quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Durango Kid


O Millôr certa vez falou da sua emoção ao descobrir o lápis n. 1.
Acho que todo homem reproduz, em algum momento da sua vida, a sensação do primeiro pré-humano que enfiou o dedo numa fava de mel e depois lambeu o dedo, e teve um vislumbre das dádivas do mundo — enquanto fugia das abelhas. O meu momento foi ao ver meu primeiro gibi a quatro cores. Quadrinhos coloridos! A vida tinha doçuras insuspeitadas. Mas nunca me orgulhei tanto do que fiz como quando construí um projetor com uma caixa de charutos e projetei na parede um filme desenhado por mim em papel de seda. O filme queimou em dois segundos, mas foram meus melhores dois segundos até agora. Meu pai trouxe um projetor de verdade, de 16mm, de uma viagem aos Estados Unidos, mas só dois filmes: um de patinação no gelo, com a Sonja Henie, para a minha irmã, e um do Durango Kid para mim. Víamos os filmes sem parar, e sem cansar. Veríamos qualquer coisa projetada na tela improvisada com o mesmo prazer. O que interessava mesmo era aquela mágica: cinema em casa!
Há algum tempo perguntaram a várias personalidades qual era o filme da sua vida. Curiosamente, os dois filmes mais citados, Amarcord e Cinema Paradiso, são evocações da infância em que o cinema é a referência comum. Como não eram filmes tão antigos assim, sua escolha foi uma maneira indireta de a maioria fazer a ligação de cinema e nostalgia, e dizer que nossa relação com o cinema é sempre a da fascinação infantil. O filme de Giuseppe Tornatore não é sobre outra coisa. O do Fellini é, entre outras coisas, sobre o impacto do cinema e tudo que ele representava na alma provinciana e na imaginação infantil. Crescemos todos num arrabalde de Hollywood, vendo as suas luzes de longe e sonhando em ser, conhecer ou (mais tarde) comer suas estrelas. Amarcord e Cinema Paradiso são os filmes das nossas vidas literalmente.
Não sei se eu teria algum prurido em repetir que o filme que marcou a minha vida foi o Gunga Din. Mas se fosse ser sincero e fiel aos meus excessos — devo ter visto o filme umas 20 vezes — votaria em Gunga Din. Depois, claro, Casablanca e vários Hitchcocks, como uma pessoa normal. Mas somos reféns sentimentais dos nossos prazeres mais remotos. Nenhum foi melhor do que aquele do Durango Kid.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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