Há
quase um século, escrevia Stéphane Mallarmé, de Londres, numa
carta a seu amigo Henri:
“...
Interrompi um instante esta carta para atirar uma moeda a um pobre
realejo que se lamenta na praça. São dez horas. O pobre-diabo ainda
espera talvez a sua primeira refeição do dia e conta com a sua
Marselhesa para comprar um penny de pão no vendeiro da
esquina. Que tristes reflexões não tem ele a fazer diante de todas
essas janelas fechadas e como deve desesperar — vendo esses
postigos aferrolhados, essas cortinas descidas — de que qualquer
mão aquecida a um bom fogo abra e atravesse tudo isso para lhe
lançar o que comer! Tocar diante de uma janela acesa, ainda bem:
vê-se vida e portanto bondade atrás das vidraças, mas tocar
manivela diante dos postigos sombrios como o muro e indiferentes como
ele! Marie diz que esse homem é um preguiçoso e que os verdadeiros
pobres merecem mais os nossos pence. Isto não. Esse homem faz
música nas ruas, é um ofício como o de notário e que tem sobre
este último a vantagem de ser inútil.
“Pode-se
acaso sonhar uma vida mais bela do que essa que consiste em errar
pelos caminhos e fazer a esmola de uma ária triste ou alegre à
primeira janela que se avista, sem saber quem ali porá a cabeça, se
um anjo ou uma megera, em tocar para as calçadas, para os pardais,
para as árvores doentias das praças?! São aedos, esses homens...
Seu instrumento é grotesco? Seja, mas a intenção permanece.”
A
intenção... Mallarmé acertou no ponto: é na intenção que está
o supremo encanto de todos esses instrumentos frustros... O realejo,
a gaitinha de boca... É verdade que existem os virtuosi da gaitinha
de boca, mas atrevo-me a dizer que esses não sabem tocar... Gaitinha
de boca bem tocada não é gaitinha de boca. E outra coisa: falta-lhe
o poder de sugestão, a graça melancólica do inatingido...
E
havia, nos pátios da minha meninice, um outro instrumento, o mais
humilde de todos, tão humilde que nem chegava a ser um
instrumento... Mas, por isso mesmo era tão da gente que não se
queria outro... E fico a lembrar o negrinho Filó; era um artista no
pente.
Mário
Quintana, in A vaca e o hipogrifo
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