quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Os pintores mexicanos

Katharsis (1935), de José Clemente Orozco

A vida intelectual do México estava dominada pela pintura.
Estes pintores do México cobriam a cidade com História e Geografia, com incursões civis, com polêmicas ferruginosas. Num cume excelso estava situado José Clemente Orozco, titã manco e mirrado, espécie de Goya de sua pátria fantasmagórica. Muitas vezes conversei com ele. Sua pessoa parecia carecer da violência que teve sua obra. Tinha uma suavidade de oleiro que perdeu a mão no torno e que com a mão que restou sente-se obrigado a continuar criando universos. Seus soldados e vivandeiras, seus camponeses fuzilados pelas autoridades, seus sarcófagos com terríveis crucificados são o que há de mais imortal em nossa pintura americana e permanecerão como a revelação de nossa crueldade.
Diego Rivera tinha já trabalhado tanto por esses anos e tinha se batido tanto com todos que já o pintor colossal pertencia à lenda. Ao vê-lo me parecia estranho não descobrir nele caudas com escamas ou patas com garras.
Diego Rivera sempre foi dado a invencionices. Antes da Primeira Guerra Mundial, Ilya Ehrenburg tinha publicado, em Paris, um livro sobre suas façanhas e mistificações: Vida e andanças de Julio Jurenito.
Trinta anos depois Diego Rivera continuava sendo grande mestre da pintura e da fabulação. Aconselhava comer carne humana como dieta higiênica e de grandes gourmets. Dava receitas para cozinhar gente de todas as idades. Outras vezes empenhava-se em teorizar sobre o amor lésbico, sustentando que essa relação era a única normal, segundo provavam os vestígios históricos mais remotos encontrados em escavações que ele mesmo tinha dirigido.
Às vezes conversava horas comigo, movendo seus empapuçados olhos de índio, e me revelava sua origem judia. Outras vezes, esquecendo a conversa anterior, jurava que ele era o pai do General Rommel, mas essa confidência devia ficar absolutamente secreta porque sua revelação podia ter sérias consequências internacionais.
Seu tom de persuasão extraordinário e sua maneira pachorrenta de fornecer os detalhes mais íntimos e inesperados de suas mentiras faziam dele um charlatão maravilhoso, cujo encanto ninguém que o conheceu jamais pode esquecer.
David Alfaro Siqueiros estava então no cárcere. Alguém o tinha metido numa incursão armada à casa de Trotsky. Conheci-o na prisão mas em verdade também fora dela porque saíamos com Pérez Rulfo, comandante da prisão, e íamos beber juntos onde não déssemos muito na vista. Voltávamos altas horas da noite e eu dava um abraço de despedida em David, que ficava atrás de suas grades.
Numa dessas voltas de Siqueiros da rua à prisão, conheci seu irmão, uma pessoa estranhíssima chamada Jesús Siqueiros. A palavra dissimulado, mas no bom sentido, é a que mais se aproxima para descrevê-lo. Deslizava junto às paredes sem fazer ruído nem movimento algum. De repente surgia atrás de ti ou a teu lado. Falava pouco e, quando o fazia, era apenas um murmúrio. O que não era obstáculo para que numa maleta pequena que levava consigo, também silenciosamente, transportasse quarenta ou cinquenta pistolas. Certa vez aconteceu-me abrir, distraidamente, a maleta e descobri com estupor aquele arsenal de cabos negros, nacarados e prateados.
Tudo para nada porque Jesús Siqueiros era tão pacifico quanto era turbulento seu irmão David. Jesús tinha também dotes de grande artista ou ator, uma espécie de mimo. Sem mover o corpo nem as mãos, sem emitir um único som, deixando atuar somente o rosto que mudava de expressão à vontade, expressava ao vivo, como máscaras sucessivas, o terror, a angústia, a alegria e a ternura. Aquele pálido rosto de fantasma acompanhava-o por entre seu labirinto vital, de onde emergia de vez em quando carregado de pistolas que nunca usou.
Estes vulcânicos pintores mantinham concentrada neles a atenção pública. Às vezes sustentavam polêmicas tremendas. Numa delas, esgotados os argumentos, Diego Rivera e Siqueiros sacaram grandes pistolas e dispararam quase ao mesmo tempo mas contra as asas dos anjos de gesso do teto do teatro. Quando as pesadas plumas de gesso começaram a cair sobre as cabeças dos espectadores, estes foram abandonando o teatro e aquela discussão terminou com um forte cheiro de pólvora e uma sala vazia.
Rufino Tamayo não vivia então no México. De Nova Iorque suas pinturas se difundiram, complexas e ardentes, tão representativas do México como as frutas ou os tecidos dos mercados.
Não há paralelo entre a pintura de Diego Rivera e a de David Alfaro Siqueiros. Diego é um clássico linear; com essa linha infinitamente ondulante, espécie de caligra-fia histórica, foi tecendo a história do México e dando-lhe relevo a feitos, costumes e tragédias. Siqueiros é a explosão de um temperamento vulcânico que combina técnica assombrosa e longas investigações.
Entre saídas clandestinas da prisão e conversas sobre tudo quanto existe tramamos, Siqueiros e eu, sua liberação definitiva. Provido de um visto que eu mesmo estampei em seu passaporte, dirigiu-se ao Chile com sua mulher, Angélica Arenales.
O México havia construído uma escola na cidade de Chillán, que tinha sido destruída pelos terremotos, e nessa “Escola México” Siqueiros pintou um de seus murais extraordinários. O governo do Chile me pagou este serviço à cultura nacional suspendendo-me de minhas funções de cônsul por dois meses.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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