sábado, 9 de fevereiro de 2019

Uma certa Lucina

(…) diz que é advogada. minha casa dá frente para a rua de areia, e a biblioteca e o jardim dão para o mar. durmo na biblioteca. vejo-a passar. é elegante. pequena. anotei ontem essas linhas sobre Lucina, mas não quero falar disso por enquanto. sei que sonhei comigo mesmo deitado sobre um esquife, não dentro do esquife, mas sobre a tampa. havia algo enrolado no meu pescoço. um pano negro. eu estava lá deitado. devia estar morto, mas por que sobre a tampa e não lá dentro? chamavam-me: Vittorio! Vittorio! levanta-te! e não é que eu me levantava? “conclamatio”. era esse o nome que davam àquele ritual, não era? o morto era o “conclamato”. durmo sempre na biblioteca porque é assim: minha casa tem a frente voltada para a rua de areia, o fundo é um vasto jardim e é também minha biblioteca e bar; dando para o mar. Oroxis limpa os livros a cada dia. por causa do bolor. põe os livros de cabeça para baixo porque não sabe ler. odeio criados. são presunçosos, ressentidos e sempre te odeiam. o idiota que era o suposto caseiro tinha cara de anjo, magrela, pálido, olhos clarinhos. vi-o chutar e cuspir no meu ganso. o ganso mesmo, esse que grasna. meu ganso preferido, e vi-o também chutar um dos meus cachorros. chamei-o de canalha, ao caseiro, lógico, e o pulha me chamou de velho maldito. quero que ele seque o bico. digo, quero que se lhe seque o bico. o ganso ficou com conjuntivite. o cachorro está manco. Matias diz que eu seria um prato para a Revolução. a Francesa. agora posso falar de Lucina. vejo-a, há dias, de lá pra cá. na praia. às vezes pára e passa algum creme no ombro direito, e tenho a impressão de que me espia. estou sempre com um copo numa das mãos e um livro na outra. deve pensar que sou o jardineiro. por que pensaria? todos os jardineiros que tive eram bêbados e letrados. devo ter um karma pesado com empregados. consta que Camille Desmoulins foi um Valois e enquanto Valois adorava arrancar a carne das tíbias dos prisioneiros e vê-los depois caminhando descarnados. Luciano dos Anjos, hoje jornalista, lacerou as tíbias caindo no banheiro. Luciano se sabe o Desmoulins e o Valois de antes. eu devo ter sido um rei para ser tão odiado por gentalha. e tão imitado por jardineiros. Matias me diz que como a casa estava sempre tão vazia, e em havendo tantos livros e bebidas, qualquer um fica bêbado e letrado. pode ser. voltando a Lucina: penso que ela pára, sim, para me espiar. é bela de perfil. sem barriga. lisinha. o chapéu de abas largas tem voado pros meus lados. pra bem perto da grade que cerca o jardim. Matias é que lhe soube o nome. está convalescendo. de quê? ele não sabe. de sífilis talvez, eu digo, com aquelas coxas deve ter tido vários ursos e deu a grota até sangrar. que mulo tu podes ser, Vittorio. achas? e sorvo de um gole meu martíni seco. esta manhã estou humilde nas bebidas. quero ser qualquer um, um gringo, qualquer um, tomando o seu martíni, olhando como quem não quer nada para uma certa Lucina. perguntei hoje ao Matias se tiram o ouro dos dentes quando se é cremado. diz que não sabe, que há muito tempo não tem ouro na boca. tem dentadura. e é chato? pergunto. pode cair na rachada se tu és lambe-fralda. meus dentes estão moles, pensei arrumá-los, mas o dentista diz que vou ficar com dentes de mula, enormes… então estou esperando que caiam. e depois pra que quero dentes na mortalha? pensei em escrever uma carta a Lucina, hoje, mas isso era mania de meu amigo Karl. mandava cartas enormes para mim, contando da irmã Cordélia. também, Cordélia era uma beleza. ah, essas mulheres se parecem a deusas! trepei uma vez com ela. pena que foi só uma. tive que usar uma faixa de tenista na cabeça. o pai era campeão de tênis,  e ela só gozava se o parceiro usasse aquela faixa. qualquer faixa, minha linda, eu disse, ponho faixa onde quiseres, posso até ficar inteiro enfaixado. só não enfaixo as prendas. a faixa era uma fita dourada. eu tinha trinta e oito anos e gostava de barco a vela. Eu também era uma beleza.
Hilda Hilst, in Estar. Ter sido

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