quarta-feira, 27 de junho de 2018

É da pontinha!

Está desaparecendo a popularidade nacional do gesto de pegar no lóbulo da orelha e dizer: É da pontinha! proclamando a excelência do objeto indicado na ocasião.
À volta de 1922, Ano do Centenário da Independência e que atraiu para o Rio de Janeiro as curiosidades de todo o Brasil e de todo o Mundo, a frase era comum e ouvida em qualquer recanto carioca ou amazonense, gaúcho ou pernambucano. É da pontinha!... Daqui!... valiam aprovações e denúncia oral da indiscutível primazia. Com a simples mímica de tocar a orelha dava-se opinião suficiente sobre vinho, mulher, cavalo, culinária, versos, quadros, todos os motivos sedutores que podiam envolver a sensibilidade humana.
Já não ouço, com a mesma frequência, o é da pontinha ou o mero é daqui, bastantes para um notório julgamento.
Praticamente parece extinto e podemos dizer que os gestos, com voga e fama de vulgaridade expansionista, têm, como os livros, seu destino. Alguns atravessam o milênio e outras curtas décadas, vividas intensamente na simpatia do povo.
Quem não o conheceu, aplicado e expressivo, em todas as camadas sociais e em todos os quadrantes do Brasil, etnográfico e folclórico?
Tive mesmo ocasião de assistir a uma curiosa, e possivelmente única, utilização do gesto num discurso público de agradecimento, sonora e ruidosamente aplaudido. Não posso precisar o ano e mês mas, pela narrativa, será possível identificar-se no tempo a festa evocada. 1919?
Faziam a campanha oficial da nacionalização da pesca e os poveiros, pescadores veteranos, iam sendo compelidos a aceitar a condição de “brasileiros” ou abandonar os barcos e as redes ao redor da Baía da Guanabara. João do Rio (1881-1921) tomara a defesa dos poveiros, portugueses da Póvoa do Varzim, e estava sendo aclamado pela respectiva colônia. No Teatro João Caetano ou Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, uma companhia portuguesa ofereceu a João do Rio uma homenagem. Teatro repleto, assistência entusiástica, aplausos ensurdecedores. João do Rio, de um camarote perto do palco, agradeceu num rápido discurso, muito pouco entendido e conexo debaixo da tempestade de palmas. E o público explodiu numa apoteose quando o jornalista, fazendo o elogio do pescador poveiro, disse que, no ponto de vista de trabalho e caráter, era daqui, e segurou a extremidade do pavilhão auditivo. O gesto era português e popularíssimo em Portugal.
Aplicava-se especialmente aos vinhos e isto se verificava, porque havia e há em Portugal a frase vinho de orelha quando alguém quer referir-se a um bom vinho. E não querendo citar o de orelha, alusivo ao vinho, bastará fazer o gesto de tocar na orelha. É daqui... e todo bom bebedor entende perfeitamente. Pertencente à gíria dos provadores passou ao patrimônio comum da linguagem popular nas regiões da vindima.
Na sua seção Arquivo Etnográfico (Lusa, janeiro-junho, 1924, Viana do Castelo), Cláudio Basto recolheu um dos letreiros típicos da Feira de Agosto, em Lisboa (1915), nas barracas de comes e bebes.

É lá ti Mané Nabiço
Você é mais fino q’uma abelha,
Olhe q’o seu vinho é o melhor
é d’aqui... de traz d’orelha.

Eça de Queirós, em A ilustre casa de Ramires (cap. II), faz o grande Titó, D. Antônio Vilalobos, convidar Gonçalo Mendes Ramires, usando dessas tentações: “Ouve lá! Tu queres hoje à noite cear no Gago, comigo e com o João Gouveia? Vai também o Videirinha e o violão. Temos uma tainha assada, uma famosa. E enorme, que comprei esta manhã a uma mulher da Costa por cinco tostões. Assada pelo Gago!... Entendido, hem? O Gago abre pipa nova de vinho, do Abade de Chandin. Conheço o vinho. É daqui, da ponta fina. E Titó, com dois dedos, delicadamente, sacudiu a ponta mole da orelha”. E no encontro, Gonçalo aparece esfaimado, não permitindo que o Titó descesse à tabacaria do Brito, “a buscar uma garrafa de aguardente de cana da Madeira, velha e da ‘ponta fina’”.
E, narrando a jornada de Santa Clara para Oliveira, Titó dizia ao fidalgo: “Viemos juntos! Por sinal numa tranquitana infame... Até se nos desferrou uma das pilecas e tivemos de parar na Vendinha. Não se perdeu tempo, que há agora lá um vinhinho branco que é daqui da ponta fina!”. Beliscava a orelha.
Já em princípios do século XVII, dizia-se em Portugal: “Este vinho é d’orelha, por São Prisco!”, como se encontra na Comédia Ulissipo, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, a edição de Lisboa em 1618, que outra mais antiga não conheço.
A origem da frase portuguesa é a francesa “Vin d’une oreille, bon vin, dont on approuve le goût en inclinant la tête d’un seul coté”. O prestante Larousse informa que o “Vin des deux oreilles, mauvais vin, dont le goût désagreáble fait qu’on remue plusieurs fois la tête, et par conséquent l’une et l‘autre oreille”.
Os gestos franceses relativos ao vinho duma orelha e vinho de duas orelhas era inclinar a cabeça para um lado ou movê-la várias vezes, duma para outra orelha, desaprovativamente.
De Portugal seria o gesto de pegar no lóbulo da orelha como ato complementar significativo. Este é que veio atravessando tempo e monção e o registro de Eça de Queirós demonstra sua cotidianidade na segunda metade do século XIX. Ao contrário do Brasil, ainda está vivo e presente na mímica tradicional portuguesa.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

Nenhum comentário:

Postar um comentário