sábado, 9 de novembro de 2019

O chimpanzé autoconsciente

Outra tentativa de preservar a noção da superioridade humana aceita que ratos, cães e outros animais tenham consciência, mas alega que, diferentemente dos humanos, eles carecem de autoconsciência. Podem se sentir deprimidos, felizes, famintos ou saciados, porém não têm noção de si mesmos nem estão cientes de que a depressão ou a fome que sentem pertencem a uma entidade única chamada “eu”.
Essa ideia é tão comum quanto obscura. Obviamente, quando um cão sente fome ele pega um pedaço de carne para si mesmo em vez de servir o alimento a outro cão. Deixe um cão farejar árvores que foram molhadas pelos cães da vizinhança, e ele imediatamente vai saber se está farejando sua urina, a da linda labrador do vizinho ou a de algum cão desconhecido. Os cães reagem ao próprio cheiro diferentemente do que o fazem em relação aos cheiros de parceiros potenciais ou rivais. O que significa dizer, então, que carecem de autoconsciência?
Uma versão mais sofisticada desse argumento dá conta de que existem diferentes níveis de autoconsciência. Apenas os humanos entendem a si mesmos como um eu duradouro que tem um passado e um futuro, talvez porque somente eles são capazes de usar a língua para poder contemplar experiências passadas e ações futuras. Os outros animais existem num eterno presente. Mesmo que pareçam lembrar o passado ou planejar o futuro, estão somente reagindo a estímulos atuais e impulsos momentâneos. Por exemplo, um esquilo, ao esconder nozes para o inverno, não está na verdade se lembrando da fome que sentiu no inverno passado, nem está pensando no futuro. Está só satisfazendo um impulso momentâneo, alheio às origens e propósitos desse impulso. É por isso que até esquilos jovens, que ainda não passaram por um inverno, e, portanto, não podem se lembrar do que é enfrentar essa estação, escondem suas nozes durante o verão.
Mas ainda não está claro por que a língua deveria ser uma condição necessária para se estar ciente dos eventos passados ou futuros. O fato de os humanos a usarem para isso dificilmente seria uma prova. Humanos também usam a língua para expressar seu amor ou seu medo, no entanto outros animais bem podem experimentar e até expressar amor e medo de forma não verbal. Na verdade, os próprios humanos estão cientes de eventos passados e futuros sem verbalizá-los. Sobretudo quando sonhamos, podemos estar cientes de narrativas inteiramente não verbais — as quais, ao despertar, tentamos descrever em palavras.
Vários experimentos indicam que ao menos alguns animais — inclusive aves como papagaios e gralhas-azuis (Aphelocoma californica) — se lembram de incidentes individuais e se planejam conscientemente para eventualidades futuras. Contudo, é impossível provar isso definitivamente, porque não importa quão sofisticado seja o comportamento exibido por um animal, os céticos sempre poderão alegar que ele resulta de algoritmos inconscientes em seu cérebro, e não de imagens conscientes em sua mente.
Para ilustrar esse problema, considere o caso de Santino, um chimpanzé macho do Zoológico de Furuvik, na Suécia. Para amenizar o tédio em seus domínios, Santino desenvolveu um excitante hobby: jogar pedras nos visitantes. Esse ato, em si mesmo, não é excepcional. Chimpanzés enraivecidos frequentemente fazem lançamento de pedras, paus e excremento. No entanto, Santino planejou previamente suas ações. Pela manhã, bem cedo, muito antes de o zoo abrir para os visitantes, Santino juntou projéteis e os empilhou, sem demonstrar nenhum sinal visível de raiva. Guias e visitantes logo aprenderam a se acautelar contra ele, em especial quando estava em cima de sua pilha de pedras; assim, o animal tinha cada vez mais dificuldade em localizar alvos.
Em maio de 2010, Santino reagiu com uma nova estratégia. De manhã cedo ele tirou fardos de palha da área onde dormia e os colocou junto ao muro, onde comumente os visitantes se agrupam para olhar os chimpanzés. Depois reuniu pedras e as escondeu debaixo da palha. Cerca de uma hora depois, quando os primeiros visitantes se aproximaram, Santino ostentava calma, sem sinais de irritação ou agressão. Somente quando suas vítimas estavam em seu raio de alcance é que Santino, de súbito, tirou as pedras de seu esconderijo e bombardeou os assustados humanos, que debandaram em todas as direções. No verão de 2012, Santino acelerou a corrida armamentista, escondendo pedras não apenas sob fardos de palha, mas também em troncos de árvores, construções e em qualquer outro lugar utilizável como esconderijo.
Mas nem mesmo Santino satisfaz os céticos. Como podemos ter certeza de que, às sete horas da manhã, quando vai catar pedras aqui e ali, ele esteja imaginando como vai ser divertido bombardear os visitantes humanos ao meio-dia? Será que Santino é movido por algum algoritmo não consciente, assim como um jovem esquilo esconde nozes “para o inverno” sem nunca ter experimentado um?
Do mesmo modo, afirmam os céticos, um chimpanzé macho que ataca um rival que o feriu semanas antes não está realmente vingando o antigo insulto. Está apenas reagindo a um sentimento momentâneo de raiva, cujo motivo está além de sua percepção. Quando uma mãe elefante vê um leão ameaçando seu filhote, ela lança-se à frente e arrisca sua vida não porque se lembra de que aquela é sua cria amada, a qual ela tem alimentado por meses, e sim porque está sendo impelida por algum insondável senso de hostilidade em relação ao leão. Quando um cão salta de alegria quando seu dono chega em casa, não o faz porque está reconhecendo a pessoa que o alimenta e o afaga desde sua infância. Está simplesmente dominado por um êxtase inexplicável.
Não podemos provar ou contestar nenhuma dessas alegações, porque na verdade elas são uma variação do Problema de Outras Mentes. Como não estamos familiarizados com algoritmos que requeiram consciência, tudo o que um animal se mostre capaz de fazer pode ser visto como produto de algoritmos não conscientes, e não de memórias e planos conscientes. Assim, inclusive no caso de Santino, a verdadeira questão diz respeito ao ônus da prova. Qual será a explicação mais plausível para o comportamento daquele chimpanzé? Deveríamos supor que ele está planejando conscientemente seu futuro, e quem discordar que apresente alguma evidência contrária? Ou é mais razoável pensar que o animal é movido por um algoritmo não consciente, e tudo o que ele sente conscientemente consiste em um misterioso impulso de colocar pedras sob fardos de palha?
E, ainda que Santino não se lembre do passado e não imagine um futuro, isso significa de fato que carece de autoconsciência? Afinal, atribuímos aos humanos autoconsciência mesmo quando não estão se ocupando em relembrar o passado ou em sonhar com o futuro. Por exemplo, quando uma mãe humana vê seu filho que começou a andar há pouco tempo caminhando para uma rua movimentada, ela não se detém para pensar em seu passado ou seu futuro. Assim como a mãe elefante, ela apenas corre para salvar seu filho. Por que não dizer sobre ela o que dizemos sobre a elefanta, isto é, que “quando correu para salvar sua cria do iminente perigo, ela fez isso sem nenhum traço de autoconsciência. O que a guiava era um impulso momentâneo”?
De modo semelhante, considere um jovem casal se beijando apaixonadamente em seu primeiro encontro; um soldado avançando em meio a pesado fogo inimigo para salvar um companheiro ferido; ou um artista pintando uma obra-prima num frenesi de pinceladas. Nenhum deles se detém para contemplar o passado ou o futuro. Isso significa que lhes falta consciência de si mesmos e que o estado de seu ser é inferior ao de um político que faz um discurso eleitoral sobre suas conquistas passadas e seus planos futuros?
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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