Katharsis (1935), de José Clemente Orozco
A vida intelectual do México estava
dominada pela pintura.
Estes pintores do México cobriam a
cidade com História e Geografia, com incursões civis, com polêmicas
ferruginosas. Num cume excelso estava situado José Clemente Orozco,
titã manco e mirrado, espécie de Goya de sua pátria
fantasmagórica. Muitas vezes conversei com ele. Sua pessoa parecia
carecer da violência que teve sua obra. Tinha uma suavidade de
oleiro que perdeu a mão no torno e que com a mão que restou
sente-se obrigado a continuar criando universos. Seus soldados e
vivandeiras, seus camponeses fuzilados pelas autoridades, seus
sarcófagos com terríveis crucificados são o que há de mais
imortal em nossa pintura americana e permanecerão como a revelação
de nossa crueldade.
Diego Rivera tinha já trabalhado tanto
por esses anos e tinha se batido tanto com todos que já o pintor
colossal pertencia à lenda. Ao vê-lo me parecia estranho não
descobrir nele caudas com escamas ou patas com garras.
Diego Rivera sempre foi dado a
invencionices. Antes da Primeira Guerra Mundial, Ilya Ehrenburg tinha
publicado, em Paris, um livro sobre suas façanhas e mistificações:
Vida e andanças de Julio Jurenito.
Trinta anos depois Diego Rivera
continuava sendo grande mestre da pintura e da fabulação.
Aconselhava comer carne humana como dieta higiênica e de grandes
gourmets. Dava receitas para cozinhar gente de todas as idades.
Outras vezes empenhava-se em teorizar sobre o amor lésbico,
sustentando que essa relação era a única normal, segundo provavam
os vestígios históricos mais remotos encontrados em escavações
que ele mesmo tinha dirigido.
Às vezes conversava horas comigo,
movendo seus empapuçados olhos de índio, e me revelava sua origem
judia. Outras vezes, esquecendo a conversa anterior, jurava que ele
era o pai do General Rommel, mas essa confidência devia ficar
absolutamente secreta porque sua revelação podia ter sérias
consequências internacionais.
Seu tom de persuasão extraordinário e
sua maneira pachorrenta de fornecer os detalhes mais íntimos e
inesperados de suas mentiras faziam dele um charlatão maravilhoso,
cujo encanto ninguém que o conheceu jamais pode esquecer.
David Alfaro Siqueiros estava então no
cárcere. Alguém o tinha metido numa incursão armada à casa de
Trotsky. Conheci-o na prisão mas em verdade também fora dela porque
saíamos com Pérez Rulfo, comandante da prisão, e íamos beber
juntos onde não déssemos muito na vista. Voltávamos altas horas da
noite e eu dava um abraço de despedida em David, que ficava atrás
de suas grades.
Numa dessas voltas de Siqueiros da rua à
prisão, conheci seu irmão, uma pessoa estranhíssima chamada Jesús
Siqueiros. A palavra dissimulado, mas no bom sentido, é a que mais
se aproxima para descrevê-lo. Deslizava junto às paredes sem fazer
ruído nem movimento algum. De repente surgia atrás de ti ou a teu
lado. Falava pouco e, quando o fazia, era apenas um murmúrio. O que
não era obstáculo para que numa maleta pequena que levava consigo,
também silenciosamente, transportasse quarenta ou cinquenta
pistolas. Certa vez aconteceu-me abrir, distraidamente, a maleta e
descobri com estupor aquele arsenal de cabos negros, nacarados e
prateados.
Tudo para nada porque Jesús Siqueiros
era tão pacifico quanto era turbulento seu irmão David. Jesús
tinha também dotes de grande artista ou ator, uma espécie de mimo.
Sem mover o corpo nem as mãos, sem emitir um único som, deixando
atuar somente o rosto que mudava de expressão à vontade, expressava
ao vivo, como máscaras sucessivas, o terror, a angústia, a alegria
e a ternura. Aquele pálido rosto de fantasma acompanhava-o por entre
seu labirinto vital, de onde emergia de vez em quando carregado de
pistolas que nunca usou.
Estes vulcânicos pintores mantinham
concentrada neles a atenção pública. Às vezes sustentavam
polêmicas tremendas. Numa delas, esgotados os argumentos, Diego
Rivera e Siqueiros sacaram grandes pistolas e dispararam quase ao
mesmo tempo mas contra as asas dos anjos de gesso do teto do teatro.
Quando as pesadas plumas de gesso começaram a cair sobre as cabeças
dos espectadores, estes foram abandonando o teatro e aquela discussão
terminou com um forte cheiro de pólvora e uma sala vazia.
Rufino Tamayo não vivia então no
México. De Nova Iorque suas pinturas se difundiram, complexas e
ardentes, tão representativas do México como as frutas ou os
tecidos dos mercados.
Não há paralelo entre a pintura de
Diego Rivera e a de David Alfaro Siqueiros. Diego é um clássico
linear; com essa linha infinitamente ondulante, espécie de
caligra-fia histórica, foi tecendo a história do México e
dando-lhe relevo a feitos, costumes e tragédias. Siqueiros é a
explosão de um temperamento vulcânico que combina técnica
assombrosa e longas investigações.
Entre saídas clandestinas da prisão e
conversas sobre tudo quanto existe tramamos, Siqueiros e eu, sua
liberação definitiva. Provido de um visto que eu mesmo estampei em
seu passaporte, dirigiu-se ao Chile com sua mulher, Angélica
Arenales.
O México havia construído uma escola na
cidade de Chillán, que tinha sido destruída pelos terremotos, e
nessa “Escola México” Siqueiros pintou um de seus murais
extraordinários. O governo do Chile me pagou este serviço à
cultura nacional suspendendo-me de minhas funções de cônsul por
dois meses.
Pablo Neruda,
in Confesso que vivi
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