. Esse gigantismo significa a força criadora
da multidão. Tolice negá-lo ou condená-lo. É um fato. Não se
improvisa, não se encomenda: absurdo pretender forjá-lo nas escolas
ou na caserna, com hinos e lugares-comuns. Está no espírito do povo
— e não o extirparemos daí.
Vantajoso?
Desvantajoso? A um formigueiro de pigmeus bem acomodados é
desagradável. A turba imagina heróis para defender-se de bichinhos
importunos, na verdade uns insetos, mas tão numerosos que formam
pragas. De alguma forma os semideuses são um reflexo dela — e
apenas ela é capaz de concebê-los. Esses eleitos obtêm consagração
espontânea que lhes interpreta os atos em conformidade com os
interesses da maioria. Esta não se engana: sente neles a sinceridade
infalível, deixa-se arrastar, parece possuir antenas, dotes
divinatórios que nos assombram.
Evidentemente
não experimentaríamos a fascinação, o entusiasmo doido que leva o
popular, num comício, a despojar-se do paletó e queimá-lo,
transformá-lo em archote, ou supor-se bastante sólido para aguentar
sozinho uma carga de cavalaria. Não, em geral não queimamos os
paletós, e no dia 23 de maio víamos bem que tantos cavalos,
galopando para cima de gente, nos iriam causar sério transtorno.
Somos prudentes, calculistas: as nossas palmas ao discurso mais
enérgico são abafadas, lentas; as nossas almas encolhidas se
embotaram — e em consequência inspiramos ao habitante ingênuo do
morro uma vaga repulsa. Certo não concedemos auréola a Prestes : o
que nos atrai nele é a parte humana, de ordinário deixada na
sombra.
Logo
nos surpreende, ao conhecê-lo, uma desmedida paciência. Criatura
tão cheia de ocupações acha vagar para longas cavaqueiras. Quatro
anos atrás cavalheiros abundantes o amolaram com receitas admiráveis
para salvar a pátria. Um afirmou que ele, simulando escutar, não
lhe dava a atenção devida aos planos. Vistos os programas em curso
por aí, admitiremos sem dificuldade a informação. É inegável,
porém, que muitos badalaram tenazmente, em busca de um comunismo
eleitoral, para uso dos patrões. Decepcionaram-se — e houve muitas
injúrias nas folhas. Às vezes, entretanto, a paciência estala, uma
fenda se alarga e aprofunda na superfície convencional. Em sabatina
realizada no sertão mineiro, uma pergunta incômoda teve esta
elucidação fulminante:
— Falo
de coisas sérias. Não me ocupo de miseráveis, patifes, vendidos.
Essas
manifestações devem ser raras. Há em Prestes excessiva polidez.
Viajará horas em pé num aeroplano se alguém se avizinhar da
cadeira dele e puxar conversa. A voz clara, baixa, sacudida, não se
eleva — e é como se nos martelasse. Ouvindo-a através dos
alto-falantes, desconcertamo-nos ao perceber que finda a lhaneza e as
marteladas batem rijo no adversário e lhe metem pregos.
Há
quem o julgue intolerante, escarpado, fanático. Ninguém mais
acessível. A urbanidade ali não é máscara política, mas junta-se
à franqueza — e não ficaremos iludidos um minuto. Fazemos-lhes
uma exposição. Queda pensativo, o sorriso cansado a iluminar-lhe o
rosto pálido. Ao concluirmos dirá simplesmente:
— Discordo.
Não conheço direito o assunto: é possível que esteja em erro.
Venha almoçar comigo qualquer dia e traga elementos para
convencer-me.
Temos
a impressão de que nele se equilibram sentimentos opostos. Ou não
será isso: talvez se combinem qualidades naturais e qualidades
adquiridas, umas e outras a convergir, com força terrível, para a
concretização de uma ideia. A intensidade se explica pelo
afastamento impiedoso de tudo quanto de leve perturbe a execução de
um plano estudado com rigor, criticado e corrigido sempre, segundo as
circunstâncias.
Frieza?
Quase nos desorienta a contradição. Sob as cinzas que se espalham
na face torturada, lavra fogo medonho, pavoroso incêndio a custo
perceptível. Raramente uma labareda rompe a crosta gélida. Noutras
épocas essa alma ardente se teria enchido de visões celestes; hoje
se prende à terra.
Novo
contraste: achamo-nos diante de um tímido. Esta observação tem
visos de contrassenso e dificilmente será tolerada. Contudo
insistimos nela. Ninguém como os tímidos para dedicação completa
a uma empresa — e na coragem que revelam sente-se a impossibilidade
de recuar. Não os detêm obstáculos: nenhum desvio do caminho
escolhido.
Delicadeza
interior, pureza quase infantil trava a fala desse homem, turva-lhe
os olhos ao reler um trecho de carta materna; por outro lado imenso
vigor o induz às façanhas mais temerárias. Sobre a aguda
sensibilidade nasceram calos, alastraram-se, revestiram-na por fim de
espessa couraça impenetrável. Uma natureza emotiva refreou a emoção
e aparenta a firmeza de um compressor.
Ainda
uma dualidade: afigura-se-nos que a singular personagem apreende com
igual nitidez os objetos próximos e os distantes, graúdos e miúdos,
o panorama e o pormenor, os mais graves acontecimentos internacionais
e os efeitos de ligeiras desavenças existentes nas brenhas de um
território meio deserto.
Chegamos
agora a um ponto em que não distinguimos nenhum sinal de oposição:
há em Prestes uma dignidade fundamental, incontrastável. É a
essência do seu caráter. Admiram-no com exaltação, odeiam-no com
fúria, glorificam-no e caluniam-no. Seria difícil achar quem lhe
negasse respeito à austeridade imutável, maciça, que o leva a
afrontar serenamente duras fadigas e sacrifícios horríveis —
coisas previstas e necessárias.
Graciliano
Ramos, in Garranchos (Classe Operária, nº 157,
01/01/1949)
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