(…)
diz que é advogada. minha casa dá frente para a rua de areia, e a
biblioteca e o jardim dão para o mar. durmo na biblioteca. vejo-a
passar. é elegante. pequena. anotei ontem essas linhas sobre Lucina,
mas não quero falar disso por enquanto. sei que sonhei comigo mesmo
deitado sobre um esquife, não dentro do esquife, mas sobre a tampa.
havia algo enrolado no meu pescoço. um pano negro. eu estava lá
deitado. devia estar morto, mas por que sobre a tampa e não lá
dentro? chamavam-me: Vittorio! Vittorio! levanta-te! e não é que eu
me levantava? “conclamatio”. era esse o nome que davam àquele
ritual, não era? o morto era o “conclamato”. durmo sempre na
biblioteca porque é assim: minha casa tem a frente voltada para a
rua de areia, o fundo é um vasto jardim e é também minha
biblioteca e bar; dando para o mar. Oroxis limpa os livros a cada
dia. por causa do bolor. põe os livros de cabeça para baixo porque
não sabe ler. odeio criados. são presunçosos, ressentidos e sempre
te odeiam. o idiota que era o suposto caseiro tinha cara de anjo,
magrela, pálido, olhos clarinhos. vi-o chutar e cuspir no meu ganso.
o ganso mesmo, esse que grasna. meu ganso preferido, e vi-o também
chutar um dos meus cachorros. chamei-o de canalha, ao caseiro,
lógico, e o pulha me chamou de velho maldito. quero que ele seque o
bico. digo, quero que se lhe seque o bico. o ganso ficou com
conjuntivite. o cachorro está manco. Matias diz que eu seria um
prato para a Revolução. a Francesa. agora posso falar de Lucina.
vejo-a, há dias, de lá pra cá. na praia. às vezes pára e passa
algum creme no ombro direito, e tenho a impressão de que me espia.
estou sempre com um copo numa das mãos e um livro na outra. deve
pensar que sou o jardineiro. por que pensaria? todos os jardineiros
que tive eram bêbados e letrados. devo ter um karma pesado com
empregados. consta que Camille Desmoulins foi um Valois e enquanto
Valois adorava arrancar a carne das tíbias dos prisioneiros e vê-los
depois caminhando descarnados. Luciano dos Anjos, hoje jornalista,
lacerou as tíbias caindo no banheiro. Luciano se sabe o Desmoulins e
o Valois de antes. eu devo ter sido um rei para ser tão odiado por
gentalha. e tão imitado por jardineiros. Matias me diz que como a
casa estava sempre tão vazia, e em havendo tantos livros e bebidas,
qualquer um fica bêbado e letrado. pode ser. voltando a Lucina:
penso que ela pára, sim, para me espiar. é bela de perfil. sem
barriga. lisinha. o chapéu de abas largas tem voado pros meus lados.
pra bem perto da grade que cerca o jardim. Matias é que lhe soube o
nome. está convalescendo. de quê? ele não sabe. de sífilis
talvez, eu digo, com aquelas coxas deve ter tido vários ursos e deu
a grota até sangrar. que mulo tu podes ser, Vittorio. achas? e sorvo
de um gole meu martíni seco. esta manhã estou humilde nas bebidas.
quero ser qualquer um, um gringo, qualquer um, tomando o seu martíni,
olhando como quem não quer nada para uma certa Lucina. perguntei
hoje ao Matias se tiram o ouro dos dentes quando se é cremado. diz
que não sabe, que há muito tempo não tem ouro na boca. tem
dentadura. e é chato? pergunto. pode cair na rachada se tu és
lambe-fralda. meus dentes estão moles, pensei arrumá-los, mas o
dentista diz que vou ficar com dentes de mula, enormes… então
estou esperando que caiam. e depois pra que quero dentes na mortalha?
pensei em escrever uma carta a Lucina, hoje, mas isso era mania de
meu amigo Karl. mandava cartas enormes para mim, contando da irmã
Cordélia. também, Cordélia era uma beleza. ah, essas mulheres se
parecem a deusas! trepei uma vez com ela. pena que foi só uma. tive
que usar uma faixa de tenista na cabeça. o pai era campeão de
tênis, e ela só gozava se o parceiro usasse aquela faixa.
qualquer faixa, minha linda, eu disse, ponho faixa onde quiseres,
posso até ficar inteiro enfaixado. só não enfaixo as prendas. a
faixa era uma fita dourada. eu tinha trinta e oito anos e gostava de
barco a vela. Eu também era uma beleza.
Hilda
Hilst, in Estar. Ter sido
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