segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Um canibal ajudando os cristãos


Na manhã seguinte, uma segunda-feira, depois de vender a cabeça embalsamada como manequim a um barbeiro, acertei minha conta e a do meu companheiro; usando, no entanto, o dinheiro dele. O estalajadeiro sorridente, assim como os outros hóspedes, parecia se divertir às baldas com a súbita amizade que havia brotado entre mim e Queequeg – ainda mais porque as lorotas de Peter Coffin tanto me haviam alarmado em relação à mesma pessoa com quem agora eu andava.
Pedimos um carrinho de mão emprestado e embarcando ali nossas coisas, ou seja, meu pobre saco de viagem e o saco de lona de Queequeg, fomos direto à Musgo, uma pequena escuna de Nantucket que servia de paquete e já estava no cais. Conforme passávamos, as pessoas ficavam olhando; não tanto por causa de Queequeg – visto que estavam acostumadas a canibais como ele nas ruas –, mas por vê-lo comigo em termos tão amistosos. Mas não lhes demos atenção, continuávamos a empurrar nosso carrinho, ora um, ora outro, e Queequeg de vez em quando parando para arrumar o arpão na bainha. Perguntei-lhe por que andava em terra firme com um trambolho daqueles e se não havia arpões em todos os navios baleeiros. A isto, essencialmente, respondeu-me que, embora minha suposição fosse bem correta, ele tinha uma afeição especial por seu próprio arpão, que era de boa qualidade, tinha sido testado em vários combates mortais e era muito íntimo dos corações de baleia. Em suma, como muitos ceifadores que vão às campinas das fazendas com as suas próprias foices – embora não tenham a obrigação de fornecê-las –, Queequeg, por seus próprios motivos, preferia levar seu arpão.
Tomando o carrinho das minhas mãos, contou-me uma história engraçada sobre a primeira vez que viu um carrinho de mão. Foi em Sag Harbor. Os armadores do navio, ao que parece, lhe emprestaram um carrinho para levar seu pesado baú para a estalagem. Para não parecer ignorante – embora desconhecesse completamente o modo de usar o carrinho – Queequeg colocou seu baú nele; amarrou-o com força; e então jogou o carrinho nas costas e caminhou pelo cais. “Ora!”, disse eu, “Queequeg, você devia saber que não era assim. Não ficaram rindo de você?”
Em cima dessa, ele me contou uma outra história. Parece que as pessoas de sua ilha de Kokovoko, durante as festas de casamento, colocam a água perfumada do coco verde em grandes cabaças de metal como uma poncheira; e essa poncheira compõe o ornamento central na esteira trançada onde acontece o banquete. Certa vez um enorme navio mercante chegou a Kokovoko, e seu comandante – segundo se dizia, um cavalheiro muito formal e escrupuloso, ao menos para um capitão do mar – foi convidado para a festa de casamento da irmã de Queequeg, uma bela princesinha que acabara de completar dez anos. Bem, quando todos os convidados estavam reunidos na cabana de bambu da noiva, o capitão entrou e, sendo-lhe indicado o lugar de honra, sentou-se em frente à poncheira, entre o Grande Sacerdote e a Sua Majestade, o Rei, pai de Queequeg. Feita a oração – porque aqueles povos também rezam como nós –, embora Queequeg tenha me dito que, ao contrário de nós, que baixamos os olhos para o prato nessa hora, eles fazem como os patos e olham para cima para o grande Doador de todos os banquetes – ora, depois da Oração, o Grande Sacerdote faz a abertura do banquete com a imemorial cerimônia da ilha; ou seja, ele mergulha seus dedos consagrados na poncheira antes que a bebida abençoada circule. Vendo-se ao lado do Sacerdote, observando a cerimônia e pensando consigo mesmo – sendo Capitão de um navio – que teria precedência sobre um simples Rei de ilha, especialmente estando na casa desse Rei –, o Capitão pôs-se a lavar tranqüilamente suas mãos na poncheira; – pensando, imagino, que fosse um enorme lavabo. “Ora!”, disse Queequeg, “vuncê qui acha? – Nosso povo num riu?”
Por fim, pagas as passagens, e bem acomodadas nossas bugigangas, estávamos a bordo da escuna. Içando as velas, descemos o rio Acushnet. De um lado, via-se New Bedford com as suas ruas em socalcos, suas árvores cobertas de gelo que brilhava com a pureza do ar frio. Enormes colinas, montanhas de tonéis e mais tonéis empilhavam-se no cais, e navios baleeiros que corriam o mundo descansavam ali, lado a lado, afinal ancorados em silêncio e segurança; enquanto de outros chegava o barulho de carpinteiros e ferreiros, que se misturava ao som das fornalhas e forjas a derreter o piche, tudo indicando que novas travessias iriam começar; mal uma longa viagem perigosa termina, já uma segunda começa; e, mal finda a segunda, começa a terceira, e assim por diante, para todo o sempre. Eis o infindável – sim, o intolerável esforço mundano.
Abrindo caminho em mar aberto, a brisa tonificante se fez fresca; a pequena Musgo lançava espuma da proa, como um potro jovem resfolegando. Como me deliciei com aquele ar Tártaro: – como eu desprezava a terra e seus pedágios! – aquela estrada comum toda marcada de saltos e cascos servis; e voltei-me para admirar o mar magnânimo, que não permite registros.
Na mesma fonte de espuma, Queequeg parecia beber e cambalear comigo. Suas narinas escuras dilataram-se, e ele mostrou seus dentes enfileirados e pontudos. Avançávamos cada vez mais; e, chegando a mar aberto, a Musgo pagou seu tributo à borrasca; erguendo e afundando sua proa como uma escrava diante do Sultão. Inclinando-se para um lado, voávamos todos na mesma direção; todo o cordame retinia como se de arame; os dois grandes mastros se curvavam como bambus num tornado em terra. Estávamos tão absorvidos por esta cena rodopiante, tão firmes junto ao gurupés que subia e descia, que não percebemos os olhares irônicos dos passageiros, um grupo de gente obtusa, que se admirava ao ver duas pessoas tão amigas; como se um homem branco fosse mais digno do que um negro pintado de branco. Mas ainda havia ali um bando de caipiras, uns broncos que, pelo ar de matutos, deviam ter acabado de sair do meio do mato. Queequeg surpreendeu um desses jovens, que lhe fazia gracejos pelas costas. Achei que a hora do xucro tinha chegado. Soltando seu arpão, o vigoroso selvagem pegou-o nos braços e com uma agilidade e força prodigiosa jogou-o para cima; o rapaz tocou de leve na popa e caiu de bruços, quase sufocado, enquanto Queequeg, de costas para ele, acendeu seu cachimbo e me ofereceu uma tragada. “Capetão! Capetão!”, gritou o xucro, correndo na direção do comandante.
Capetão, Capetão, o diabo ‘tá aqui.”
Ei, o senhor aí”, gritou o capitão, um sujeito magro, avançando na direção de Queequeg, “que que é isso? Não sabe que podia ter matado o sujeito?”
Qui fala ele?”, perguntou Queequeg, virando-se lentamente para mim.
Ele disse que você quase matô’ aquele homem ali”, eu disse, apontando para o labrego que ainda tremia.
Matô’!”, exclamou Queequeg, contorcendo o rosto, com uma expressão sobrenatural de desprezo, “Ah! ele peixe muito pequeno; Queequeg não mata peixe pequeno; Queequeg mata baleia grande!”
Escute aqui!”, gritou o Capitão, “eu é que vô’ ti matá’, seu canibal, se você fizer mais alguma brincadeira; por isso tome cuidado!”
Mas sucedeu que bem naquele momento foi o Capitão quem teve que tomar cuidado. A força prodigiosa do vento sobre a vela grande tinha rompido a escota de barlavento, e a enorme retranca voava de um lado para o outro, literalmente varrendo a parte posterior do convés. O pobre-diabo, a quem Queequeg tratara de modo tão rude, foi atirado ao mar; o pânico tomou conta de todos; e parecia loucura tentar agarrar a retranca. Voava da direita para a esquerda, e voltava, como o batimento de um relógio, e a todo instante parecia estar prestes a se estilhaçar. Nada foi feito, e nada mesmo parecia possível; quem estava no convés correu para a proa e ficou olhando para a retranca como se fosse a mandíbula de uma baleia exasperada. No meio dessa consternação, Queequeg se pôs de joelhos, rastejou por sob a retranca, conseguiu pegar uma corda, prendeu uma ponta na amurada, arremessou a outra ponta como um laço, agarrou a retranca que passava por cima de sua cabeça, deu um puxão, a verga ficou presa e tudo o mais estava salvo. A escuna foi posta contra o vento e, enquanto os homens se preparavam para arriar o escaler da popa, Queequeg, nu da cintura para cima, saltou do costado, com um pulo comprido, fazendo uma curva. Por três ou mais minutos foi visto nadando como um cachorro, jogando seus braços compridos para a frente, deixando à mostra seus ombros bronzeados no meio da espuma gelada. Eu via meu grande e glorioso amigo, mas não via ninguém a ser salvo. O labrego tinha afundado. Erguendo-se perpendicularmente sobre a água, Queequeg deu uma rápida olhadela à sua volta e, parecendo achar o que procurava, mergulhou e sumiu. Dentro em pouco ele reapareceu, nadando com um braço e com o outro arrastando uma forma inanimada. O bote os recolheu prontamente. O pobre xucro conseguiu se restabelecer. Todos os homens consideraram Queequeg um sujeito responsável; o capitão pediu-lhe perdão. A partir daquele momento me agarrei a Queequeg como uma craca; sim, até que o pobre Queequeg fez seu último mergulho profundo.
Já se viu alguma vez tamanha inconsciência? Ele não parecia pensar nem por um instante ser merecedor de uma medalha de todas as Sociedades Magnânimas e Humanitárias. Pediu apenas um pouco de água – água fresca – para tirar o sal; feito isso, vestiu roupas secas, acendeu seu cachimbo, recostou-se na amurada e ficou olhando os que o rodeavam, parecendo dizer consigo mesmo – “Este é um mundo de sócios, de um só fundo de capitais presente em todos os meridianos. Nós, canibais, temos que ajudar esses Cristãos”.
Herman Melville, in Moby Dick

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