sexta-feira, 15 de novembro de 2019

A ternura ressurge numa foto colorida à mão. E os galos não existem mais, porém continuam cantando

Vendo esse retrato me sinto só. Aposto que, se eu dissesse isso aos meus amigos aqui, morreriam de rir. E o que parece o chefe encontraria argumentos para me provar que solidão está fora de lugar. Não são tempos para ela. Diria: estamos todos sozinhos, ninguém reclama. Só o senhor.
Pode ser, mas não tenho nada a ver com os outros. A minha solidão pesa. Pense em outras coisas, veja a situação à sua volta, veja que não é possível ter mais sentimentos subjetivos. Imagino que me diria isso, parece um homem prático, concreto em suas propostas. Bem, pura cogitação.
Entendo por que ele deseja eliminar as lembranças. Alguma coisa ficou para trás, irrecuperável, e essa privação dói dentro dele. Para eliminar o sofrimento, elimina-se a memória. Uma cirurgia aparentemente simples, única solução. Só que eu não consigo, tudo é vivo dentro de mim. Agitado.
Adelaide está em alguma parte. Escondida no seu próprio medo. Cada dia que passava, ela se assustava mais. Uma vez chegou a me pedir que não fosse trabalhar, que não me separasse dela. Não sabia explicar por quê, assim que eu fechava a porta, de manhã, ela entrava em pânico.
Custava muito a se recompor. Fechava as portas e janelas, passava trancas. Não era apenas pelo calor. As pessoas em volta dela eram completamente estranhas, desconhecidas. “Vou ao supermercado e não vejo um só rosto familiar, onde estão os nossos vizinhos, amigos, parentes?”
Durante certo tempo comentamos a multidão que crescia, dia a dia, na cidade. Comentávamos tranquilamente, sem medo, sem atinar com o que estava se passando. Era uma constatação dos dias que corriam. Não me preocupava de onde tais pessoas vinham, ou porque estavam vindo. Ou quem eram.
As ruas iam se enchendo, cada vez mais intransitáveis. Vieram os primeiros grandes problemas de circulação. E, de repente, os meus rostos, aqueles que eu via diariamente, quase que às mesmas horas, em situações idênticas, passaram a desaparecer. Como se esvaíssem em plena neblina.
Névoa, penumbra, eram sensações que me tomavam quando encarava a multidão, compacta, fechada, mais fechada. Andávamos ombro a ombro, rosto a rosto, e ninguém se encarava. Olhavam para os lados ou para o chão. E, então, apareceram os mutilados, os carecas. Os deficientes, os de olhos pendurados.
Poucos, a princípio. Depois engrossaram fileiras. A polícia apanhava, levava. No entanto pareciam se multiplicar. Quando criança, li uma história, havia uns bichinhos, uns tais shmoos, que adoravam os homens. Morriam ao ser acariciados, mas se reproduziam de segundo em segundo.
Pois isso me lembrou os cegos, os carecas, os mutilados, os pele-brancas escamosos que tomaram a cidade. Os Civiltares fizeram o que puderam, até instalaram as barreiras eletrônicas que nos separam hoje dos Acampamentos Paupérrimos. Tais coisas eu não podia contar a Adelaide.
Ou aumentaria o seu pavor. Que era instintivo. Porque ela não via nada. Saía pouco. E o bairro ainda não tinha sido tomado. Tais climas se espalham, como fluidos, dominam a atmosfera. Tocam as pessoas, se instalam nelas, como a umidade, o frio, o calor. Dominam, simplesmente.
Agora sei. Nossas noites longas e silenciosas eram de aturdimento. Ficávamos na cama, de mãos dadas, contemplando o teto, ouvindo os barulhos da rua. Houve época em que eles se arrastavam gemendo, gritando, insultando, pedindo. Vinham os Civiltares e batiam, pediam, amarravam.
Não ousávamos nem mesmo olhar à janela. Não era piedade. Puro medo. Igual aos vizinhos do prédio da quadra. No dia seguinte, encontrávamos as manchas de sangue e pus pelo chão. Ou aquele farelo pardo, parecendo farinha seca e que, sabíamos, era a pela escamosa dos inválidos.
Tínhamos nojo, muita gente vomitava em plena rua. Adelaide confessava que não podia olhar para aquilo. Ninguém dizia nada. Nenhum mexerico, comentário. Somente o silêncio cúmplice, que nos enchia de culpa. Porque estávamos protegidos atrás de nossas portas e janelas. Nos imaginando seguros.
Não ter com quem dividir essa angústia me deixa mais sozinho. É uma atitude egoísta, eu sei. E não posso fazer nada, assim me sinto. Havia antigamente, e nem sei que tempo é esse antigamente, a possibilidade de divisão. Dor e alegria eram repartidas, porque se vivia em comunidade.
Estávamos juntos, podíamos contar uns com os outros, e isso tornava tudo mais fácil, suportável. Bastava abrir a porta, tocar campainhas, correr a um portão, tocar um telefone, as pessoas se juntavam, partilhavam. Adelaide percebeu a perda de tudo isso bem antes de mim.
O sentimento de solidão era menor, não estávamos encerrados atrás de quatro paredes, portas trancadas, corredores vazios. Os ruídos exteriores eram normais, não traziam medo. As pessoas podiam se olhar cara a cara, enfrentar-se sem receios, a língua seca, o coração disparado.
Passam pelas minhas mãos as estatísticas de mortos. Todos os dias, com um prazer necrófilo, examino as causas. Claro, as estatísticas são apenas daqueles que contam, os que moram dentro dos Círculos Oficiais Permitidos. Além das barreiras, é o desconhecido, propositalmente ignorado.
Morre-se do coração. Infartos, derrames, todo tipo de complicações cardiológicas aparece nas causas mortis. Ou seriam mentiras? Dissimulações. E por que gente com vinte anos, ou menos ainda, tem o coração estourado? Não dá para acreditar. E de que adianta não acreditar?
Certa tarde, nem tínhamos nos casado ainda, mas a casa já estava comprada. Adelaide e eu saímos. Para olhar vitrines. Era um sábado, as lojas estavam fechadas, ninguém na rua. Caminhávamos, eu no canto, Adelaide não gostava de ir pelo lado direito, andava sempre junto à guia.
Encontramos o lambe-lambe com a cara tão desanimada que decidimos tirar uma foto. Abraçados, nos beijando e um close de Adelaide. O homem, entusiasmado, ajeitou várias vezes o rosto dela, empurrando o queixo para cima, numa dessas poses de porta de circo ou vitrine de fotógrafo artístico.
A foto ficou pronta na hora. O lambe-lambe pediu mais vinte minutos para colorir. Ele conseguiu o tom castanho dos cabelos e dos olhos, mas fez a boca vermelha demais. Ficou sendo a nossa foto predileta, talvez porque naquela tarde estivéssemos muito bem um com o outro. Em ótimo astral.
Por muitos anos passamos naquele lugar e encontramos o lambe-lambe ali, sempre com o mesmo ar desanimado. Era o seu jeito, talvez uma forma de comover fregueses, ou então uma atitude perante a vida. Nunca mais tiramos outra fotografia. Aquela nos satisfazia, era exata. Como gostaríamos de ser, sempre.
Vejo essa foto agora e percebo como era firme a mão do lambe-lambe e agudo o seu poder de observação. O olhar doce e sereno de Adelaide nunca mais foi retratado desse modo. Era ela, delicada e cordial, porém não passiva. Ao menos não foi passiva nos primeiros anos.
Será que eu a transformei de tal modo? Ou foram as situações à nossa volta? Adelaide via o mundo de um modo diferente do meu, gostava de tranquilidade, de estabilidade, preocupava-se com a segurança. O mundo tinha valores sólidos que custavam a mudar. Podia-se aceitá-los, com a segurança de que durariam ao menos uma vida.
E, quando mudavam, existia toda uma preparação, as pessoas eram condicionadas, nada explodia subitamente, assustando. Valores simples, às vezes. Algo assim como as festas populares em que as pessoas costumavam usar alguma coisa feita de couro novo, ou de pano azul. Ou queimar palha benta para a chuva acabar.
Costumes simples, cerimônias, rituais, hábitos, coisas que permaneceram por séculos, passadas de avô a pai, a filho, a neto, a bisneto. Gestos familiares, espontâneos, falas, comidas. Permaneciam. Deixavam uma impressão de solidez, favoreciam a serenidade, eram certeza. Continuação.
Naquela mesma tarde compramos um porta-retratos muito simples, de madeira clara, sem pintura nem verniz. O espaço para a foto era maior, porém Adelaide colocou um passe-partout branco, agora amarelecido. Mas as tintas da fotografia continuam firmes em seu tom pastel. Tranquilo.
Falta a mão em meu ombro. Falta a ligeira reprimenda ao jantar, porque costumo tomar a sopa com ruído. Em vez da Patética e dos discos clássicos, tem o rádio de pilha com músicas sertanejas deste homem que invadiu a casa. Querem tirar tudo daqui, preciso salvar o retrato de Adelaide.
Fico impressionado comigo, quero o retrato, me revolto com a ideia de que vão tirá-lo. Adelaide continua desaparecida e me sento a remoer filosofias. Me irrito ante a perspectiva de perder a casa, os móveis, enquanto a perda maior, ela, me deixou insensível longo tempo.
Ou foi pouco tempo? Não tenho noção de espaço, horas, dias, semanas. Quanto se passou entre eu descobrir o furo e Adelaide me deixar? Não sei. Nem tem importância. Tadeu Pereira (preciso procurá-lo) tem razão. O que conta agora não são os dias e os meses, e sim as situações e os acontecimentos.
Por duas vezes pensei nesses homens que invadiram a casa. Com meu consentimento, reconheço. Não movo palha para expulsá-los, porque me fazem companhia. Aqui estamos, em comunidade. Precisamos uns dos outros e isso me reconforta. Acaso ou não, meu sobrinho me deixou gente inteligente.
Podemos conversar, eles me trazem o mundo de fora. Um Brasil que existiu além das barreiras. Reconstituir os fatos. Adianta? E como disse o homem que costuma se sentar à ponta da mesa: “Lembranças para quê?”. Que transformação elas podem operar no mundo diante de nós? Nenhuma.
O sol está nascendo, passei a noite neste sofá, não sei se cochilei, se fiquei ruminando. Apanho o retrato de Adelaide, enfio na gaveta da cômoda, entre camisas passadas, cuecas e meias. A cidade ainda em silêncio, não se ouve nada vindo do corredor. Teriam desistido?
Hoje à noite vem uma camionete. Você tem a tarde toda para arrumar as coisas – disse o homem que me parecia ser o chefe.
Assim, de repente? Pensei que tivesse uns dias.
É uma operação de guerra, meu amigo.
Guerra? Você exagera.
Pode ser. De qualquer modo, a camionete só pode vir hoje. Por favor, arrume tudo que tem de arrumar.
E como é que você sabe que a camionete vem?
Enquanto você dormia, saí. Passei a noite fora, em busca dos contatos. Agora fique vigiando, vou dormir. Tem café?
A cozinha estava uma bagunça, Adelaide morreria se estivesse aqui. Estou preocupado, pensando nessa mudança, nos móveis a selecionar. Gosto de tudo nesta casa, estou preso às mesas, cadeiras, piano, bibelôs, quadros, cômodas, armários, criados, mesas de centro, estantes, colunas para vasos.
Enfim, ligado a toda essa tranqueira que entulha cada cômodo. Os vasos vazios em cima das colunas. Adelaide jamais permitiu plantas de plástico, tinha horror delas, por mais perfeitas que fossem. Chegaram a fabricá-las com cheiros naturais, o que as torna espantosamente medonhas.
Somente os muito ricos conseguem plantas naturais. São vendidas em galerias de arte a preços insuportáveis. Uma planta vale mais do que as pinturas valiam anos atrás. Nos leilões, trocam-se Picassos por samambaias, Portinaris por avencas. Duke Lee por gerânios. Oiticica por antúrios.
Existem colecionadores, marchands. Estufas com ar-condicionado para o cultivo. Os donos dispõem de quantias extras de água. São privilegiados. Porque se descobrem alguém desperdiçando água, adeus. Pode contar com o Isolamento, é fatal. Evidente que a lei não se aplica a uns poucos.
Apesar de factício, o café cheira bem. Neste mundo não existe nada mais desenvolvido que a indústria de cheiros artificiais. Pena que não consigam eliminar essa atmosfera fedida que domina a cidade a maior parte do tempo. Todavia, o gosto do café é nada, só cheiro mesmo.
Tocam a campainha, o homem que costuma se sentar à ponta da mesa vai atender. Demora-se. Vozes abafadas. Volta com um papel na mão, sorriso irônico. Ele não precisa dizer, sei que foram os vizinhos outra vez. O que estarão tentando? O homem me estende o papel.
Uma intimação.
Para quê?
Para nos apresentarmos no Distrito.
Fazer?
Um depoimento. Diz que precisamos levar nossas Carteiras Profissionais, provar que estamos empregados.
E se não provarmos?
E eu sei? Só que não vamos lá. É só a gente sair, os vizinhos arrombam a porta e se instalam.
E a intimação?
Devem existir milhares. Todo mundo denunciando todo mundo. Eles expedem, mas não devem ter tempo de verificar. Temos de jogar com a sorte. O bom do caos é isso, a ausência de controle em todos os setores.
É, mas você se esquece de que os denunciantes devem estar em cima, fiscalizando.
Não adianta. Se você não é fiscal, não tem autorização para fiscalizar. Cada departamento age dentro de sua competência.
Mas você pode comprar os fiscais.
Isso pode. Aliás, só funciona assim. Eles compram e a gente recompra.
Então não vamos.
Pode rasgar isso.
Quanto papel jogado fora.
É uma indústria organizadinha. Gente que vive de reciclar papel para o governo. Gente que imprime para o Esquema. Eles subornam os oficiais, para que estes intimem. E gastam papel. É todo um ciclo, por isso ninguém liga, as intimações são pró-forma.
Tenho medo. Quando é coisa oficial, nunca se sabe.
Você está sempre com medo. Se solta, velho. Descontraia.
Não sei, as coisas corriam bem, normais. De repente, não tenho em que me segurar, fico assustado.
Pois é, entendo bem. E toda a sua classe. Quando as grandes calamidades passaram a acontecer, ninguém ficou nervoso, ninguém moveu uma palha. Agora, estão assustados. Aborrecido, dono da verdade, vomita regras, não suporto esse sujeito por isso. E não porque se apossou de minha casa. Para cada situação tem um conceito, formula uma hipótese, sabe a resposta, emite uma sentença. E bobo sou eu que fico em dúvida, aceito o que ele me diz, me questiono.
A que horas vem a tal camionete?
No meio da noite.
Por onde começar? Ando pela casa toda revirada, os móveis encostados, a lataria empilhada. Sacos plásticos, caixas, caixotes. Eu sabia tudo desta casa, onde estava o alfinete, a toalha, o sabão, o palito, as meias, os lençóis. Sabia, peça por peça, o que estava dentro do baú de vime.
O baú. Tinha me esquecido dele por completo. Quantos anos de nossas vidas estão naquele baú, escondidos, guardados. Tenho paixão por guardar. Isso me aproximava de Adelaide, nos dávamos bem. O baú deve estar no quartinho, soterrado nas pilhas de calendários. E os homens presos lá?
Vou até o quartinho. Tento ouvir pelo respiradouro da porta. Nenhum som. Mortos? Um estava bem ferido quando o jogaram aqui. Não há espaço, estes quartos de empregadas são do tamanho de celas solitárias nas prisões. Abafados, escuros. E ninguém trouxe comida para eles.
A chave está meio caída na fechadura. Devem ter tentado retirá-la, querendo fugir. Dou um tempo, não quero abrir a porta. Tenho medo de que estejam à espera disso. No que abro, passam sobre mim como um trator. Que nada, pobres-diabos molambentos, não se aguentavam em pé.
Devem estar dormindo, ainda é cedo. Ou desmaiados. Recoloco a chave, com muita cautela, sem fazer barulho. Giro suavemente, torcendo para que a fechadura não faça ruído. Somente um clique seco que faz gelar a espinha. Dou mais um tempo, a mão presa ao trinco, eu imobilizado.
Um tempo que me pareceu suficientemente longo, arrastado. Um galo cantou. Por um momento o canto me distrai. Caio em mim. Não pode ser, não existem quintais aqui perto. Há quantos anos não ouço um galo. Pode ter sido um disco, são tantos os que vendem com sons, vozes, cantos.
Algum saudosista que deve ligar o aparelho de som na madrugada. Artificial ou não, me deixo penetrar pelo embalo daquele galo afinado, harmonioso. Se eu soltar minha cabeça, as recordações disparam, memória afetiva descontrolada. Imagens desencontradas vão desabar na minha frente.
E não quero. Preciso deixar esse hábito, ele me emociona. Mais, me perturba, amoleço. Tem razão o homem que costuma se sentar à ponta da mesa. Preciso de toda a minha lucidez, já fui uma pessoa sóbria, seca, com total autodomínio. E olhe que eu tinha até uma razoável visão histórica.
Não falei? Penso, penso, as situações disparam. Me contenho. Meu objetivo agora é este quarto. Esse galo maldito podia bem parar de cantar, alguém desligar a vitrola. Movimento o trinco, agora a porta está aberta. Coragem, Souza. Vamos em frente. Como a cabeça da gente é maluca.
Abro esta porta como se fosse a coisa mais decisiva de minha vida. Nem quando enfrentei a banca de examinadores em minha tese. Ou quando me chamaram à diretoria para me comunicar a compulsória. Quando passei na Polícia Política para assinar minha ficha de rebelde. Quando o navio partiu.
Nem quando descobri que Adelaide tinha ido. Em nenhuma dessas situações senti o medo que tenho neste momento. Como se a minha vida dependesse desse gesto. Vida no sentido físico. Abrir a porta pode significar morrer. Ora essa, somente eu mesmo, com essa farta imaginação.
Pronto, está aberta. Nada aconteceu. Os homens, amontoados no chão. A parede cheia de sangue. Ué, tem mais um. Um velho de cabelos brancos, rosto emborcado no chão. Este velho não estava entre os que tentaram invadir. Viro o corpo, com certo nojo. O barbeiro está morto. Apunhalado.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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