sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Um sonho com Goethe

Sonhei que estava sentado numa sala de espera já fora de moda. A princípio sabia apenas que tinha uma entrevista marcada com alguma pessoa importante. Logo percebi que era o Sr. von Goethe quem iria receber-me. Infelizmente eu não estava ali em caráter pessoal, mas como correspondente jornalístico, o que muito me desagradava e não podia compreender por que demônios me tinham metido naquela enrascada. Além disso, estava preocupado com um escorpião que aparecia de vez em quando e tentava subir-me pela perna. É certo que saberia defender-me contra o negro rastejante, mas não sabia agora onde se escondera e não me atrevia a procurá-lo. Ademais, não estava muito certo se, por engano, me haviam anunciado a Matthinson, em vez de Goethe, a quem confundi de novo em sonhos com Bürger, pois lhe atribuía os poemas de Molly. Por outra parte, eu teria apreciado muito um encontro com Molly, pois a imaginava maravilhosa, delicada, musical. Se pelo menos não estivesse ali a mando daquele maldito jornal! Meu mau humor foi aumentando, aumentando, e pouco a pouco se concentrava sobre Goethe, a quem já intentava fazer várias reprovações. A entrevista talvez não se encaminhasse a bom termo. O escorpião, apesar perigoso e escondido bem próximo de mim, talvez não fosse tão mau assim; pareceu-me que podia significar também algo amistoso pareceu-me provável que tivesse algo a ver com Molly ser uma espécie de enviado seu, ou uma fera heráldina, belo e perigoso animal da feminilidade e do pecado. Não poderia chamar-se por acaso Vúlpius? Mas neste momento um criado abriu a porta, levantei-me e entrei. Lá estava o velho Goethe, baixo e muito ereto, trazendo no jeito clássico a enorme condecoração de alguma Ordem. Dava a impressão de que ainda governava, de que estava concedendo audiências, de que ainda controlava o mundo sentado em seu museu de Weimar. Pois mal olhou para mim, com um movimento de cabeça que lembrava um velho corvo, começou a falar pomposamente:
Com que então, vós, os jovens, não tendes grande apreço por nós e pelos nossos esforços?
Exatamente — disse eu, gelado pelo seu frio olhar ministerial. — Nós, os jovens, não estamos muito de acordo com Vossa Excelência. Sois demasiado solene para nós, demasiado vaidoso, demasiado auto-suficiente e pouco sincero Sem dúvida, este é o ponto capital: pouco sincero.
O homenzinho lançou a severa testa para a frente e enquanto sua boca dura e enrugada se distendia num leve sorriso e se tornava encantadoramente viva, o coração bateu-me com força, pois recordei a poesia “Desceu a tarde...” e que fora daquela boca e daquele homem que haviam brotado as palavras daquela poesia. Fiquei tão desarmado e vencido naquele instante que, sem dúvida, teria preferido ajoelhar-me diante dele. Mas me mantive de pé e ouvi-o dizer com um sorriso:
Então o senhor me acusa de insinceridade? Isso é coisa que se diga! Tenha a bondade de fazer-se mais explícito!
Eu estava contente em poder fazê-lo.
Como todos os grandes espíritos, Exmo. Sr. Goethe, o senhor claramente reconheceu e sentiu a dúvida e a desesperança da vida humana, com seus momentos de transcendência que vão afundar-se de novo na miséria, a impossibilidade de atingir-se a altura ideal dos sentimentos senão à custa de muitos anos de escravidão à labuta cotidiana; o ardente as pirar pelo reino do espírito em eterna luta mortal com o amor à perdida inocência da natureza, igualmente ardente e sagrado; todo este temeroso oscilar no vazio e na incerteza essa condenação ao transitório, incompleto, ao eternamente empírico e diletante; em suma, toda a falta de escopo a que o ser humano está condenado... para seu desespero devorador O senhor reconheceu tudo isso e houve tempo em que também o confessou, e no entanto consagrou toda sua vida a pregar o contrário, manifestando fé e otimismo e espalhando diante de si e dos demais a ilusão de que nosso esforço espiritual tinha algum significado e continuidade. O senhor fez ouvidos surdos àqueles que sondavam as profundezas e reprimiu as vozes dos que diziam a desesperada verdade, o que se aplica a Kleist e a Beethoven. Ano após ano, o senhor viveu em Weimar a acumular conhecimentos e a colecionar objetos de arte, a escrever cartas e a coletá-las, como se tivesse em sua idade provecta encontrado o verdadeiro caminho para eternizar o instante, embora só pudesse mumificá-lo, e a tentar espiritualizar a natureza, embora só conseguisse ocultá-la sob uma bela máscara. Esta é a insinceridade que nós lhe reprovamos.
O velho conselheiro olhou-me, pensativo, nos olhos, enquanto sua boca continuava a sorrir.
Logo perguntou, enchendo-me de admiração:
O senhor deve ter uma profunda objeção contra a Flauta Mágica de Mozart, não? E antes que eu pudesse responder, continuou:
A Flauta Mágica apresenta-nos a vida como se fora um canto prodigioso, celebra nossos sentimentos, ainda que transitórios como são, como algo divino e eterno, não estando pois de acordo nem com o Sr. Kleist nem com o Sr. Beethoven, já que predica a fé e o otimismo. — Já sei, já sei — gritei furioso. — Deus sabe que a Flauta Mágica que o senhor menciona é o que mais venero neste mundo! Mas Mozart não chegou aos oitenta e dois anos de idade, nem teve essas pretensões de continuidade, de ordem de rígida dignidade que o senhor teve. Não se deu tanta importância! Compôs suas divinas melodias e morreu; morreu cedo, pobre e desconhecido... O hálito me faltava. Quisera dizer mil coisas em dez palavras. Minha testa começou a suar. Goethe, no entanto, disse, muito amável:
Pode parecer imperdoável que eu tenha chegado aos oitenta e dois anos. Minha satisfação relativamente a esse fato é, entretanto, muito menor do que o senhor imagina. Tem razão quando afirma que sempre tive um grande anseio de perdurar; sempre vivi em luta contra a morte, temendo-a sempre. Creio que a luta contra a morte, a obstinação absoluta de querer continuar vivo, seja a força motivadora que jaz sobre as vidas e atividades de todos os homens representativos. Com meus oitenta e dois anos, meu jovem amigo, consegui provar apenas que o homem tem de morrer afinal, da mesma forma como teria morrido quando era um escolar. Se acaso servir de justificativa, queria dizer também que havia muito de infantilidade em minha natureza de curioso e muito desejo de matar o tempo em brincadeiras. E custei muito a dar-me conta de que o jogo haveria de acabar, afinal.
Ao dizer isso, sorria com muita sutileza, quase pilheriando. Sua figura tornara-se maior, desaparecera a rígida postura e a forçada dignidade de sua face. O ambiente que nos rodeava estava agora cheio de sonoras melodias, e harmoniosos lieder de Goethe; ouvi distintamente a Veilchen (Violetas), de Mozart e a Füllest wieder Busch und Tal (De Novo Enches o Bosque e o Vale), de Schubert. O rosto de Goethe estava agora cotado e jovem e sorria; parecia-se agora com Mozart, logo com Schubert, ou como se fora um seu irmão, e a roseta que havia em seu peito estava composta inteiramente de flores silvestres, com uma primavera amarela abrindo-se alegre e louçã no meio delas.
Não me agradou de todo que o ancião estivesse fugindo as minhas perguntas e reprovações daquela maneira tão irônica, e olhei para ele com olhar de censura. A isso, inclinou-se e aproximando de mim a boca que se havia tornado inteiramente infantil, sussurrou ao meu ouvido:
Meu amigo, levas o velho Goethe muito a sério. Não se devem tomar as pessoas idosas que já estão mortas demasiadamente a sério, pois seria cometer uma injustiça contra elas. Nós, os imortais, não gostamos de coisas que devem ser levadas a sério, preferimos gracejar. A seriedade, meu jovem é uma consequência do tempo; consiste, permito-me confiar-lhe, numa superestimação do tempo. Eu também, em minha época, dei valor demais ao tempo, por isso queria viver cem anos. Mas, na eternidade, como vês, não há tempo; a eternidade não é mais que um momento, cuja duração não vai além de um gracejo.
E, em verdade, já não se podia continuar falando a sério com o homem: dava pulos de contentamento, ágil e flexível, e logo deixou a primavera saltar de sua condecoração como se fosse um foguete para, em seguida, fazê-la encolher-se e desaparecer. Enquanto se exibia de um lado para outro com seus passos de dança e suas visagens, tive de admitir pelo menos que aquele homem não se havia esquecido de aprender a dançar. Fazia-o maravilhosamente. Então lembrei-me do escorpião, ou antes de Molly, e perguntei a Goethe:
Diga-me: Molly está aí?
Goethe riu sonoramente. Caminhou para a escrivaninha e abriu uma gaveta; tirou de dentro uma caixa de couro ou de veludo, abriu-a e colocou-a diante dos meus olhos. Dentro havia uma diminuta perna de mulher, perfeita e brilhante, repousando sobre o escuro fundo da caixa, uma perna encantadora, um pouco inclinada no joelho, estirando o pé para baixo e com os delicados dedos em ponta. Estendi a mão e quis apanhar a pequenina perna, que tanto me havia encantado, mas quando quis tomá-la entre os dedos me pareceu que o brinquedinho se movia com imperceptível movimento, e de súbito assaltou-me a suspeita de que podia ser o escorpião. Goethe pareceu compreendê-lo; parecia mesmo que o tivesse feito de propósito, com o fito de provocar aquela febril dissensão entre o desejo e o temor. Estendeu o provocante escorpião muito próximo do meu rosto, me viu desejá-lo, me viu retroceder horrorizado, e isto parecia causar-lhe grande prazer. Enquanto me provocava com o objeto encantador e perigoso, voltara a tornar-se novamente velho, convertera-se num ancião de mil anos, com os cabelos brancos como a neve; e o rosto enrugado de ancião sorria sereno e silencioso, um riso que lhe comovia as entranhas com o insondável humorismo dos velhos.
Quando despertei, havia esquecido o sonho, do qual só me recordei mais tarde. Dormira mais de uma hora, em meio à música e à algazarra, na mesa de um salão, como jamais julgara possível.
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

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