[…]
Mais uma vez, o bispo comprovou a
facilidade do poder terrenal. Apontou Delaura com o indicador
trêmulo, sem olhar para ele, e disse ao vice-rei: — Aqui quem está
a par dessas novidades é o padre Cayetano.
O vice-rei seguiu a direção do
indicador e topou com a fisionomia distante e os olhos atônitos que
o fitavam sem pestanejar. Perguntou a Delaura com um interesse real:
— Leste Leibniz?
— Sim, Excelência — disse
Delaura, e acrescentou: — Pela natureza do meu cargo.
No final da visita, ficou evidente que
o interesse maior do vice-rei era pela situação de Sierva María.
Por ela própria, explicou, e pela paz da abadessa, cuja atribulação
o comovera.
— Ainda nos faltam provas cabais,
mas as atas do convento atestam que essa pobre criança está
possuída pelo demônio — disse o bispo. — A abadessa sabe melhor
que nós.
— Ela acha que caístes num ardil de
Satanás — disse o vice-rei.
— Não somente nós, mas toda a
Espanha — disse o bispo. — Atravessamos o mar oceano para impor a
lei de Cristo, e o conseguimos nas missas, nas procissões, nas
festas dos patronos, mas não nas almas.
Falou de Yucatán, onde tinham
construído catedrais suntuosas para esconder as pirâmides pagãs,
sem perceber que os aborígines acudiam à missa porque debaixo dos
altares de prata seus santuários continuavam vivos. Falou da
mixórdia de sangue que tinham feito desde a conquista: sangue de
espanhóis com sangue de índios, destes e daqueles com negros de
toda laia, até mandingas muçulmanos, e perguntava se tal
promiscuidade cabia no reino de Deus. Apesar da sua dificuldade de
respirar e de sua tossezinha de velho, terminou sem conceder uma
pausa ao vice-rei: — Que pode ser tudo isso senão armadilhas do
Inimigo? O vice-rei estava alterado.
— O desencanto de Vossa Senhoria
Ilustríssima é de extrema gravidade — disse.
— Não o veja assim Vossa Excelência
— disse o bispo com muito bons modos. — Procuro tornar mais evidente
a força da fé de que necessitamos para que esses povos sejam dignos
de nosso sacrifício.
O vice-rei retomou o fio.
— Até onde entendo, os reparos da
abadessa são de caráter prático — disse. — Ela acha que talvez
outros conventos tenham condições melhores para um caso tão
difícil.
— Pois saiba Vossa Excelência que
escolhemos Santa Clara sem hesitação, dada a integridade, a
eficiência e a autoridade de Josefa Miranda — disse o bispo. — E
Deus sabe que estamos certos.
— Permitir-me-ei transmitir essa sua
opinião — disse o vice-rei.
Ela a conhece de sobra — disse o
bispo. — O que me inquieta é por que não ousa aceitá-la.
Ao tomar a decisão, sentiu passar a
aura de uma crise iminente de asma, e apressou o final da visita.
Comunicou que tinha recebido um memorial com as reclamações da
abadessa e que prometia resolvê-las com o mais ardente amor pastoral
assim que a saúde lhe desse uma trégua. O vice-rei agradeceu e pôs
termo à visita com uma cortesia pessoal. Também ele sofria de asma,
e ofereceu seus médicos ao bispo. Este não achou necessário.
— Tudo o que é meu está nas mãos
de Deus disse. — Tenho a idade em que a Virgem morreu.
Ao contrário dos cumprimentos, a
despedida foi lenta e cerimoniosa.
Três dos sacerdotes, entre os quais
Delaura, acompanharam em silêncio o vice-rei pelos corredores
soturnos até a porta principal.
A guarda do vice-rei mantinha
afastados os mendigos com uma barreira de alabardas cruzadas. Antes
de subir à carruagem, o vice-rei voltou-se para Delaura, apontou-lhe
o seu indicador inapelável, e disse: — Não deixes que me esqueça
de ti.
Foi uma frase tão imprevista e
enigmática que Delaura só conseguiu responder com uma reverência.
O vice-rei foi até o convento para
informar a abadessa sobre os resultados da visita. Horas depois, já
com o pé no estribo, e apesar da pressão da vice-rainha, negou o
indulto a Martina Laborde, porque lhe pareceu um mau precedente para
os muitos réus de lesa-majestade humana que encontrou nas enxovias.
O bispo permanecera inclinado para a
frente, tentando conter os assobios de sua respiração, com os olhos
fechados, até que Delaura voltou.
Os ajudantes já se haviam retirado pé
ante pé, e a sala estava na penumbra. Olhando ao redor, o bispo viu
as cadeiras vazias alinhadas contra as paredes e Cayetano sozinho na
sala. Perguntou-lhe com voz sumida: — Já vimos um homem tão bom?
Delaura respondeu com um gesto ambíguo. O bispo se ajeitou com um
movimento difícil e continuou apoiado no braço da poltrona até
dominar a respiração. Não quis jantar. Delaura apressou-se a
acender um candeeiro para iluminar o caminho até o quarto.
— Muito mal nos saímos com o
vice-rei — disse o bispo.
— Havia alguma razão para nos
sairmos bem? — perguntou Delaura. — Não se bate à porta de um
bispo sem um anúncio formal.
O bispo não estava de acordo e se
explicou com grande vivacidade.
— Minha porta é a porta da Igreja,
e ele se comportou como um cristão dos antigos. O impertinente fui
eu, por causa do meu mal de peito, e alguma coisa terei de fazer para
me escusar.
Já na porta no quarto havia mudado de
tom e de assunto, e despediu-se de Delaura, com uma palmadinha
familiar no ombro.
— Reza por mim esta noite — disse.
— Temo que vá ser muito comprida.
De fato, sentiu-se morrer com a crise
de asma que pressentira durante a visita. Como não fizessem efeito
um vomitório de tártaro e outros paliativos extremos, tiveram que
sangrá-lo às pressas. Ao amanhecer, já tinha recobrado o ânimo.
Cayetano, em vigília na biblioteca ao
lado, não soube de nada.
Começava as rezas da manhã quando
vieram anunciar que o bispo o esperava no quarto. Encontrou-o na
cama, tomando uma xícara grande de chocolate, acompanhado de pão
com queijo, respirando como um fole novo e de espírito exaltado.
Bastou a Cayetano vê-lo para saber que suas decisões estavam
tomadas.
Assim foi. Contrariando o pedido da
abadessa, Sierva María ficava em Santa Clara, e o padre Cayetano
Delaura continuava a cuidar dela com a plena confiança do bispo. Não
estaria mais em regime carcerário, como até ali, e devia participar
das facilidades gerais oferecidas à população do convento. O bispo
levava em consideração as atas, mas a falta de rigor delas impedia
a clareza do processo, de modo que o exorcista devia proceder segundo
o seu próprio critério. Por último, determinou a Delaura que
visitasse o marquês em seu nome, com poderes para resolver o que
fosse necessário, até que ele tivesse tempo e saúde para atendê-lo
em audiência.
— Não haverá mais nenhuma
instrução — disse o bispo para terminar — Que Deus te abençoe.
Cayetano foi ter ao convento com o
coração batendo forte, mas não encontrou Sierva Maria em sua cela.
Estava na sala de atos, coberta de jóias legítimas e com a
cabeleira estendida a seus pés, posando com sua extraordinária
dignidade de negra para um célebre retratista da comitiva do
vice-rei. Tão admirável quanto sua beleza era a docilidade com que
obedecia ao artista. Cayetano caiu em êxtase.
Sentado à sombra, e vendo-a sem ser
visto, sobrou-lhe tempo para dissipar qualquer dúvida do coração.
À hora nona, o retrato estava
terminado. O pintor examinou-o à distância, deu duas ou três
pinceladas finais e antes de assinar pediu a Sierva María que o
olhasse. Estava idêntica, de pé numa nuvem e no meio de uma corte
de diabos submissos. Ela contemplou o retrato sem pressa e se
reconheceu no esplendor dos seus anos. Por fim disse: — É como um
espelho.
— Até com os demônios? —
perguntou o pintor.
— Assim mesmo — disse ela.
Terminada a pose, Cayetano a
acompanhou até a cela. Nunca a tinha visto andar; fazia-o com a
mesma graça e facilidade com que dançava.
Nunca a tinha visto com outro traje
que não fosse a bata de presa, e o vestido de rainha lhe dava uma
idade e uma elegância que revelavam até que ponto já era mulher.
Nunca tinham caminhado juntos, e era encantadora para ele a
naturalidade com que se acompanhavam.
A cela estava diferente graças aos
dons de persuasão dos vice-reis, que na visita de despedida tinham
convencido a abadessa das boas razões do bispo. O colchão era novo,
os lençóis de linho, e os travesseiros de penas, e se haviam posto
utensílios para o asseio cotidiano e o banho de corpo. A luz do mar
entrava pela janela sem cruzetas e resplandecia nas paredes
recém-caiadas. Como a comida era a mesma da clausura, não foi mais
necessário levar nada de fora, mas Delaura sempre conseguiu passar
de contrabando algumas guloseimas dos portais. María quis partilhar
a merenda, e Delaura aceitou um dos biscoitinhos que sustentavam o
prestígio das clarissas. Enquanto comiam ela fez um comentário
casual: — Conheci a neve.
Cayetano não se espantou. Em outra
época tinham falado de um vice-rei que quis trazer a neve dos
Pireneus, para que os aborígines a conhecessem, pois ignorava que a
tínhamos quase dentro do mar, na Serra Nevada de Santa Marta. Talvez
dom Rodrigo de Buen Lozano tivesse realizado a façanha com suas
artes novidadeiras.
— Não — disse a menina. — Foi
num sonho.
Contou que estava defronte de uma
janela e lá fora caía uma nevada forte, enquanto ela arrancava e
comia uma por uma as uvas de um cacho no seu colo. Delaura teve um
sobressalto de terror. Temendo a iminência da última resposta,
perguntou: — E como acabou? — Tenho medo de contar — disse
Sierva María.
Ele não precisou de mais. De olhos
fechados, rezou por ela. Ao terminar, era outro.
— Não te preocupes — disse. —
Prometo que muito breve serás livre e feliz, por graça do Espírito
Santo.
Bernarda não sabia até então que
Sierva Maria estava no convento.
Soube quase por acaso, uma noite em
que encontrou Dulce Olivia varrendo e arrumando a casa, e a confundiu
com uma de suas alucinações. Em busca de alguma explicação
racional, dedicou-se a revistar quarto por quarto, e no percurso se
deu conta de que não via Sierva Maria há muito tempo. Caridad del
Cobre lhe transmitiu o que sabia: "O senhor marquês avisou que
ela ia para muito longe e que não a veríamos mais". Como a luz
estava acesa no quarto do marido, Bernarda entrou sem bater.
Ele estava acordado na rede, em meio à
fumaça da bosta que ardia a fogo lento para espantar os mosquitos.
Viu a estranha mulher transfigurada pelo roupão de seda, e também
pensou que se tratava de um fantasma, porque estava pálida e
sinistra, e parecia vir de muito longe. Bernarda lhe perguntou por
Sierva María.
— Há dias que não está conosco —
disse ele.
Ela o tomou no pior sentido, e para
poder respirar teve que sentar na primeira poltrona que encontrou.
— Quer dizer então que Abrenuncio
fez o que era preciso fazer — disse.
O marquês se benzeu: — Deus nos
livre! Contou a verdade. Teve o cuidado de explicar que não dissera
nada antes porque quis tratá-la, conforme ela queria, como se
tivesse morrido. Bernarda ouviu-o concentrada, com uma atenção que
ele não merecera em doze anos de má vida comum.
— Sabia que ia me custar a vida —
disse marquês. — Mas em pagamento da vida dela.
Bernarda suspirou: — Quer dizer que
agora nossa vergonha é de domínio público.
Viu nas pálpebras do marido o brilho
de uma lágrima, e um tremor lhe subiu das entranhas. Dessa vez não
era a morte, mas a certeza inelutável do que mais cedo ou mais tarde
havia de acontecer. Não se enganou. O marquês levantou-se da rede
com suas últimas forças, desabou diante dela e caiu num choro
áspero de velho imprestável.
Bernarda capitulou sob o fogo das
lágrimas de homem que molharam suas virilhas através da seda.
Confessou, apesar de quanto odiava Sierva María, que era um alívio
saber que estava viva.
— Sempre entendi tudo, menos a morte
— disse.
Tornou a fechar-se no quarto, a melaço
e cacau, e quando saiu, duas semanas depois, era um cadáver
ambulante. O marquês tinha notado desde muito cedo uns preparativos
de viagem, mas não prestou muita atenção. Antes de o sol
esquentar, viu Bernarda sair pelo portão do pátio numa mula mansa,
seguida por uma outra com a bagagem. Muitas vezes saíra assim, sem
arrieiros nem escravos, sem se despedir de ninguém nem dar qualquer
explicação. Mas o marquês soube que daquela vez ia embora para
nunca mais voltar, porque além dos baús de sempre levava duas
bilhas cheias de ouro puro, que manteve enterradas debaixo da cama
durante anos.
Jogado de qualquer maneira na rede, o
marquês recaiu no pavor de que os escravos o esfaqueassem, e os
proibiu de entrar na casa durante o dia. Assim, quando Cayetano
Delaura foi visitá-lo Por ordem do bispo, teve que empurrar o portão
e entrar sem licença, porque ninguém respondeu às batidas da
aldraba. Os mastins se assanharam nos canis, mas o padre seguiu
adiante. No pomar, com a chilaba, sarracena e o gorro toledano, o
marquês fazia a sesta na rede, coberto de flores de laranjeira.
Delaura o contemplou sem acordá-lo, e foi como se visse Sierva María
decrepita e esmigalhada pela solidão. O marquês acordou e custou a
reconhecê-lo por causa do pano no olho. Delaura, levantou a mão com
os dedos esticados em sinal de paz.
— Deus o guarde, senhor marquês —
disse.
— Como tem passado? — Assim, assim
— disse o marquês. — Apodrecendo.
Afastou com mão vagarosa as teias de
aranha da sesta e sentou-se na rede. Cayetano pediu desculpas por
entrar sem ser convidado. O marquês explicou que ninguém fazia caso
da aldraba porque se perdera o hábito das visitas. Delaura declarou
em tom solene: — O senhor bispo, muito atarefado e sofrendo de
asma, me manda aqui representando-o. — Cumprido o protocolo
inicial, sentou-se junto à rede e foi ao assunto que lhe abrasava as
entranhas. Quero informar-lhe que me foi confiada a saúde espiritual
de sua filha.
O marquês agradeceu e quis saber como
estava ela.
Bem — disse Delaura. — Mas quero
ajudá-la a ficar melhor ainda.
Explicou o sentido e os métodos dos
exorcismos. Falou do poder que Jesus deu a seus discípulos para
expulsar dos corpos os espíritos imundos e curar enfermidades e
fraquezas. Contou a lição evangélica de Legião e os dois mil
porcos endemoninhados. Todavia, o mais importante era estabelecer se
Sierva María estava de fato possessa. Ele não acreditava, mas
precisava da ajuda do marquês para dissipar qualquer dúvida. Antes
de mais nada, queria saber, segundo disse, como era a menina antes de
ser internada no convento.
— Não sei — disse o marquês. —
Sinto que a conheço menos quanto mais a conheço.
Atormentava-o a culpa de a ter
abandonado à própria sorte no pátio dos escravos. A isso atribuía
seus silêncios que podiam durar meses, as explosões de violência
irracional, a astúcia com que pendurando nos gatos a campainha que
ela lhe prendia no pulso. A maior dificuldade para conhecê-la era o
seu vício de mentir por prazer .
— Como os negros — disse Delaura —
Os negros mentem para nós, não entre eles — disse o marquês.
No quarto, Delaura separou com um
simples olhar o que era o Profuso legado da avó e os objetos novos
de Sierva María: as bonecas vivas, as dançarinas de corda, as
caixas de música. Em cima da cama, tal como a arrumara o marquês,
continuava a maleta com que a tinha levado ao convento. A tiorba
coberta de poeira estava relegada a um canto. O marquês explicou que
era um instrumento italiano caído em desuso, e exagerou a habilidade
da filha no tocá-la. Começou a afiná-la Por distração e acabou
tocando com boa memória, até cantando a canção que cantava com
Sierva María.
Foi um instante revelador. A música
disse a Delaura o que o marquês não conseguira dizer da filha. E
este se comoveu tanto que não pôde terminar a canção. Suspirou: —
Não imagina como ficava bem de chapéu.
Sua emoção contagiou Delaura.
— Vejo que gosta muito dela —
disse.
— Não imagina quanto — disse o
marquês. — Eu daria a alma para vê-la.
Mais uma vez Delaura sentiu que o
Espírito Santo não saltava o mínimo detalhe.
— Nada será mais fácil se pudermos
demonstrar que não está possuída — disse.
— Fale com Abrenuncio — disse o
marquês. Desde o princípio afirmou que Sierva María está sã, mas
só ele poderá lhe explicar.
Delaura se viu numa encruzilhada.
Abrenuncio talvez lhe fosse providencial, mas falar com ele poderia
trazer consequências indesejáveis. O marquês pareceu ler o seu
pensamento.
— É um grande homem — disse.
Delaura fez com a cabeça um gesto
expressivo.
— Conheço as regras do Santo Ofício
— disse.
— Qualquer sacrifício será pouco
para recuperá-la — insistiu o marquês. E como Delaura não se
manifestava, concluiu: — Peço-lhe pelo amor de Deus.
Delaura, com uma fenda no coração,
disse: — Suplico-lhe que não me faça sofrer mais.
O marquês não insistiu. Apanhou a
maletinha em cima da cama e pediu a Delaura que a levasse à filha.
— Pelo menos vai ficar sabendo que
penso nela.
Delaura precipitou-se sem se despedir.
Embrulhou-se na capa., pois chovia a cântaros, e guardou debaixo a
maleta. Custou a notar que sua voz interior ia repetindo versos
soltos da canção da tiorba.
Começou a cantá-la, em voz alta,
açoitado pela chuva, e a repetiu decorada até o final. No bairro
dos artesãos, dobrou à esquerda da ermida, sempre cantando, e bateu
na porta de Abrenuncio.
Ao fim de um longo silêncio,
ouviram-se passos inseguros e a voz de sono: — Quem é? — A lei —
disse Delaura Foi a única coisa que lhe veio à cabeça para não
gritar o nome.
Abrenuncio abriu a porta acreditando
que era mesmo gente do governo, e não o reconheceu. — Sou o
bibliotecário da diocese — disse Delaura. O médico lhe abriu
passagem passagem pelo vestíbulo mergulhado na penumbra e o ajudou a
tirar a capa ensopada. No seu estilo próprio, Perguntou em latim: —
Em que batalha perdeu esse olho? Delaura narrou em seu latim clássico
o contratempo do eclipse e se estendeu em pormenores sobre a
persistência do mal, embora o médico do bispo lhe tivesse
assegurado que o parche era infalível Mas Abrenuncio só deu atenção
à pureza do seu latim.
— É de uma perfeição absoluta —
disse, maravilhado. — De onde é o senhor? — De Ávila — disse
Delaura.
— Pois maior ainda é o mérito —
disse Abrenuncio.
Fez o visitante tirar a batina e as
sandálias, colocou-as para secar e pôs-lhe a sua capa de liberto
por cima das calças amarfanhadas.
Depois tirou-lhe o tapa-olho e o jogou
no caixote de lixo.
— A única coisa ruim desse olho é
que vê mais do que deve — disse.
Delaura estava pasmo com a quantidade
de livros acumulados na sala.
Abrenuncio reparou, e levou-o à
botica, onde havia muitos mais, em estantes que iam até o teto.
— Espírito Santo! — exclamou
Delaura. — Isto é a biblioteca de Petrarca.
Com uns duzentos livros mais — disse
Abrenuncio. Deixou-o saciar a curiosidade. Havia exemplares únicos
que na Espanha podiam dar prisão. Delaura os reconhecia e folheava,
guloso, repondo-os nas estantes com dor na alma. Em posição
privilegiada, com o eterno Fray Gerundio, encontrou Voltaire completo
em francês e uma tradução para o latim das Cartas filosóficas.
— Voltaire em latim é quase uma
heresia— disse brincando.
Abrenuncio contou que a tradução era
de um frade de Coimbra que se dava ao luxo de fazer livros raros para
distração de peregrinos.
Enquanto Delaura o folheava, o médico
perguntou se sabia francês.
— Não falo, mas leio — disse
Delaura em latim. E acrescentou sem falsos pudores: — E além
disso, grego, inglês, italiano, português e um pouco de alemão.
— Pergunto por causa do que comentou
sobre Voltaire — disse Abrenuncio.
— É uma prosa perfeita — E a que
mais nos dói — disse Delaura— — Pena que seja de um francês.
— O senhor diz isso por ser espanhol
— disse Abrenuncio.
— Na minha idade, e com tantos
sangues cruzados, já não sei mais com certeza de onde sou disse
Delaura. — Nem quem sou.
— Ninguém sabe por estes reinos —
disse Abrenuncio. — E creio que precisarão de séculos para saber.
Delaura conversava sem interromper o
exame da biblioteca. De repente, como lhe acontecia com frequência,
lembrou-se do livro que o diretor do seminário lhe tinha confiscado
aos doze anos e do qual só recordava um episódio que tinha repetido
ao longo de sua vida a quem pudesse ajudá-lo.
— Lembra o título? — perguntou
Abrenuncio.
— Nunca soube — disse Delaura. —
E daria qualquer coisa para saber como acaba.
Sem anunciar, o médico o pôs diante
de um livro que ele reconheceu ao primeiro golpe de vista. Era uma
antiga edição sevilhana dos quatro livros do Amadís de Gaula.
Delaura, trêmulo, folheou-o e percebeu que estava à beira de
renunciar a toda e qualquer salvação. Afinal se atreveu: — Sabe
que este é um livro proibido? Como os melhores romances destes
séculos — disse Abrenuncio. — Em lugar deles só se imprimem
romances para homens doutos. Que leriam esses coitados de hoje se não
lessem escondido os romances de cavalaria? — Há outros — disse
Delaura — Cem exemplares da edição príncipe do Quixote foram
lidos aqui no mesmo ano em que saíram.
— Foram lidos, não — disse
Abrenuncio. — Passaram pela alfândega a caminho dos diversos
reinos.
Delaura não prestou atenção, porque
tinha conseguido identificar o precioso exemplar do Amadís de Gaula.
— Este livro desapareceu há nove
anos do capítulo secreto de nossa biblioteca e nunca mais
conseguimos encontrá-lo — disse.
— Era de imaginar — disse
Abrenuncio — Mas há outros motivos para considerá-lo, um exemplar
histórico: durante mais de um ano circulou de mão em mão, pelo
menos entre onze pessoas, e pelo menos três morreram— Tenho
certeza de que foram vítimas de algum eflúvio desconhecido.
— Meu dever seria denunciá-lo ao
Santo ofício — disse Delaura.
Abrenuncio levou na brincadeira.
— Terei dito uma heresia? — O caso
é que tem aqui um livro proibido e alheio, e não denunciou.
— — Esse e muitos outros — disse
Abrenuncio, assinalando com um amplo círculo do indicador suas
prateleiras atulhadas. — Mas se fosse por isso, o senhor teria
vindo há muito tempo e eu não lhe abriria a porta. — Voltou-se
para ele e arrematou de bom humor: — Mas me alegra que tenha vindo
agora, é um prazer vê-lo aqui.
— Foi o marquês, ansioso pela sorte
da filha, quem me sugeriu que viesse — disse Delaura.
Abrenuncio o fez sentar diante dele, e
os dois se entregaram ao vício da conversação, enquanto uma
tempestade apocalíptica convulsionava o mar. O médico fez uma
exposição erudita e inteligente sobre a raiva desde a origem da
humanidade, sobre seus estragos impunes e a incapacidade milenar da
ciência médica para impedi-los. Deu exemplos lamentáveis de como
sempre fora confundida com a possessão demoníaca, assim como certas
formas de loucura e outras perturbações do espírito. Quanto a
Sierva María, depois de tantas semanas, não parecia provável que a
contraísse. O único perigo, concluiu Abrenuncio, era que morresse,
como tantos outros, em consequência da crueldade dos exorcismos.
A última frase pareceu a Delaura um
exagero próprio da medicina medieval, mas ele não discutiu, porque
servia bem à sua argumentação teológica de que a menina não
estava possuída.
Disse que os três idiomas africanos
de Sierva María tão diferentes do espanhol e do português, não
tinham de modo algum a carga satânica que lhes atribuíam no
convento. Havia numerosos testemunhos de que era dotada de uma força
física incomum, mas nenhum de que se tratasse de um poder
sobrenatural. Também não se comprovara qualquer ato seu de
levitação ou adivinhação do futuro, dois fenômenos que por certo
serviam também como provas secundárias de santidade.
Contudo, Delaura tinha procurado o
apoio de confrades insignes, até mesmo de outras comunidades, e
nenhum ousara pronunciar-se contra as atas do convento nem contrariar
a credulidade popular. Mas tinha consciência de que nem os seus
critérios nem os de Abrenuncio convenceriam a quem quer que fosse, e
muito menos os dois juntos.
— Seríamos o senhor e eu contra
todos — disse.
— Por isso me surpreendeu que viesse
— disse Abrenuncio. — Não sou mais que uma peça cobiçada no
território de caça do Santo Ofício.
— A verdade é que nem sei ao certo
por que vim — disse Delaura. — A não ser que essa menina me
tenha sido imposta pelo Espírito Santo para pôr a prova minha fé.
Bastou dizê-lo para se libertar do nó
de suspiros que o oprimia.
Abrenuncio olhou-o nos olhos, até o
fundo da alma, e percebeu que estava quase a chorar.
— Não se atormente à toa — disse
em tom tranquilizador. — Talvez só tenha vindo porque precisava
falar nela.
Delaura sentiu-se nu. Levantou-se,
procurou o rumo da porta e só não fugiu em disparada porque estava
meio despido. Abrenuncio o ajudou a vestir a roupa ainda molhada,
enquanto tratava de fazê-lo ficar para continuar a conversa.
— Com o senhor, conversaria sem
parar até o próximo século — disse.
Procurou retê-lo com um vidrinho de
um colírio transparente para curar a persistência do eclipse no
olho. Fê-lo voltar da porta para buscar a maleta que ficara
esquecida em algum lugar da casa. Mas Delaura parecia tomado de uma
dor mortal. Agradeceu a tarde, o auxilio médico, o colírio, mas a
única concessão que fez foi a promessa de voltar outro dia com mais
tempo.
Não aguentava mais a vontade de ver
Sierva María. Mal notou, na porta, que já era noite fechada. Tinha
estiado, mas os canais transbordavam devido ao aguaceiro, e Delaura
foi caminhando pelo meio da rua com água pelos joelhos. A porteira
do convento quis barrar-lhe a passagem por causa da proximidade do
toque de recolher. Ele a empurrou para um lado: — Ordens do senhor
bispo.
Sierva Maria acordou assustada e não
o reconheceu no escuro. Ele não soube explicar por que ia numa hora
tão incomum e lançou mão do pretexto: — Teu pai quer te ver.
A menina reconheceu a maletinha, e seu
rosto se incendiou de fúria.
— Mas eu não quero — disse.
Desconcertado, ele perguntou por quê.
— Porque não — disse ela. —
Prefiro morrer.
Ele tentou tirar a correia do seu
tornozelo esquerdo são, achando que a agradava.
— Deixe-me — disse ela. — Não
me toque.
Delaura não ligou e ela soltou-lhe
uma série de cusparadas na cara.
Ele se manteve firme e lhe ofereceu a
outra face. Sierva María continuou a cuspir. Ele tornou a mudar a
face, embriagado pela onda de prazer proibido que lhe subiu das
entranhas. Cerrou os olhos e rezou com a alma enquanto ela continuava
a cuspir, tanto mais feroz quanto mais ele gozava, até que se deu
conta da inutilidade de sua raiva. Então Delaura assistiu ao
espetáculo pavoroso de uma verdadeira energúmena. A cabeleira de
Sierva María se encrespou com vida própria, como as serpentes da
Medusa, e de sua boca saiu uma baba verde, uma saraivada de
impropérios em línguas de idólatras.
Delaura brandiu o crucifixo,
aproximou-o da cara dela e gritou aterrado: — Sai daí, sejas tu
quem fores, besta dos infernos Seus gritos estimularam os da menina,
que estava a ponto de romper as fivelas das correias. A guardiã
acudiu assustada e forcejou para dominá-la, mas só Martina o
conseguiu com seus modos celestiais.
Delaura fugiu.
O bispo estava inquieto porque ele não
aparecera para a leitura do jantar. Ele sentiu que flutuava numa
nuvem pessoal, onde nada deste mundo ou do outro tinha importância,
a não ser a imagem apavorante de Sierva María aviltada pelo diabo.
Fugiu para a biblioteca mas não conseguiu ler. Rezou com a fé
exacerbada, cantou a canção da tiorba, chorou com lágrimas de óleo
ardente que lhe abrasavam as entranhas. Abriu a maleta de Sierva
María e pôs as coisas uma a uma em cima da mesa. Conheceu-as,
cheirou-as com um desejo ávido do corpo, amou-as e falou com elas em
hexâmetros obscenos, até que não pôde mais. Então desnudou o
torso, tirou da gaveta da mesa de trabalho a disciplina de ferro que
nunca ousara tocar e começou a flagelar-se com um ódio insaciável,
que não lhe daria trégua até extirpar de suas entranhas o último
vestígio de Sierva Maria.
O bispo, que tinha ficado à espera
dele, encontrou-o revolvendo-se num lamaçal de sangue e lágrimas.
— É o demônio, meu pai — disse
Delaura. — O mais terrível de todos.
Gabriel Garcia Márquez, em Do Amor e Outros Demônios

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