domingo, 30 de setembro de 2018

Um bolo que cresce

Então vieram a Revolução Científica e a ideia de progresso. A ideia de progresso se baseia na noção de que, se admitirmos nossa ignorância e investirmos recursos em pesquisa, as coisas podem melhorar. A ideia logo foi traduzida em termos econômicos. Quem acredita no progresso acredita que descobertas geográficas, invenções tecnológicas e avanços organizacionais podem aumentar a soma total da produção, do comércio e da riqueza humana. Novas rotas de comércio no Atlântico puderam florescer sem arruinar as velhas rotas no oceano Índico. Novos produtos puderam ser produzidos sem reduzir a produção dos velhos. Por exemplo, alguém podia abrir uma nova padaria especializada em bolos de chocolate e croissants sem fazer com que as padarias especializadas em pães fossem à falência. Todo mundo simplesmente desenvolveria novos gostos e comeria mais. Eu posso ser rico sem que você fique pobre; posso ser obeso sem que você morra de fome. O bolo do mundo inteiro pode crescer.
Nos últimos 500 anos, a ideia de progresso convenceu as pessoas a confiarem cada vez mais no futuro. Essa confiança gerou crédito; o crédito trouxe crescimento econômico real; e o crescimento fortaleceu a confiança no futuro e abriu caminho para ainda mais crédito. Não aconteceu da noite para o dia: a economia se comportou mais como uma montanha-russa do que como um balão. Mas, no longo prazo, com os obstáculos nivelados, a direção geral era inequívoca. Hoje, há tanto crédito no mundo que governos, corporações e indivíduos facilmente obtêm empréstimos grandes, de longo prazo e a juros baixos que excedem muitíssimo a receita atual.
A crença no crescimento do bolo global acabou por se tornar revolucionária. Em 1776, o economista escocês Adam Smith publicou A riqueza das nações, provavelmente o manifesto econômico mais importante de todos os tempos. No oitavo capítulo de seu primeiro volume, Smith apresentou o seguinte argumento original: quando um proprietário de terras, um tecelão ou um sapateiro tem mais lucro do que precisa para manter a própria família, ele usa o excedente para empregar mais assistentes, a fim de aumentar seu lucro. Quanto mais lucro tiver, mais assistentes pode empregar. Daí decorre que um aumento no lucro dos empreendedores privados é a base para o aumento na riqueza e prosperidade coletivas.
Isso talvez não soe tão original, porque todos vivemos em um mundo capitalista no qual o argumento de Smith é tido como algo natural. Ouvimos variações sobre esse tema todos os dias nos noticiários. Mas a afirmação de Smith de que o desejo humano egoísta de aumentar o lucro privado é a base para a riqueza coletiva é uma das ideias mais revolucionárias na história humana – revolucionária não só de uma perspectiva econômica como também de uma perspectiva moral e política. O que Smith afirma é, na verdade, que a ganância é algo bom e que ao ficar mais rico eu beneficio a todos, e não só a mim mesmo. Egoísmo é altruísmo.
Smith ensinou as pessoas a pensarem na economia como uma situação em que todos ganham, em que meus lucros são também seus lucros. Não só ambos podemos desfrutar de uma fatia maior de bolo ao mesmo tempo, como o aumento da sua fatia depende do aumento da minha fatia. Se sou pobre, você também será pobre, porque eu não posso comprar seus produtos ou serviços. Se sou rico, você também enriquecerá, já que agora pode me vender alguma coisa. Smith negou a contradição tradicional entre riqueza e moralidade e escancarou os Portões do Céu para os ricos. Ser rico significava ser moral. Na história de Smith, as pessoas ficam ricas não saqueando os vizinhos, e sim aumentando o tamanho do bolo. E quando o bolo cresce, todos se beneficiam. Os ricos são, portanto, as pessoas mais úteis e benévolas da sociedade, porque impulsionam o crescimento em benefício de todos.
Tudo isso depende, entretanto, de os ricos usarem seus lucros para abrirem novas fábricas e contratarem novos empregados, em vez de desperdiçá-los em atividades não produtivas. Smith, portanto, repetiu como um mantra a máxima de que “quando os lucros aumentam, o proprietário de terras ou o tecelão empregam mais assistentes”, e não “quando os lucros aumentam, Scrooge guarda seu dinheiro em um cofre e só o tira de lá para contar as moedas”. Uma parte crucial da economia capitalista moderna foi o surgimento de uma nova ética, segundo a qual os lucros tinham de ser reinvestidos na produção. Isto mais uma vez é investido na produção, o que gera mais lucro, et cetera ad infinitum. Os investimentos podem ser feitos de muitas maneiras: aumentando a fábrica, realizando pesquisas científicas, desenvolvendo novos produtos. Mas, de alguma forma, todos esses investimentos devem aumentar a produção e se traduzir em lucros maiores. No novo credo capitalista, o primeiro e mais sagrado mandamento é: “Os lucros da produção devem ser reinvestidos no aumento da produção”.
É por isso que o capitalismo é chamado de “capitalismo”. O capitalismo distingue o “capital” da mera “riqueza”. O capital consiste de dinheiro, bens e recursos que são investidos na produção. A riqueza, por outro lado, é enterrada debaixo do solo ou desperdiçada em atividades improdutivas. Um faraó que destina recursos a uma pirâmide improdutiva não é um capitalista. Um pirata que rouba uma frota de tesouro espanhola e enterra um cofre cheio de moedas brilhantes na praia de alguma ilha caribenha não é um capitalista. Mas um operário diligente que reinveste parte de sua renda na bolsa de valores, sim.
A ideia de que “os lucros da produção devem ser reinvestidos no aumento da produção” parece trivial. Mas foi uma ideia estranha à maioria dos povos ao longo da história. Em épocas pré-modernas, as pessoas acreditavam que o nível da produção fosse mais ou menos constante. Então, por que reinvestir seus lucros se a produção não crescerá muito, não importa o que você faça? Desse modo, os nobres da Europa medieval adotaram uma ética de generosidade e consumo ostensivo. Eles gastavam suas receitas em torneios, banquetes, palácios e guerras, e em caridade e catedrais monumentais. Poucos tentavam reinvestir os lucros para aumentar a produção de suas terras, desenvolver espécies melhores de trigo ou procurar novos mercados.
Na era moderna, a nobreza foi substituída por uma nova elite cujos membros acreditam verdadeiramente no credo capitalista. A nova elite capitalista é composta não de duques e marqueses, mas de presidentes de conselhos, corretores de ações e industrialistas. Esses magnatas são muito mais ricos que os membros da nobreza medieval, mas estão muito menos interessados em consumo extravagante e gastam uma parte muito menor de seus lucros em atividades não produtivas.
Os nobres medievais usavam mantos coloridos de ouro e prata e dedicavam grande parte de seu tempo a banquetes, carnavais e torneios glamorosos. Em comparação, os altos executivos modernos usam uniformes sombrios chamados ternos que lhes conferem todo o penacho de um bando de corvos e têm pouco tempo para festividades. O capitalista típico corre de uma reunião de negócios para outra, tentando decidir onde investir seu capital e seguindo as altas e baixas dos títulos e ações que possui. É verdade, seu terno talvez seja um Versace, e ele talvez viaje em um jato particular, mas essas despesas não são nada se comparadas com o que ele investe no aumento da produção humana.
Não só os magnatas usando Versace investem para aumentar a produtividade. Pessoas comuns e órgãos do governo pensam de maneira similar. Quantos jantares em bairros modestos mais cedo ou mais tarde se envolvem em um debate interminável sobre se é melhor investir as economias pessoais no mercado de ações, em títulos ou em propriedades? Os governos também se esforçam para investir a receita proveniente dos impostos em atividades produtivas que aumentarão a receita futura – por exemplo, construir um novo porto poderia facilitar a exportação de produtos, permitindo às fábricas gerar mais renda tributável, aumentando assim as receitas futuras do governo. Outro governo talvez prefira investir em educação, sob a justificativa de que pessoas instruídas são essenciais para indústrias lucrativas de alta tecnologia, que pagam muitos impostos sem demandar grande infraestrutura portuária.
O capitalismo começou como uma teoria sobre como a economia funciona. Era ao mesmo tempo descritivo e prescritivo – oferecia um relato de como o dinheiro funcionava e promovia a ideia de que reinvestir os lucros na produção leva a um rápido crescimento econômico. Mas, pouco a pouco, o capitalismo se tornou muito mais do que uma doutrina econômica. Hoje engloba uma ética – um conjunto de ensinamentos sobre como as pessoas devem se comportar, educar seus filhos e até mesmo pensar. Sua doutrina fundamental é que o crescimento econômico é o bem supremo, ou pelo menos uma via para o bem supremo, porque a justiça, a liberdade e até mesmo a felicidade dependem do crescimento econômico. Pergunte a um capitalista como trazer justiça e liberdade política para um lugar como o Zimbábue ou o Afeganistão, e você provavelmente ouvirá uma palestra sobre como a afluência econômica e uma classe média próspera são essenciais para instituições democráticas estáveis e sobre a consequente necessidade de inculcar nos aldeãos do Afeganistão os valores da livre-iniciativa, da prosperidade e da autossuficiência.
Essa nova religião também teve uma influência decisiva no desenvolvimento da ciência moderna. As pesquisas científicas geralmente são financiadas pelo governo ou por negócios privados. Quando os governos e os negócios capitalistas consideram investir em determinado projeto científico, a primeira questão costuma ser: “Esse projeto nos ajudará a aumentar a produção e os lucros? Produzirá crescimento econômico?”. Um projeto que não for capaz de lidar com essas questões tem poucas chances de encontrar um patrocinador. Nenhuma história da ciência moderna pode deixar o capitalismo de lado.
Da mesma forma, a história do capitalismo não pode ser compreendida se não levar em conta a ciência. A crença capitalista no crescimento econômico perpétuo desafia quase tudo que conhecemos sobre o universo. Uma sociedade de lobos seria extremamente tola em acreditar que a oferta de ovelhas continuaria crescendo por tempo indefinido. A economia humana, entretanto, conseguiu continuar crescendo exponencialmente durante toda a era moderna, graças apenas ao fato de que os cientistas produzem uma nova descoberta ou aparato a cada poucos anos – como o continente americano, o motor de combustão interna ou ovelhas geneticamente modificadas. Bancos e governos imprimem dinheiro, mas, em última análise, são os cientistas que pagam a conta.
Nos últimos anos, bancos e governos imprimiram dinheiro freneticamente. Todos estão morrendo de medo de que a atual crise econômica possa cessar o crescimento econômico. Então estão criando trilhões de dólares, euros e ienes do nada, injetando crédito barato no sistema, e esperando que os cientistas, técnicos e engenheiros consigam pensar em algo realmente grandioso, antes que a bolha exploda. Tudo depende das pessoas que trabalham nos laboratórios. Novas descobertas em áreas como a biotecnologia e a nanotecnologia poderiam criar indústrias inteiramente novas, cujos lucros poderiam salvaguardar os trilhões de dinheiro de faz de conta que os bancos e os governos criaram desde 2008. Se os laboratórios de pesquisa não cumprirem tais expectativas antes que a bolha exploda, nos dirigiremos rumo a tempos muito difíceis.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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