sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Pensão

Os apaixonados não sabem que cada casa de paredes brancas e janelas azuis é uma pensão. Pensões frequentemente se anunciam como “familiares”, lugares de respeito. O dono até pode rejeitar um possível hóspede. Com o corpo não é assim. Os hóspedes já estão lá, todos com a mesma cara, mas cada um de um jeito: um professor sério, uma criança que brinca, um avô carinhoso, um sedutor de fala mansa, um pecador arrependido, um poeta deprimido, um sargento autoritário, uma criança birrenta, um órfão abandonado, um sabe-tudo que só fala e não escuta, um debochado, um torturador que sabe onde dói mais, um assassino que só não mata por medo, um ser monstruoso, mistura de bruxa e demônio. Todos nos seus quartos. Normalmente não aparecem. Esse rol de hóspedes – eles não se encontram todos na pensão. Apenas alguns – o que é suficiente. O dono da pensão – que se chama “eu” – se esforça por mantê-los quietos. Alguns, ele gosta que apareçam. São seres civilizados. Confirmam o caráter “familiar” da pensão. Outros, quando aparecem, é como se o inferno acontecesse. Trancam o dono da pensão num quarto, e estabelecem o horror-terror. É a gritaria, as ofensas, os palavrões, a ironia cortante, as agressões, a violência. Os demônios têm um conhecimento preciso dos lugares a serem tocados. A pensão – paredes brancas e janelas azuis – se transforma num lugar infernal. (É nesses momentos que acontecem as tragédias. Crimes. Vem o julgamento. Mas aquele que é julgado, odiado e executado não é o criminoso. É o dono da pensão, pessoa pacífica e de bons sentimentos. O criminoso está dormindo, numa cela, no porão da pensão....) Passada a orgia infernal, os demônios exauridos e satisfeitos retornam às suas celas, deixando os destroços para serem arrumados pelo dono da pensão. É o momento da tristeza e da vergonha. Como explicar que aquela pensão de paredes brancas e janelas azuis, anunciada como lugar sagrado – à porta, “Lar, doce lar”; no hall de entrada uma Bíblia aberta! – de repente se transforme num lugar infernal?
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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