O Millôr certa vez falou da sua emoção
ao descobrir o lápis n. 1.
Acho que todo homem reproduz, em algum
momento da sua vida, a sensação do primeiro pré-humano que enfiou
o dedo numa fava de mel e depois lambeu o dedo, e teve um vislumbre
das dádivas do mundo — enquanto fugia das abelhas. O meu momento
foi ao ver meu primeiro gibi a quatro cores. Quadrinhos coloridos! A
vida tinha doçuras insuspeitadas. Mas nunca me orgulhei tanto do que
fiz como quando construí um projetor com uma caixa de charutos e
projetei na parede um filme desenhado por mim em papel de seda. O
filme queimou em dois segundos, mas foram meus melhores dois segundos
até agora. Meu pai trouxe um projetor de verdade, de 16mm, de uma
viagem aos Estados Unidos, mas só dois filmes: um de patinação no
gelo, com a Sonja Henie, para a minha irmã, e um do Durango Kid para
mim. Víamos os filmes sem parar, e sem cansar. Veríamos qualquer
coisa projetada na tela improvisada com o mesmo prazer. O que
interessava mesmo era aquela mágica: cinema em casa!
Há algum tempo perguntaram a várias
personalidades qual era o filme da sua vida. Curiosamente, os dois
filmes mais citados, Amarcord
e Cinema Paradiso,
são evocações da infância em que o cinema é a referência comum.
Como não eram filmes tão antigos assim, sua escolha foi uma maneira
indireta de a maioria fazer a ligação de cinema e nostalgia, e
dizer que nossa relação com o cinema é sempre a da fascinação
infantil. O filme de Giuseppe Tornatore não é sobre outra coisa. O
do Fellini é, entre outras coisas, sobre o impacto do cinema e tudo
que ele representava na alma provinciana e na imaginação infantil.
Crescemos todos num arrabalde de Hollywood, vendo as suas luzes de
longe e sonhando em ser, conhecer ou (mais tarde) comer suas
estrelas. Amarcord
e Cinema Paradiso
são os filmes das nossas vidas literalmente.
Não sei se eu teria algum prurido em
repetir que o filme que marcou a minha vida foi o Gunga
Din. Mas se fosse ser sincero
e fiel aos meus excessos — devo ter visto o filme umas 20 vezes —
votaria em Gunga Din.
Depois, claro, Casablanca
e vários Hitchcocks, como uma pessoa normal. Mas somos reféns
sentimentais dos nossos prazeres mais remotos. Nenhum foi melhor do
que aquele do Durango Kid.
Luís Fernando Veríssimo,
in Banquete com os deuses
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