quinta-feira, 28 de março de 2019

Tantos anos depois, Paris parece tão distante...

Que distração: em abril de 1989 publiquei meu primeiro romance, cujo esboço inicial foi feito em dezembro de 1980 e nos primeiros meses de 1981. O relato seria um conto, mas foi crescendo com o calor da viagem sinuosa e atropelada da escrita.
Às vezes, quando essa viagem é interrompida, você diz a si mesmo que é uma pausa provisória, mas há textos que ficam no meio do caminho e são abandonados ou esquecidos: assuntos que não dão certo, temas ou questões que não se desdobram e morrem nas primeiras páginas. Na verdade não é o tema que morre, e sim a forma, a arquitetura, o projeto que não vinga. Mas aquele conto expandiu-se, uma voz puxava outra, vozes tão intrometidas que nem sei de onde vinham. Quando me dei conta, já tinha escrito mais de cem páginas no quarto parisiense que eu havia alugado por uma bagatela, um quartinho pouco arejado cuja única vantagem era situar-se no Marais.
O mais belo bairro de Paris compensava o espaço exíguo do quarto de empregada, com uma janela inclinada que dava para o pátio interno do edifício. Mesmo no inverno, três crianças brincavam ao redor de uma fonte no centro do pátio. Isso me bastava e até me contentava. Mas tinha de suportar meus senhorios, um casal francês da província, talvez de Brest. O marido era discreto, lacônico, deixava a mulher falar e agir por ele.
Lembro que no terceiro mês a mulher decidiu que a prateleira mais baixa da geladeira seria a minha, as outras seriam dela e do marido; a divisão se estendia à porta, às gavetas e ao congelador, de modo que a garrafa de leite, a carne, os legumes e os ovos do casal proprietário ficavam separados. Um dia decidi desocupar a geladeira e tornar-me independente.
Talvez por se sentir culpada, a mulher de Brest bateu na porta do meu quarto numa noite de inverno e perguntou se eu queria tomar o resto da sopa de cenoura. Se a minha querida avó escutasse essa oferta tão generosa, não sei o que diria. Quer dizer, sei, mas é melhor não mencionar. Eu disse um “Non, merci, madame” com uma voz cavernosa, fechei a porta e continuei a escrever, pensando que nunca ia terminar aquele texto, pensando no poema “O lutador”, de Carlos Drummond de Andrade: lutar com as palavras é a luta mais vã.
O lutador” — uma das melhores definições do trabalho com a linguagem — evoca o esforço do narrador na batalha com as palavras e termina com a certeza de que “o inútil duelo jamais se resolve”.
Um poema deve ser perfeito, ou quase perfeito, mas um romance é, com frequência, uma obra imperfeita, um calhamaço com vários deslizes ou momentos de frouxidão. Nessa batalha de fôlego longo, cada página é uma batalha, uma tentativa de pôr de pé alguns personagens, de ir até o fundo de uma questão, de transferir aos personagens todo o ódio, paixão, frustração e ressentimento do narrador.
No fim, quando o livro é publicado, os personagens vivem nas páginas do romance e passam a existir na imaginação do leitor; mas o narrador está seco, exaurido na noite sem lua, sem sopa de cenoura, apenas com uma baguete adormecida e fatias murchas de presunto espalhadas sobre a escrivaninha.
De manhã uma mulher ou um casal te olha como se você fosse um demente ou um inútil. Demente, ainda não. Inútil, talvez: a utilidade e o afã missionário fazem mal à literatura, que não deve explicar nem convencer, apenas insinuar e interrogar.
Enquanto escrevia meu primeiro romance, eu e uma amiga traduzíamos ensaios sobre o crescimento da economia sul-americana, o milagre das ditaduras do Cone Sul. Essas traduções tediosas garantiam pão, queijo e vinho, e também livros de bolso, um bom filme e o aluguel do quarto, e assim podia recusar sopa morna de cenoura nas noites geladas de janeiro. Sem sopa, mas com Marcel Schwob, Baudelaire e Stendhal, anotando versos e frases que depois eu escrevia nas paredes do quarto.
Tantos anos depois, Paris parece tão distante, e agora surge sem nostalgia na minha memória. Nunca mais vi o casal de Brest. Eu e minha amiga perdemos o fio da conversa e os laços de amizade se afrouxaram. A distância é essa hidra terrível que nos afasta das pessoas, e só uma década depois — em 1991 ou 92 — eu tive notícias da minha amiga e do Marais, onde ela mora. O bairro, que era calmo — mas não bucólico —, tornou-se chique e presunçoso, sem os artesãos, chapeleiros e pequenos atacadistas de acessórios de couro, sem Les Halles, tão evocado na prosa francesa do século XIX.
Nada disso restou? Mas alguma coisa sempre sobrevive na memória.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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