segunda-feira, 26 de novembro de 2018

O novelo ensarilhado

Um dos meus momentos mais antigos é o seguinte: estou sentado, de braços estendidos, frente à minha mãe que vai enrolando um novelo de lã a partir de uma meada suspensa nos meus pulsos. Eu era menino, mas aquela tarefa era mais que uma incumbência: eu estava dando corpo a um ritual antiquíssimo, como se houvesse antes de mim uma outra criança em cujos braços se enrolava o mesmo infinito fio de lã. Esta persistente lembrança, que eu saboreio como uma sombra eterna, é quase uma metáfora do trabalho da memória: um fio tênue, juntando-se a outros fios que se enroscam num redondo ventre.
Revisito este momento como uma primeira pedra deste texto. Este é um encontro sobre memórias e eu começo com uma lembrança que me inaugura a mim, enquanto produtor de memórias e outras falsidades. Regressarei, mais tarde, ao novelo de lã e ao infinito sossego da minha casa de infância.
Fomos aqui chamados para falar de história e de memórias, de paz e de guerras. Como se, enquanto escritores, tivéssemos uma competência particular nestes domínios.
Num romance que estou escrevendo há uma personagem a quem perguntam: “E onde irás ser sepultado?”. E ela responde: “A minha sepultura maior não mora no futuro. A minha cova é o meu passado”.
De fato, cada um de nós corre o risco de ficar sepultado no seu próprio passado. Todos temos de resistir para não ficarmos aprisionados numa memória simplificada que é o retrato que outros fizeram de nós. Todos trazemos escrito um livro e esse texto quer-se impor como nossa nascente e como nosso destino. Se existe uma guerra em cada um de nós é a de nos opormos a esse fado de estarmos condenados a uma única e previsível narrativa.
Falar de guerras é um assunto nada pacífico. Falar de memórias é um assunto cheio de esquecimento. É estranho olhar-se o escritor que cuida do passado como um guardião do cais, alguém que fiscaliza as amarras dos barcos. De fato, o escritor é alguém que solta o barco e convida para a errância da viagem. Sempre que invoca o passado, o escritor está construindo uma mentira, está inventando um tempo que está fora do Tempo. Este estatuto de mentirosos que mentem para serem acreditados deve ser ressalvado num debate como este. Caros amigos e colegas, verdadeiros colegas do ofício da mentira:

No primeiro dia deste congresso, o José Luis Cabaço perguntou por que é que os nossos escritores não usam a luta armada de libertação nacional como sua fonte de inspiração.
Felizmente ele levantou essa questão numa mesa anterior, em que o tema era outro e a resposta ficou adiada. Se tivesse de responder, nessa altura, eu diria: porque é muito próximo no tempo e porque é muito próximo do sonho. Responderia que essa luta foi sentida como uma ficção, foi vivida como uma narrativa épica. Estamos perante um desses casos em que a personagem engole o narrador, o herói devora o autor.
Mas a pergunta foi feita há dois dias e, em casa, eu pensei que poderiam existir outros motivos. E creio que, na realidade, existem. Um destes motivos é que, sendo próxima no tempo, a luta armada de libertação se afastou da sua anterior proximidade afetiva. A narrativa deste processo histórico foi sendo apropriada por um discurso de exaltação e ganhou demasiada solenidade. A epopeia perdeu sedução e passou a ser figurada apenas por heróis que têm nomes nas ruas e praças, mas que não têm rosto nem voz. Herdamos uma história heroica de heróis sem história. Personagens sobre-humanas destronaram as pessoas comuns, essa gente humilde que teve medo, que hesitou, que namorou, que se tornou semelhante a todos nós.
Na verdade, a pergunta do meu amigo Cabaço pode estender-se a várias outras guerras e outros episódios épicos do nosso país. Onde estão as histórias dessa História com H maiúsculo? Não existem. Ou talvez existam em confins secretos, mas é preciso atravessar desertos para as descobrir.
De fato, nós não esquecemos apenas a luta de libertação nacional. Nós esquecemos a recentíssima guerra de desestabilização, cujo drama ainda ecoa no nosso quotidiano. Nós esquecemos as guerras de resistência colonial, esquecemos as guerras contra ocupações regionais (como a desencadeada contra os invasores ngunis), esquecemos as guerras dos prazeiros contra as autoridades coloniais. E esquecemos com comprovada eficácia a guerra secular contra a escravatura. Este desmemorial é longo e comprova que somos peritos na arte do esquecimento.
Por que tanta competência no olvido, por que este sistemático apagar de pegadas do tempo? A resposta mais simples está na ausência da escrita. Em termos de registo temporal, nós estamos no território de ninguém: os testemunhos da oralidade ou ainda não se fizeram ou já se perderam. Esta é, certamente, a grande justificação. Mas a ausência da escrita não pode explicar tudo. Não pode explicar, por exemplo, a espantosa amnésia colectiva que apagou os sinais exteriores e interiores da recente guerra civil.
Eu creio que é preciso procurar outras respostas. Não é apenas a hegemonia da oralidade que nos impede de fixar os acontecimentos que nos fizeram desacontecer e voltar a acontecer. É preciso uma outra hipótese que explique esta estranha necessidade de excluirmos o passado da nossa mitologia caseira. À boa maneira africana, nós não sabemos fazer do passado um nosso antepassado.
Acredito que essa hipótese alternativa possa ser resumida da seguinte maneira: esquecemos as nossas guerras porque, em todos esses conflitos, não estivemos todos do mesmo lado. Esquecemos esses conflitos porque em todos eles nos distribuímos entre vencidos e vencedores. Esquecemos porque não éramos ainda esta entidade que somos hoje (moçambicanos, habitantes da mesma casa existencial que é a nação moçambicana). Esses outros que já fomos têm dificuldade em transitar para a categoria daqueles que “somos” no presente. Fomos “eles” e mantemo-nos na terceira pessoa para continuarmos a ser “nós”, esta entidade colectiva que nasceu de guerras que se esquecem de si mesmas. Não sabemos sepultar dentro de nós aquilo que de nós foi falecendo. Não temos na nossa alma lugar para esses cemitérios vivos que são as memórias socialmente credenciadas.
Comecemos pela luta de libertação nacional. Quando a Frelimo desencadeou a insurreição geral armada foi difundido um apelo de mobilização que dizia, a certo passo: Operários e camponeses, trabalhadores, intelectuais, funcionários, estudantes, soldados moçambicanos no exército português, homens, mulheres…
Esta menção particular aos soldados moçambicanos nas fileiras portuguesas merece explicação. No exército colonial português chegou a haver 60 mil soldados. Destes, mais de metade eram moçambicanos. Estou certo de que, na totalidade dos dez anos que durou a luta de libertação, havia mais moçambicanos lutando nas fileiras do exército colonial do que nas fileiras nacionalistas. Durante este mesmo período, dezenas de milhares de moçambicanos integraram não apenas o exército regular colonial, como deram corpo a forças paramilitares como os Flechas, os Grupos Especiais, a OPVDC e os Grupos Especiais de Pára-quedistas. Para não falar dos que integraram a Pide. Numa palavra, e sem mais contas: estivemos dos dois lados da guerra, fomos vítimas e culpados, anjos e demônios.
Mas essa distribuição pelo paraíso e pelo inferno não ocorreu apenas na luta de libertação nacional. Aconteceu nas lutas de resistência em que frequentes vezes, naquilo que viria a ser o território moçambicano, nações inteiras se aliavam aos portugueses para resistir contra ameaças internas e externas. Entre os séculos XVII e XIX as tropas coloniais sempre foram compostas por uma maioria de soldados negros. O herói da resistência anticolonial Gungunhana (tão bem retratado em Ualalapi) foi, ao mesmo tempo, coronel do exército português. No seu quartel-general esteve hasteada a bandeira lusitana. Muitos dos outros candidatos a heróis da resistência (como Farelay de Angoche) não podem ser cantados sob risco de despertarem fantasmas dos que foram escravizados por essas mesmas personagens.
A mesma dificuldade isentou de registo narrativo o longo e dramático período da escravatura. Por que não temos memória dessa tragédia? A resposta pode ser: é que nós fomos, ao mesmo tempo, escravos e esclavagistas.
Em suma, em toda a nossa história vencidos e vencedores se imiscuíram e agora nenhum deles quer desenterrar tempos carregados de culpa e de ressentimento. Há nesta reserva uma economia de paz, uma mediação de silêncios, cuja inteligência não pode ser minimizada.
O passado é sagrado porque é moradia dos mortos. Para se ter acesso a esse respeitoso átrio é necessário um mito fundador partilhado em consenso. Falta-nos esse password comum que nos devolva o tempo e, ao mesmo tempo, nos liberte do remorso e da necessidade de perdoarmos e sermos perdoados. A nossa comissão da verdade trabalha por ausência e na pressa de começar um novo texto usa apenas a tecla do delete.
Poder-se-ia pensar que o nascimento da nação (este que ainda vivemos) fosse o momento mais apropriado para recolher e reinventar o nosso comum patrimônio de lembranças. Mas acontece exatamente o contrário. Este é o período mais frágil, onde sabemos possível a emboscada do julgamento passadista. Em todos os países do mundo sucedeu o mesmo: o início da narrativa da nação nasceu daquilo que alguns chamaram de “sintaxe do esquecimento”. Os processos de aglutinação homogênea sugerem que diferentes comunidades se esqueçam de si mesmas, e os diversos grupos abdiquem das suas singularidades. Somos uma mesma nação porque esquecemos as mesmas coisas da mesma maneira.
É preciso vazar de lembranças o território simbólico da nação para o poder povoar de novo, preenchendo o imaginário de formas novas, num espelho que mostra não tanto o que somos, mas o que poderemos ser. Na pressa de termos futuro, atiramos fora os degraus do caminho percorrido. Todos experimentamos isso recentemente. Com o processo da Independência esquecemos que tínhamos raça, tribo, individualidade. Mesmo que fosse uma falsa amnésia, o facto é que ela foi vivida com a intensidade de uma verdade.
Regresso ao primeiro episódio da minha fala, essa lembrança do modo como eu enovelava fios de lã nas mãos da minha mãe. Para agora, já em final de fala, confessar o seguinte: esse momento tão cheio de sossego tem uma outra versão. Se perguntarem à minha mãe ela dirá que aquilo era um inferno. É assim que ela me responde ainda hoje: “Tu não paravas quieto, queixavas-te que aquilo não era tarefa para um rapaz e eu tinha que te dar umas sapatadas para não ensarilharmos o novelo”.
Esta é a lição: aprendi que se eu quero celebrar a casa, essa que depois de tantas casas é a minha única casa, eu não posso sentar todas as lembranças junto de minha velha mãe. Um de nós tem de esquecer. E acabamos esquecendo os dois, para que a antiga casa possa renascer na penumbra do tempo. Para não ensarilharmos o novelo da memória.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

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