Mergulhei
numa comprida manhã de inverno. O açude apojado, a roça verde,
amarela e vermelha, os caminhos estreitos mudados em riachos,
ficaram-me na alma. Depois veio a seca. Árvores pelaram-se, bichos
morreram, o sol cresceu, bebeu as águas, e ventos mornos espalharam
na terra queimada uma poeira cinzenta. Olhando-me por dentro, percebo
com desgosto a segunda paisagem. Devastação, calcinação. Nesta
vida lenta sinto-me coagido entre duas situações contraditórias —
uma longa noite, um dia imenso e enervante, favorável à modorra.
Frio e calor, trevas densas e claridades ofuscantes.
Naquele
tempo a escuridão se ia dissipando, vagarosa. Acordei, reuni pedaços
de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que boiavam no passado
confuso, articulei tudo, criei o meu pequeno mundo incongruente. Às
vezes as peças se descolocavam — e surgiam estranhas mudanças. Os
objetos se tornavam irreconhecíveis, e a humanidade, feita de indivíduos que me atormentavam e indivíduos que não me
atormentavam, perdia os característicos.
Bem
e mal ainda não existiam, faltava razão para que nos afligissem com
pancadas e gritos. Contudo as pancadas e os gritos figuravam na ordem
dos acontecimentos, partiam sempre de seres determinados, como a
chuva e o sol vinham do céu. E o céu era terrível, e os donos da
casa eram fortes. Ora, sucedia que minha mãe abrandava de repente e
meu pai, silencioso, explosivo, resolvia contar-me histórias.
Admirava-me, aceitava a lei nova, ingênuo, admitia que a natureza se
houvesse modificado. Fechava-se o doce parêntese — e isto me
desorientava.
Na
manhã de inverno as cercas e as plantas quase se dissolviam, a
neblina vestia o campo, dos montes de lixo do quintal subia fumaça,
pingos espaçados caíam das goteiras, a cruviana mordia a gente.
Sapatões de vaqueiros depositavam grossas camadas de barro no
tijolo. Roupas molhadas deixavam manchas largas nos bancos do copiar.
As paredes úmidas enegreciam. Deitava-me na rede, encolhia-me,
enrolava-me nas varandas. Um candeeiro de querosene lambia a névoa
com labaredas trêmulas.
Alguns
viventes idosos chegavam, sumiam-se, tornavam a manifestar-se depois
de longas ausências. De um deles, meu avô paterno, ficaram notícias
vagas e um retrato desbotado no álbum que se guardava no baú.
Legou-me talvez a vocação absurda para as coisas inúteis. Era um
velho tímido, que não gozava, suponho, muito prestígio na família.
Possuíra engenhos na mata; enganado por amigos e parentes sagazes,
arruinara e dependia dos filhos. Às vezes endireitava o espinhaço,
o antigo proprietário ressurgia, mas isto, rabugice da enfermidade,
findava logo e o pobre homem resvalava na insignificância e na rede.
Bom músico, especializara-se no canto. Em recordação imprecisa,
revejo mulheres ajoelhadas em redor de um oratório. Meu avô, em pé,
cantava — e havia-se tornado enorme. Como podia uma pessoa gritar
de semelhante maneira? A grandeza e a harmonia singular hoje
desdobram a figura gemente e mesquinha, de ordinário ocupada, apesar
da moléstia, em fabricar miudezas. Tinha habilidade notável e muita
paciência. Paciência? Acho agora que não é paciência. É uma
obstinação concentrada, um longo sossego que os fatos exteriores
não perturbam. Os sentidos esmorecem, o corpo se imobiliza e curva,
toda a vida se fixa em alguns pontos — no olho que brilha e se
apaga, na mão que solta o cigarro e continua a tarefa, nos beiços
que murmuram palavras imperceptíveis e descontentes. Sentimos
desânimo ou irritação, mas isto apenas se revela pela tremura dos
dedos, pelas rugas que se cavam. Na aparência estamos tranquilos. Se
nos falarem, nada ouviremos ou ignoraremos o sentido do que nos
dizem. E como há frequentes suspensões no trabalho, com certeza
imaginarão que temos preguiça. Desejamos realmente abandoná-lo.
Contudo gastamos uma eternidade no arranjo de ninharias, que se
combinam, resultam na obra tormentosa e falha. Meu avô nunca
aprendera nenhum ofício. Conhecia, porém, diversos, e a carência
de mestre não lhe trouxe desvantagem. Suou na composição das
urupemas. Se resolvesse desmanchar uma, estudaria facilmente a fibra,
o aro, o tecido.
Julgava
isto um plágio. Trabalhador caprichoso e honesto, procurou os seus
caminhos e executou urupemas fortes, seguras. Provavelmente não
gostavam delas: prefeririam vê-las tradicionais e corriqueiras,
enfeitadas e frágeis. O autor, insensível à crítica, perseverou
nas urupemas rijas e sóbrias, não porque as estimasse, mas porque
eram o meio de expressão que lhe parecia mais razoável. Meu avô
materno, alto, magro, de cabelos e barba como pasta de algodão,
muito se diferençava dessa criatura achacada: não desperdiçava
tempo em cantiga nem se fatigava em miuçalhas. De perneiras, gibão
e peitoral, as abas do chapéu de couro, repuxado para a nuca, a
emoldurar-lhe o rosto vermelho, impunha-se. A voz lenta, nasal,
pigarreada pelo excesso de tabaco, rolava com um ronrom descontente
que nos arranhava os ouvidos, depois se insinuava, se adocicava,
tomava a consistência de goma. Tínhamos a impressão de que a fala
ranzinza nos acariciava e repreendia. Os gestos eram vagarosos. Homem
de imenso vigor, resistente à seca, ora na prosperidade, ora no
desmantelo, reconstruindo corajoso a fortuna, em geral não se
expandia. Escutava sereno as conversas, o lenço encarnado no ombro
ou nos joelhos, o olho azul perdido na capoeira familiar, percebendo
sinais invisíveis ao observador comum. Possuía conhecimentos
infusos a respeito de tudo quanto se refere a bichos: indicava com
segurança as crias das vacas paridas no mato, adivinhava o peso
exato dos bois de era. Para vender o seu gado nunca precisou de
balança. Esse avô bárbaro dispensava ao civilizado, artífice e
cantor, exageros de atenção, em que havia talvez surpresa, desdém,
o receio de magoá-lo, estragá-lo com as mãos duras.
Minha
avó, grave, ossuda, tinha protuberâncias na testa e bugalhos
severos. Anos depois contou-me desgostos íntimos: o marido,
ciumento, afligira-a demais. Só aí me inteirei de que ela havia
sofrido e era boa, mas na época do ciúme e da tortura não lhe
notei a bondade.
Existia
também um casal de bisavós: uma santa morena e encarquilhada, um
velhinho autoritário que embirrava com meu pai.
Além
dessas pessoas e dos moradores da fazenda, surgiam no pátio ciganos
em magotes, vaqueiros encourados, aboiando, algum raro viajante. Dois
passageiros conservaram-se nos relatos da família. O primeiro, um
cabra macambúzio e suspeito, foi mal recebido. Minha mãe espiou a
vizinhança, buscando Amaro ou José Baía, e sentou-se num canto da
sala, perto das armas de fogo. O tipo acocorou-se à porta. E assim
permaneceram, ele ferindo a pederneira com o fuzil, chupando o
cigarro, ela observando-lhe os movimentos, defendida pelos
bacamartes, confiante na firmeza da mão e na pontaria. À tarde o
cabra macambúzio declarou a meu pai que a dona era reimosa.
O
outro visitante apareceu duas ou três vezes, cochichou demorado no
copiar e sumiu-se levando algumas dezenas de mil-réis. Esse dinheiro
significava o imposto dos proprietários rurais aos numerosos grupos
de cangaceiros que percorriam o sertão, pouco exigentes comparados
aos posteriores. Mediante algumas cédulas, uma novilha ou marra,
obtinham-se dedicações, amizades proveitosas. Quando nos mudamos
para a vila, cinco ou seis bandoleiros que transitavam pelos
arredores saíram do caminho, embrenharam-se na catinga, para não
assustar a mulher e as crianças.
Ausentes
os hóspedes e os passageiros, caíamos no ramerrão fastidioso.
Os
mesmos trabalhos de pega, ferra, ordenha; ferrolhos rangendo pela
madrugada e ao escurecer; vozes ásperas, exigências curtas, ordens
incompreensíveis. Por toda a parte despojos de animais: ossos
branquejando nas veredas, caveiras de bois espetadas em estacas,
couros espichados, malas de couro, surrões de couro, roupas de couro
suspensas em tornos, chocalhos com badalos de chifre, montes de
látegos, relhos, arreios, cabrestos de cabelo.
Agora
o mundo se retirava além do monturo do quintal, mas não nos
aventurávamos a penetrar nessa região desconhecida. O pé-de-turco
era o meu refúgio. As meninas arrastavam-se no alpendre e na
cozinha. O moleque José começava a revelar-se. Minha irmã natural
se desenvolvia, recebendo com frequência arranhões nos melindres. A
aversão que inspirava traduzia-se em remoques e muxoxos; quando
tomava feição agressiva, fazia ricochete e vinha atingir-nos. Se
não existisse aquele pecado, estou certo de que minha mãe teria
sido mais humana. De fato meu pai mostrava comportar-se bem. Mas
havia aquela evidência de faltas antigas, uma evidência forte, de
cabeleira negra, beiços vermelhos, olhos provocadores. Minha mãe
não dispunha dessas vantagens. E com certeza se amofinava, coitada,
revendo-se em nós, percebendo cá fora, soltos dela,
maltratando-nos. Julgo que aguentamos cascudos por não termos a
beleza de Mocinha.
Graciliano
Ramos, in Infância
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