domingo, 17 de novembro de 2019

Cerra-Dente

Miúdo, graças à vigilância amarga de Emma Gadderly, do Serviço do Bem-Estar Social, teve de ir para a escola. Do primeiro ano primário até a formatura ginasial, recebeu notas persistentemente “regularas”, raramente conversava em classe, teve vários conhecidos agradáveis e nenhum amigo íntimo. No primeiro dia de aula de ginástica, no colegial, o técnico de futebol, que tinha aspiração a diretor do colégio local, até mesmo se ajoelhou e lhe implorou que participasse do time. Miúdo disse que gostaria, mas tinha que ir direto para casa depois da escola e trabalhar nas cercas do rancho. O mesmo disse a Sally Ann Charters quando esta lhe pediu para ir ao Baile das Solteironas. O mesmo disse a Herbie e Allan quando o convidaram para ir a Tijuana, durante as curtas férias da primavera, a fim de dar umas rodadas de carro e farrear nos puteiros. O mesmo disse ao técnico de basquete e ao de corrida. O mesmo.
Contentava-se trabalhando nas cercas. Planejava no inverno, construía na primavera e verão, e fazia as estacas no outono, rachava sequoia, fazia o acabamento com o machado de carpinteiro e o corta-chefe, até alguém poder jurar, a três metros de distância, que tinham sido feitas numa serraria. Ao terminar o ginásio, construíra cercas demarcando todo o perímetro do rancho; passou sus anos de curso ginasial cercando na perpendicular, reconstruindo e trabalhando em porteiras, forjando as próprias dobradiças, gonzos e parafusos. Quando recebeu o diploma, recomeçou, aperfeiçoando-as. Tinha numerosas ofertas, com salários excepcionais, para construir cercas para outros (duas ofertas vieram de longe, de Montana) mas sempre dizia:
Puxa, Gostaria de te ajudar, Mas tenho trabalho demais no meu próprio lugar; e também tenho que ficar de olho no vovô.
Miúdo e vovô Jake compartilhavam os sofrimentos que inevitavelmente acompanham as paixões sérias. No caso do vovô, a causa da sua dor era Emma Gadderly, pois, tendo ela descoberto eu alambique, exigiu ação do delegado Hobson, que, fiel ao dever pacificador, fez vovô mudá-lo de lugar. Até ela o descobrir de novo. Era um pé-no-saco ficar mudando o alambique o tempo todo, e era cansativo tê-la se metendo na sua vida. Assim, ele a incluía invariavelmente em suas arengas embebidas em pragas contra o mentiroso e o venal, o desgraçado e o corrupto, mencionando-a na repugnante companhia de trapaceiros e bebedores de cerveja, acompanhado de uma pitada de suas ex-mulheres.
O problema de miúdo eram os porcos-do-mato. Com fuças cartilaginosas, pescoços poderosos e incrível voracidade, os porcos-do-mato eram os inimigos naturais das cercas. Gostavam de meter a fuça por baixo delas e dilacerá-las até em cima com um prazer devasso, criando uma passagem confortável para os seus corpos rotundos sob o arco amassado do arame; se isso falhasse, simplesmente as arrebentavam. Miúdo vira três casos em que eles tinham mordido até o arame. Um desses animais, em particular, era um tormento pessoal. O Cerra-Dente, assim conhecido porque ninguém jamais o tinha ouvido emitir qualquer som, era uma lenda nas colinas do litoral, tanto pelo tamanho quanto pela audácia dos estragos que fazia. Os casos – sujeitos ao natural exagero humano – eram inúmeros, e, mesmo reduzindo-os pela metade, ele ainda tinha arrasado todas as hortas, do município de Humboldt aos limites de Marin, matado ovelhas em número suficiente para manter os frigoríficos do vale em operação por pelo menos cinco anos, virado tanta terra que fazia os tratores explodirem de inveja, coberto tantas porcas que se enfileirassem focinho com rabo elas se estenderiam ao longo da falha geológica de San Andreas e ao mesmo tempo iludido os melhores caçadores do Norte da Califórnia. Para Miúdo, ele era a a reencarnação do sofrimento. Não somente destruíra incontáveis extensões de sua excelente cerca como também tinha machucado Patrão de tal maneira que este acabara morrendo. Miúdo costumava ir caçar Cerra-Dente como parte de seu programa de manutenção das cercas, mas o animal era silencioso e furtivo – e ficara ainda mais furtivo depois que Miúdo fez um buraco na ponta de sua orelha esquerda com uma bala de sete gramas calibre 243 a 200 metros de distância. Cerra-Dente retaliou desmoronando as cercas toda vez que precisava passar para ir a seu lodaçal predileto, na parte de trás da colina. Os conflitos tinham sido contínuos por pelo menos dez anos, mas quando Patrão morreu estourou a guerra. Essa era uma das razões pelas quais Miúdo estava tão ansioso em voltar à cerca após a passagem da última tempestade havaiana: ele tinha desmontado a parte norte para reconstruí-la e, como isso ocorrera há quase meio mês, o Cerra-Dente deveria estar achando que estava entregando os pontos.
Jim Dodge, in Fup

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