segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Prestes

Atribuem a Carlos Prestes um papel diversamente considerado neste vivo tempo de exaltações ásperas: ídolo da massa. Isto lhe ocasiona louvores excessivos e objurgatórias às vezes não isentas de algum despeito. Doces panegiristas e detratores amargos concordam num ponto: responsabilizam, pelo menos fingem responsabilizar essa estranha figura por se haver tornado uma espécie de mito nacional.
Vamos refletir um pouco. Será que realmente se tornou? No caso afirmativo, poderia ter evitado essa canonização leiga? Afinal é ela conveniente ou inconveniente?
O que sucede a Carlos Prestes ocorre, em maior ou menor grau, a todos os indivíduos forçados a romper o casulo e entrar na vida pública. Não os veem como de fato são: enxergam-nos através de lentes deformadoras. Qualquer literato sabe isto: pequenas alterações, acumuladas, chegam a transformar uma pessoa: a frase largada na livraria modifica-se no jornal, emprestando a um sujeito opinião que ele nunca teve; críticos sagazes decifram complicados enigmas em livros comuns. De repente surgimos autores de pensamentos alheios, recebemos ataques ou elogios por uma entrevista dada pelo telefone, em meia dúzia de palavras desatentas. Ora, se tal acontece ao modesto colecionador de ideias mirins, em país analfabeto, que não se dará com o dirigente político, em horas de efervescência como as atuais? Lenda? Com certeza. Mas na história também fervilham exageros — e às vezes, conhecendo as deturpações, não nos livramos delas, tanto nos imbuíram.
Conseguiria o homem assim crescido eximir-se da grandeza e readquirir o tamanho natural? Pouco provável. Esse gigantismo significa a força criadora da multidão. Tolice negá-lo ou condená-lo. É um fato. Não se improvisa, não se encomenda: absurdo pretender forjá-lo nas escolas ou na caserna, com hinos e lugares-comuns. Está no espírito do povo — e não o extirparemos daí.
Vantajoso? Desvantajoso? A um formigueiro de pigmeus bem acomodados é desagradável. A turba imagina heróis para defender-se de bichinhos importunos, na verdade uns insetos, mas tão numerosos que formam pragas. De alguma forma os semideuses são um reflexo dela — e apenas ela é capaz de concebê-los. Esses eleitos obtêm consagração espontânea que lhes interpreta os atos em conformidade com os interesses da maioria. Esta não se engana: sente neles a sinceridade infalível, deixa-se arrastar, parece possuir antenas, dotes divinatórios que nos assombram.
Evidentemente não experimentaríamos a fascinação, o entusiasmo doido que leva o popular, num comício, a despojar-se do paletó e queimá-lo, transformá-lo em archote, ou supor-se bastante sólido para aguentar sozinho uma carga de cavalaria. Não, em geral não queimamos os paletós, e no dia 23 de maio víamos bem que tantos cavalos, galopando para cima de gente, nos iriam causar sério transtorno. Somos prudentes, calculistas: as nossas palmas ao discurso mais enérgico são abafadas, lentas; as nossas almas encolhidas se embotaram — e em consequência inspiramos ao habitante ingênuo do morro uma vaga repulsa. Certo não concedemos auréola a Prestes : o que nos atrai nele é a parte humana, de ordinário deixada na sombra.
Logo nos surpreende, ao conhecê-lo, uma desmedida paciência. Criatura tão cheia de ocupações acha vagar para longas cavaqueiras. Quatro anos atrás cavalheiros abundantes o amolaram com receitas admiráveis para salvar a pátria. Um afirmou que ele, simulando escutar, não lhe dava a atenção devida aos planos. Vistos os programas em curso por aí, admitiremos sem dificuldade a informação. É inegável, porém, que muitos badalaram tenazmente, em busca de um comunismo eleitoral, para uso dos patrões. Decepcionaram-se — e houve muitas injúrias nas folhas. Às vezes, entretanto, a paciência estala, uma fenda se alarga e aprofunda na superfície convencional. Em sabatina realizada no sertão mineiro, uma pergunta incômoda teve esta elucidação fulminante:
Falo de coisas sérias. Não me ocupo de miseráveis, patifes, vendidos.
Essas manifestações devem ser raras. Há em Prestes excessiva polidez. Viajará horas em pé num aeroplano se alguém se avizinhar da cadeira dele e puxar conversa. A voz clara, baixa, sacudida, não se eleva — e é como se nos martelasse. Ouvindo-a através dos alto-falantes, desconcertamo-nos ao perceber que finda a lhaneza e as marteladas batem rijo no adversário e lhe metem pregos.
Há quem o julgue intolerante, escarpado, fanático. Ninguém mais acessível. A urbanidade ali não é máscara política, mas junta-se à franqueza — e não ficaremos iludidos um minuto. Fazemos-lhes uma exposição. Queda pensativo, o sorriso cansado a iluminar-lhe o rosto pálido. Ao concluirmos dirá simplesmente:
Discordo. Não conheço direito o assunto: é possível que esteja em erro. Venha almoçar comigo qualquer dia e traga elementos para convencer-me.
Temos a impressão de que nele se equilibram sentimentos opostos. Ou não será isso: talvez se combinem qualidades naturais e qualidades adquiridas, umas e outras a convergir, com força terrível, para a concretização de uma ideia. A intensidade se explica pelo afastamento impiedoso de tudo quanto de leve perturbe a execução de um plano estudado com rigor, criticado e corrigido sempre, segundo as circunstâncias.
Frieza? Quase nos desorienta a contradição. Sob as cinzas que se espalham na face torturada, lavra fogo medonho, pavoroso incêndio a custo perceptível. Raramente uma labareda rompe a crosta gélida. Noutras épocas essa alma ardente se teria enchido de visões celestes; hoje se prende à terra.
Novo contraste: achamo-nos diante de um tímido. Esta observação tem visos de contrassenso e dificilmente será tolerada. Contudo insistimos nela. Ninguém como os tímidos para dedicação completa a uma empresa — e na coragem que revelam sente-se a impossibilidade de recuar. Não os detêm obstáculos: nenhum desvio do caminho escolhido.
Delicadeza interior, pureza quase infantil trava a fala desse homem, turva-lhe os olhos ao reler um trecho de carta materna; por outro lado imenso vigor o induz às façanhas mais temerárias. Sobre a aguda sensibilidade nasceram calos, alastraram-se, revestiram-na por fim de espessa couraça impenetrável. Uma natureza emotiva refreou a emoção e aparenta a firmeza de um compressor.
Ainda uma dualidade: afigura-se-nos que a singular personagem apreende com igual nitidez os objetos próximos e os distantes, graúdos e miúdos, o panorama e o pormenor, os mais graves acontecimentos internacionais e os efeitos de ligeiras desavenças existentes nas brenhas de um território meio deserto.
Chegamos agora a um ponto em que não distinguimos nenhum sinal de oposição: há em Prestes uma dignidade fundamental, incontrastável. É a essência do seu caráter. Admiram-no com exaltação, odeiam-no com fúria, glorificam-no e caluniam-no. Seria difícil achar quem lhe negasse respeito à austeridade imutável, maciça, que o leva a afrontar serenamente duras fadigas e sacrifícios horríveis — coisas previstas e necessárias.
Graciliano Ramos, in Garranchos (Classe Operária, nº 157, 01/01/1949)

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