quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Do Amor e Outros Demônios – Capítulo Quatro





[…]


Mais uma vez, o bispo comprovou a facilidade do poder terrenal. Apontou Delaura com o indicador trêmulo, sem olhar para ele, e disse ao vice-rei: — Aqui quem está a par dessas novidades é o padre Cayetano.
O vice-rei seguiu a direção do indicador e topou com a fisionomia distante e os olhos atônitos que o fitavam sem pestanejar. Perguntou a Delaura com um interesse real: — Leste Leibniz? 
Sim, Excelência — disse Delaura, e acrescentou: — Pela natureza do meu cargo.
No final da visita, ficou evidente que o interesse maior do vice-rei era pela situação de Sierva María. Por ela própria, explicou, e pela paz da abadessa, cuja atribulação o comovera.
Ainda nos faltam provas cabais, mas as atas do convento atestam que essa pobre criança está possuída pelo demônio — disse o bispo. — A abadessa sabe melhor que nós.
Ela acha que caístes num ardil de Satanás — disse o vice-rei.
Não somente nós, mas toda a Espanha — disse o bispo. — Atravessamos o mar oceano para impor a lei de Cristo, e o conseguimos nas missas, nas procissões, nas festas dos patronos, mas não nas almas.
Falou de Yucatán, onde tinham construído catedrais suntuosas para esconder as pirâmides pagãs, sem perceber que os aborígines acudiam à missa porque debaixo dos altares de prata seus santuários continuavam vivos. Falou da mixórdia de sangue que tinham feito desde a conquista: sangue de espanhóis com sangue de índios, destes e daqueles com negros de toda laia, até mandingas muçulmanos, e perguntava se tal promiscuidade cabia no reino de Deus. Apesar da sua dificuldade de respirar e de sua tossezinha de velho, terminou sem conceder uma pausa ao vice-rei: — Que pode ser tudo isso senão armadilhas do Inimigo? O vice-rei estava alterado.
O desencanto de Vossa Senhoria Ilustríssima é de extrema gravidade — disse.
Não o veja assim Vossa Excelência — disse o bispo com muito bons modos. — Procuro tornar mais evidente a força da fé de que necessitamos para que esses povos sejam dignos de nosso sacrifício.
O vice-rei retomou o fio.
Até onde entendo, os reparos da abadessa são de caráter prático — disse. — Ela acha que talvez outros conventos tenham condições melhores para um caso tão difícil.
Pois saiba Vossa Excelência que escolhemos Santa Clara sem hesitação, dada a integridade, a eficiência e a autoridade de Josefa Miranda — disse o bispo. — E Deus sabe que estamos certos.
Permitir-me-ei transmitir essa sua opinião — disse o vice-rei.
Ela a conhece de sobra — disse o bispo. — O que me inquieta é por que não ousa aceitá-la.
Ao tomar a decisão, sentiu passar a aura de uma crise iminente de asma, e apressou o final da visita. Comunicou que tinha recebido um memorial com as reclamações da abadessa e que prometia resolvê-las com o mais ardente amor pastoral assim que a saúde lhe desse uma trégua. O vice-rei agradeceu e pôs termo à visita com uma cortesia pessoal. Também ele sofria de asma, e ofereceu seus médicos ao bispo. Este não achou necessário.
Tudo o que é meu está nas mãos de Deus disse. — Tenho a idade em que a Virgem morreu.
Ao contrário dos cumprimentos, a despedida foi lenta e cerimoniosa.
Três dos sacerdotes, entre os quais Delaura, acompanharam em silêncio o vice-rei pelos corredores soturnos até a porta principal.
A guarda do vice-rei mantinha afastados os mendigos com uma barreira de alabardas cruzadas. Antes de subir à carruagem, o vice-rei voltou-se para Delaura, apontou-lhe o seu indicador inapelável, e disse: — Não deixes que me esqueça de ti.
Foi uma frase tão imprevista e enigmática que Delaura só conseguiu responder com uma reverência.
O vice-rei foi até o convento para informar a abadessa sobre os resultados da visita. Horas depois, já com o pé no estribo, e apesar da pressão da vice-rainha, negou o indulto a Martina Laborde, porque lhe pareceu um mau precedente para os muitos réus de lesa-majestade humana que encontrou nas enxovias.
O bispo permanecera inclinado para a frente, tentando conter os assobios de sua respiração, com os olhos fechados, até que Delaura voltou.
Os ajudantes já se haviam retirado pé ante pé, e a sala estava na penumbra. Olhando ao redor, o bispo viu as cadeiras vazias alinhadas contra as paredes e Cayetano sozinho na sala. Perguntou-lhe com voz sumida: — Já vimos um homem tão bom? Delaura respondeu com um gesto ambíguo. O bispo se ajeitou com um movimento difícil e continuou apoiado no braço da poltrona até dominar a respiração. Não quis jantar. Delaura apressou-se a acender um candeeiro para iluminar o caminho até o quarto.
Muito mal nos saímos com o vice-rei — disse o bispo.
Havia alguma razão para nos sairmos bem? — perguntou Delaura. — Não se bate à porta de um bispo sem um anúncio formal.
O bispo não estava de acordo e se explicou com grande vivacidade.
Minha porta é a porta da Igreja, e ele se comportou como um cristão dos antigos. O impertinente fui eu, por causa do meu mal de peito, e alguma coisa terei de fazer para me escusar.
Já na porta no quarto havia mudado de tom e de assunto, e despediu-se de Delaura, com uma palmadinha familiar no ombro.
Reza por mim esta noite — disse. — Temo que vá ser muito comprida.
De fato, sentiu-se morrer com a crise de asma que pressentira durante a visita. Como não fizessem efeito um vomitório de tártaro e outros paliativos extremos, tiveram que sangrá-lo às pressas. Ao amanhecer, já tinha recobrado o ânimo.
Cayetano, em vigília na biblioteca ao lado, não soube de nada.
Começava as rezas da manhã quando vieram anunciar que o bispo o esperava no quarto. Encontrou-o na cama, tomando uma xícara grande de chocolate, acompanhado de pão com queijo, respirando como um fole novo e de espírito exaltado. Bastou a Cayetano vê-lo para saber que suas decisões estavam tomadas.
Assim foi. Contrariando o pedido da abadessa, Sierva María ficava em Santa Clara, e o padre Cayetano Delaura continuava a cuidar dela com a plena confiança do bispo. Não estaria mais em regime carcerário, como até ali, e devia participar das facilidades gerais oferecidas à população do convento. O bispo levava em consideração as atas, mas a falta de rigor delas impedia a clareza do processo, de modo que o exorcista devia proceder segundo o seu próprio critério. Por último, determinou a Delaura que visitasse o marquês em seu nome, com poderes para resolver o que fosse necessário, até que ele tivesse tempo e saúde para atendê-lo em audiência.
Não haverá mais nenhuma instrução — disse o bispo para terminar — Que Deus te abençoe.
Cayetano foi ter ao convento com o coração batendo forte, mas não encontrou Sierva Maria em sua cela. Estava na sala de atos, coberta de jóias legítimas e com a cabeleira estendida a seus pés, posando com sua extraordinária dignidade de negra para um célebre retratista da comitiva do vice-rei. Tão admirável quanto sua beleza era a docilidade com que obedecia ao artista. Cayetano caiu em êxtase.
Sentado à sombra, e vendo-a sem ser visto, sobrou-lhe tempo para dissipar qualquer dúvida do coração.
À hora nona, o retrato estava terminado. O pintor examinou-o à distância, deu duas ou três pinceladas finais e antes de assinar pediu a Sierva María que o olhasse. Estava idêntica, de pé numa nuvem e no meio de uma corte de diabos submissos. Ela contemplou o retrato sem pressa e se reconheceu no esplendor dos seus anos. Por fim disse: — É como um espelho.
Até com os demônios? — perguntou o pintor.
Assim mesmo — disse ela.
Terminada a pose, Cayetano a acompanhou até a cela. Nunca a tinha visto andar; fazia-o com a mesma graça e facilidade com que dançava.
Nunca a tinha visto com outro traje que não fosse a bata de presa, e o vestido de rainha lhe dava uma idade e uma elegância que revelavam até que ponto já era mulher. Nunca tinham caminhado juntos, e era encantadora para ele a naturalidade com que se acompanhavam.
A cela estava diferente graças aos dons de persuasão dos vice-reis, que na visita de despedida tinham convencido a abadessa das boas razões do bispo. O colchão era novo, os lençóis de linho, e os travesseiros de penas, e se haviam posto utensílios para o asseio cotidiano e o banho de corpo. A luz do mar entrava pela janela sem cruzetas e resplandecia nas paredes recém-caiadas. Como a comida era a mesma da clausura, não foi mais necessário levar nada de fora, mas Delaura sempre conseguiu passar de contrabando algumas guloseimas dos portais. María quis partilhar a merenda, e Delaura aceitou um dos biscoitinhos que sustentavam o prestígio das clarissas. Enquanto comiam ela fez um comentário casual: — Conheci a neve.
Cayetano não se espantou. Em outra época tinham falado de um vice-rei que quis trazer a neve dos Pireneus, para que os aborígines a conhecessem, pois ignorava que a tínhamos quase dentro do mar, na Serra Nevada de Santa Marta. Talvez dom Rodrigo de Buen Lozano tivesse realizado a façanha com suas artes novidadeiras.
Não — disse a menina. — Foi num sonho.
Contou que estava defronte de uma janela e lá fora caía uma nevada forte, enquanto ela arrancava e comia uma por uma as uvas de um cacho no seu colo. Delaura teve um sobressalto de terror. Temendo a iminência da última resposta, perguntou: — E como acabou? — Tenho medo de contar — disse Sierva María.
Ele não precisou de mais. De olhos fechados, rezou por ela. Ao terminar, era outro.
Não te preocupes — disse. — Prometo que muito breve serás livre e feliz, por graça do Espírito Santo.
Bernarda não sabia até então que Sierva Maria estava no convento.
Soube quase por acaso, uma noite em que encontrou Dulce Olivia varrendo e arrumando a casa, e a confundiu com uma de suas alucinações. Em busca de alguma explicação racional, dedicou-se a revistar quarto por quarto, e no percurso se deu conta de que não via Sierva Maria há muito tempo. Caridad del Cobre lhe transmitiu o que sabia: "O senhor marquês avisou que ela ia para muito longe e que não a veríamos mais". Como a luz estava acesa no quarto do marido, Bernarda entrou sem bater.
Ele estava acordado na rede, em meio à fumaça da bosta que ardia a fogo lento para espantar os mosquitos. Viu a estranha mulher transfigurada pelo roupão de seda, e também pensou que se tratava de um fantasma, porque estava pálida e sinistra, e parecia vir de muito longe. Bernarda lhe perguntou por Sierva María.
Há dias que não está conosco — disse ele.
Ela o tomou no pior sentido, e para poder respirar teve que sentar na primeira poltrona que encontrou.
Quer dizer então que Abrenuncio fez o que era preciso fazer — disse.
O marquês se benzeu: — Deus nos livre! Contou a verdade. Teve o cuidado de explicar que não dissera nada antes porque quis tratá-la, conforme ela queria, como se tivesse morrido. Bernarda ouviu-o concentrada, com uma atenção que ele não merecera em doze anos de má vida comum.
Sabia que ia me custar a vida — disse marquês. — Mas em pagamento da vida dela.
Bernarda suspirou: — Quer dizer que agora nossa vergonha é de domínio público.
Viu nas pálpebras do marido o brilho de uma lágrima, e um tremor lhe subiu das entranhas. Dessa vez não era a morte, mas a certeza inelutável do que mais cedo ou mais tarde havia de acontecer. Não se enganou. O marquês levantou-se da rede com suas últimas forças, desabou diante dela e caiu num choro áspero de velho imprestável.
Bernarda capitulou sob o fogo das lágrimas de homem que molharam suas virilhas através da seda. Confessou, apesar de quanto odiava Sierva María, que era um alívio saber que estava viva.
Sempre entendi tudo, menos a morte — disse.
Tornou a fechar-se no quarto, a melaço e cacau, e quando saiu, duas semanas depois, era um cadáver ambulante. O marquês tinha notado desde muito cedo uns preparativos de viagem, mas não prestou muita atenção. Antes de o sol esquentar, viu Bernarda sair pelo portão do pátio numa mula mansa, seguida por uma outra com a bagagem. Muitas vezes saíra assim, sem arrieiros nem escravos, sem se despedir de ninguém nem dar qualquer explicação. Mas o marquês soube que daquela vez ia embora para nunca mais voltar, porque além dos baús de sempre levava duas bilhas cheias de ouro puro, que manteve enterradas debaixo da cama durante anos.
Jogado de qualquer maneira na rede, o marquês recaiu no pavor de que os escravos o esfaqueassem, e os proibiu de entrar na casa durante o dia. Assim, quando Cayetano Delaura foi visitá-lo Por ordem do bispo, teve que empurrar o portão e entrar sem licença, porque ninguém respondeu às batidas da aldraba. Os mastins se assanharam nos canis, mas o padre seguiu adiante. No pomar, com a chilaba, sarracena e o gorro toledano, o marquês fazia a sesta na rede, coberto de flores de laranjeira. Delaura o contemplou sem acordá-lo, e foi como se visse Sierva María decrepita e esmigalhada pela solidão. O marquês acordou e custou a reconhecê-lo por causa do pano no olho. Delaura, levantou a mão com os dedos esticados em sinal de paz.
Deus o guarde, senhor marquês — disse.
Como tem passado? — Assim, assim — disse o marquês. — Apodrecendo.
Afastou com mão vagarosa as teias de aranha da sesta e sentou-se na rede. Cayetano pediu desculpas por entrar sem ser convidado. O marquês explicou que ninguém fazia caso da aldraba porque se perdera o hábito das visitas. Delaura declarou em tom solene: — O senhor bispo, muito atarefado e sofrendo de asma, me manda aqui representando-o. — Cumprido o protocolo inicial, sentou-se junto à rede e foi ao assunto que lhe abrasava as entranhas. Quero informar-lhe que me foi confiada a saúde espiritual de sua filha.
O marquês agradeceu e quis saber como estava ela.
Bem — disse Delaura. — Mas quero ajudá-la a ficar melhor ainda.
Explicou o sentido e os métodos dos exorcismos. Falou do poder que Jesus deu a seus discípulos para expulsar dos corpos os espíritos imundos e curar enfermidades e fraquezas. Contou a lição evangélica de Legião e os dois mil porcos endemoninhados. Todavia, o mais importante era estabelecer se Sierva María estava de fato possessa. Ele não acreditava, mas precisava da ajuda do marquês para dissipar qualquer dúvida. Antes de mais nada, queria saber, segundo disse, como era a menina antes de ser internada no convento.
Não sei — disse o marquês. — Sinto que a conheço menos quanto mais a conheço.
Atormentava-o a culpa de a ter abandonado à própria sorte no pátio dos escravos. A isso atribuía seus silêncios que podiam durar meses, as explosões de violência irracional, a astúcia com que pendurando nos gatos a campainha que ela lhe prendia no pulso. A maior dificuldade para conhecê-la era o seu vício de mentir por prazer .
Como os negros — disse Delaura — Os negros mentem para nós, não entre eles — disse o marquês.
No quarto, Delaura separou com um simples olhar o que era o Profuso legado da avó e os objetos novos de Sierva María: as bonecas vivas, as dançarinas de corda, as caixas de música. Em cima da cama, tal como a arrumara o marquês, continuava a maleta com que a tinha levado ao convento. A tiorba coberta de poeira estava relegada a um canto. O marquês explicou que era um instrumento italiano caído em desuso, e exagerou a habilidade da filha no tocá-la. Começou a afiná-la Por distração e acabou tocando com boa memória, até cantando a canção que cantava com Sierva María.
Foi um instante revelador. A música disse a Delaura o que o marquês não conseguira dizer da filha. E este se comoveu tanto que não pôde terminar a canção. Suspirou: — Não imagina como ficava bem de chapéu.
Sua emoção contagiou Delaura.
Vejo que gosta muito dela — disse.
Não imagina quanto — disse o marquês. — Eu daria a alma para vê-la.
Mais uma vez Delaura sentiu que o Espírito Santo não saltava o mínimo detalhe.
Nada será mais fácil se pudermos demonstrar que não está possuída — disse.
Fale com Abrenuncio — disse o marquês. Desde o princípio afirmou que Sierva María está sã, mas só ele poderá lhe explicar.
Delaura se viu numa encruzilhada. Abrenuncio talvez lhe fosse providencial, mas falar com ele poderia trazer consequências indesejáveis. O marquês pareceu ler o seu pensamento.
É um grande homem — disse.
Delaura fez com a cabeça um gesto expressivo.
Conheço as regras do Santo Ofício — disse.
Qualquer sacrifício será pouco para recuperá-la — insistiu o marquês. E como Delaura não se manifestava, concluiu: — Peço-lhe pelo amor de Deus.
Delaura, com uma fenda no coração, disse: — Suplico-lhe que não me faça sofrer mais.
O marquês não insistiu. Apanhou a maletinha em cima da cama e pediu a Delaura que a levasse à filha.
Pelo menos vai ficar sabendo que penso nela.
Delaura precipitou-se sem se despedir. Embrulhou-se na capa., pois chovia a cântaros, e guardou debaixo a maleta. Custou a notar que sua voz interior ia repetindo versos soltos da canção da tiorba.
Começou a cantá-la, em voz alta, açoitado pela chuva, e a repetiu decorada até o final. No bairro dos artesãos, dobrou à esquerda da ermida, sempre cantando, e bateu na porta de Abrenuncio.
Ao fim de um longo silêncio, ouviram-se passos inseguros e a voz de sono: — Quem é? — A lei — disse Delaura Foi a única coisa que lhe veio à cabeça para não gritar o nome.
Abrenuncio abriu a porta acreditando que era mesmo gente do governo, e não o reconheceu. — Sou o bibliotecário da diocese — disse Delaura. O médico lhe abriu passagem passagem pelo vestíbulo mergulhado na penumbra e o ajudou a tirar a capa ensopada. No seu estilo próprio, Perguntou em latim: — Em que batalha perdeu esse olho? Delaura narrou em seu latim clássico o contratempo do eclipse e se estendeu em pormenores sobre a persistência do mal, embora o médico do bispo lhe tivesse assegurado que o parche era infalível Mas Abrenuncio só deu atenção à pureza do seu latim.
É de uma perfeição absoluta — disse, maravilhado. — De onde é o senhor? — De Ávila — disse Delaura.
Pois maior ainda é o mérito — disse Abrenuncio.
Fez o visitante tirar a batina e as sandálias, colocou-as para secar e pôs-lhe a sua capa de liberto por cima das calças amarfanhadas.
Depois tirou-lhe o tapa-olho e o jogou no caixote de lixo.
A única coisa ruim desse olho é que vê mais do que deve — disse.
Delaura estava pasmo com a quantidade de livros acumulados na sala.
Abrenuncio reparou, e levou-o à botica, onde havia muitos mais, em estantes que iam até o teto.
Espírito Santo! — exclamou Delaura. — Isto é a biblioteca de Petrarca.
Com uns duzentos livros mais — disse Abrenuncio. Deixou-o saciar a curiosidade. Havia exemplares únicos que na Espanha podiam dar prisão. Delaura os reconhecia e folheava, guloso, repondo-os nas estantes com dor na alma. Em posição privilegiada, com o eterno Fray Gerundio, encontrou Voltaire completo em francês e uma tradução para o latim das Cartas filosóficas.
Voltaire em latim é quase uma heresia— disse brincando.
Abrenuncio contou que a tradução era de um frade de Coimbra que se dava ao luxo de fazer livros raros para distração de peregrinos.
Enquanto Delaura o folheava, o médico perguntou se sabia francês.
Não falo, mas leio — disse Delaura em latim. E acrescentou sem falsos pudores: — E além disso, grego, inglês, italiano, português e um pouco de alemão.
Pergunto por causa do que comentou sobre Voltaire — disse Abrenuncio.
É uma prosa perfeita — E a que mais nos dói — disse Delaura— — Pena que seja de um francês.
O senhor diz isso por ser espanhol — disse Abrenuncio.
Na minha idade, e com tantos sangues cruzados, já não sei mais com certeza de onde sou disse Delaura. — Nem quem sou.
Ninguém sabe por estes reinos — disse Abrenuncio. — E creio que precisarão de séculos para saber.
Delaura conversava sem interromper o exame da biblioteca. De repente, como lhe acontecia com frequência, lembrou-se do livro que o diretor do seminário lhe tinha confiscado aos doze anos e do qual só recordava um episódio que tinha repetido ao longo de sua vida a quem pudesse ajudá-lo.
Lembra o título? — perguntou Abrenuncio.
Nunca soube — disse Delaura. — E daria qualquer coisa para saber como acaba.
Sem anunciar, o médico o pôs diante de um livro que ele reconheceu ao primeiro golpe de vista. Era uma antiga edição sevilhana dos quatro livros do Amadís de Gaula. Delaura, trêmulo, folheou-o e percebeu que estava à beira de renunciar a toda e qualquer salvação. Afinal se atreveu: — Sabe que este é um livro proibido? Como os melhores romances destes séculos — disse Abrenuncio. — Em lugar deles só se imprimem romances para homens doutos. Que leriam esses coitados de hoje se não lessem escondido os romances de cavalaria? — Há outros — disse Delaura — Cem exemplares da edição príncipe do Quixote foram lidos aqui no mesmo ano em que saíram.
Foram lidos, não — disse Abrenuncio. — Passaram pela alfândega a caminho dos diversos reinos.
Delaura não prestou atenção, porque tinha conseguido identificar o precioso exemplar do Amadís de Gaula.
Este livro desapareceu há nove anos do capítulo secreto de nossa biblioteca e nunca mais conseguimos encontrá-lo — disse.
Era de imaginar — disse Abrenuncio — Mas há outros motivos para considerá-lo, um exemplar histórico: durante mais de um ano circulou de mão em mão, pelo menos entre onze pessoas, e pelo menos três morreram— Tenho certeza de que foram vítimas de algum eflúvio desconhecido.
Meu dever seria denunciá-lo ao Santo ofício — disse Delaura.
Abrenuncio levou na brincadeira.
Terei dito uma heresia? — O caso é que tem aqui um livro proibido e alheio, e não denunciou.
— — Esse e muitos outros — disse Abrenuncio, assinalando com um amplo círculo do indicador suas prateleiras atulhadas. — Mas se fosse por isso, o senhor teria vindo há muito tempo e eu não lhe abriria a porta. — Voltou-se para ele e arrematou de bom humor: — Mas me alegra que tenha vindo agora, é um prazer vê-lo aqui.
Foi o marquês, ansioso pela sorte da filha, quem me sugeriu que viesse — disse Delaura.
Abrenuncio o fez sentar diante dele, e os dois se entregaram ao vício da conversação, enquanto uma tempestade apocalíptica convulsionava o mar. O médico fez uma exposição erudita e inteligente sobre a raiva desde a origem da humanidade, sobre seus estragos impunes e a incapacidade milenar da ciência médica para impedi-los. Deu exemplos lamentáveis de como sempre fora confundida com a possessão demoníaca, assim como certas formas de loucura e outras perturbações do espírito. Quanto a Sierva María, depois de tantas semanas, não parecia provável que a contraísse. O único perigo, concluiu Abrenuncio, era que morresse, como tantos outros, em consequência da crueldade dos exorcismos.
A última frase pareceu a Delaura um exagero próprio da medicina medieval, mas ele não discutiu, porque servia bem à sua argumentação teológica de que a menina não estava possuída.
Disse que os três idiomas africanos de Sierva María tão diferentes do espanhol e do português, não tinham de modo algum a carga satânica que lhes atribuíam no convento. Havia numerosos testemunhos de que era dotada de uma força física incomum, mas nenhum de que se tratasse de um poder sobrenatural. Também não se comprovara qualquer ato seu de levitação ou adivinhação do futuro, dois fenômenos que por certo serviam também como provas secundárias de santidade.
Contudo, Delaura tinha procurado o apoio de confrades insignes, até mesmo de outras comunidades, e nenhum ousara pronunciar-se contra as atas do convento nem contrariar a credulidade popular. Mas tinha consciência de que nem os seus critérios nem os de Abrenuncio convenceriam a quem quer que fosse, e muito menos os dois juntos.
Seríamos o senhor e eu contra todos — disse.
Por isso me surpreendeu que viesse — disse Abrenuncio. — Não sou mais que uma peça cobiçada no território de caça do Santo Ofício.
A verdade é que nem sei ao certo por que vim — disse Delaura. — A não ser que essa menina me tenha sido imposta pelo Espírito Santo para pôr a prova minha fé.
Bastou dizê-lo para se libertar do nó de suspiros que o oprimia.
Abrenuncio olhou-o nos olhos, até o fundo da alma, e percebeu que estava quase a chorar.
Não se atormente à toa — disse em tom tranquilizador. — Talvez só tenha vindo porque precisava falar nela.
Delaura sentiu-se nu. Levantou-se, procurou o rumo da porta e só não fugiu em disparada porque estava meio despido. Abrenuncio o ajudou a vestir a roupa ainda molhada, enquanto tratava de fazê-lo ficar para continuar a conversa.
Com o senhor, conversaria sem parar até o próximo século — disse.
Procurou retê-lo com um vidrinho de um colírio transparente para curar a persistência do eclipse no olho. Fê-lo voltar da porta para buscar a maleta que ficara esquecida em algum lugar da casa. Mas Delaura parecia tomado de uma dor mortal. Agradeceu a tarde, o auxilio médico, o colírio, mas a única concessão que fez foi a promessa de voltar outro dia com mais tempo.
Não aguentava mais a vontade de ver Sierva María. Mal notou, na porta, que já era noite fechada. Tinha estiado, mas os canais transbordavam devido ao aguaceiro, e Delaura foi caminhando pelo meio da rua com água pelos joelhos. A porteira do convento quis barrar-lhe a passagem por causa da proximidade do toque de recolher. Ele a empurrou para um lado: — Ordens do senhor bispo.
Sierva Maria acordou assustada e não o reconheceu no escuro. Ele não soube explicar por que ia numa hora tão incomum e lançou mão do pretexto: — Teu pai quer te ver.
A menina reconheceu a maletinha, e seu rosto se incendiou de fúria.
Mas eu não quero — disse.
Desconcertado, ele perguntou por quê.
Porque não — disse ela. — Prefiro morrer.
Ele tentou tirar a correia do seu tornozelo esquerdo são, achando que a agradava.
Deixe-me — disse ela. — Não me toque.
Delaura não ligou e ela soltou-lhe uma série de cusparadas na cara.
Ele se manteve firme e lhe ofereceu a outra face. Sierva María continuou a cuspir. Ele tornou a mudar a face, embriagado pela onda de prazer proibido que lhe subiu das entranhas. Cerrou os olhos e rezou com a alma enquanto ela continuava a cuspir, tanto mais feroz quanto mais ele gozava, até que se deu conta da inutilidade de sua raiva. Então Delaura assistiu ao espetáculo pavoroso de uma verdadeira energúmena. A cabeleira de Sierva María se encrespou com vida própria, como as serpentes da Medusa, e de sua boca saiu uma baba verde, uma saraivada de impropérios em línguas de idólatras.
Delaura brandiu o crucifixo, aproximou-o da cara dela e gritou aterrado: — Sai daí, sejas tu quem fores, besta dos infernos Seus gritos estimularam os da menina, que estava a ponto de romper as fivelas das correias. A guardiã acudiu assustada e forcejou para dominá-la, mas só Martina o conseguiu com seus modos celestiais.
Delaura fugiu.
O bispo estava inquieto porque ele não aparecera para a leitura do jantar. Ele sentiu que flutuava numa nuvem pessoal, onde nada deste mundo ou do outro tinha importância, a não ser a imagem apavorante de Sierva María aviltada pelo diabo. Fugiu para a biblioteca mas não conseguiu ler. Rezou com a fé exacerbada, cantou a canção da tiorba, chorou com lágrimas de óleo ardente que lhe abrasavam as entranhas. Abriu a maleta de Sierva María e pôs as coisas uma a uma em cima da mesa. Conheceu-as, cheirou-as com um desejo ávido do corpo, amou-as e falou com elas em hexâmetros obscenos, até que não pôde mais. Então desnudou o torso, tirou da gaveta da mesa de trabalho a disciplina de ferro que nunca ousara tocar e começou a flagelar-se com um ódio insaciável, que não lhe daria trégua até extirpar de suas entranhas o último vestígio de Sierva Maria.
O bispo, que tinha ficado à espera dele, encontrou-o revolvendo-se num lamaçal de sangue e lágrimas.
É o demônio, meu pai — disse Delaura. — O mais terrível de todos.

Gabriel Garcia Márquez, em Do Amor e Outros Demônios

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