quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Realejo, gaita de boca e outras musiquinhas...

Há quase um século, escrevia Stéphane Mallarmé, de Londres, numa carta a seu amigo Henri:
... Interrompi um instante esta carta para atirar uma moeda a um pobre realejo que se lamenta na praça. São dez horas. O pobre-diabo ainda espera talvez a sua primeira refeição do dia e conta com a sua Marselhesa para comprar um penny de pão no vendeiro da esquina. Que tristes reflexões não tem ele a fazer diante de todas essas janelas fechadas e como deve desesperar — vendo esses postigos aferrolhados, essas cortinas descidas — de que qualquer mão aquecida a um bom fogo abra e atravesse tudo isso para lhe lançar o que comer! Tocar diante de uma janela acesa, ainda bem: vê-se vida e portanto bondade atrás das vidraças, mas tocar manivela diante dos postigos sombrios como o muro e indiferentes como ele! Marie diz que esse homem é um preguiçoso e que os verdadeiros pobres merecem mais os nossos pence. Isto não. Esse homem faz música nas ruas, é um ofício como o de notário e que tem sobre este último a vantagem de ser inútil.
Pode-se acaso sonhar uma vida mais bela do que essa que consiste em errar pelos caminhos e fazer a esmola de uma ária triste ou alegre à primeira janela que se avista, sem saber quem ali porá a cabeça, se um anjo ou uma megera, em tocar para as calçadas, para os pardais, para as árvores doentias das praças?! São aedos, esses homens... Seu instrumento é grotesco? Seja, mas a intenção permanece.”
A intenção... Mallarmé acertou no ponto: é na intenção que está o supremo encanto de todos esses instrumentos frustros... O realejo, a gaitinha de boca... É verdade que existem os virtuosi da gaitinha de boca, mas atrevo-me a dizer que esses não sabem tocar... Gaitinha de boca bem tocada não é gaitinha de boca. E outra coisa: falta-lhe o poder de sugestão, a graça melancólica do inatingido...
E havia, nos pátios da minha meninice, um outro instrumento, o mais humilde de todos, tão humilde que nem chegava a ser um instrumento... Mas, por isso mesmo era tão da gente que não se queria outro... E fico a lembrar o negrinho Filó; era um artista no pente.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

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