segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Capítulo 7 — A Irmandade



Uma família feliz não é nada além de um paraíso antecipado.
GEORGE BERNARD SHAW

Minhas irmãs se tornaram meu exército. Estávamos todas em uma guerra, lutando por propósito. Cada uma de nós era um soldado lutando por nosso valor. Estávamos juntas naquilo; precisávamos umas das outras. Nenhuma de nós conseguia lutar sozinha. Sei que eu não tinha força para isso. Estávamos travando uma guerra com inimigos visíveis e invisíveis. Mesmo assim, nosso comprometimento era com o todo. Criamos uma cultura de “juntas ou nada”. Às vezes, nos separávamos e algumas de nós ficavam no campo de batalha, intactas, mas com alguma coisa faltando. Quando crianças, porém, estávamos juntas naquela missão: Dianne; a mais velha; Anita, um ano mais nova; Deloris, dois anos mais nova; e eu, três anos mais nova. Queríamos uma saída e nossos laços de irmandade nos ajudaram a trilhar um caminho. Dianne era o cérebro. Anita os músculos. Deloris a cabeça. E eu? Eu era aquela que podia colocar todo o time para baixo ou para cima milagrosamente no último minuto.
Fomos transformadas pela Srta. Tyson. Depois, ganhar aquele concurso com a nossa esquete mudou nossa vida porque o exército de irmãs se tornou uma materialização de como venceríamos a guerra.
O taco do kit de softball, o taco vermelho que ganhamos, se tornou um pegador de ratos, uma ferramenta em nosso arsenal.
Os ratos sempre saíam do nada. Você podia estar sentado vendo TV, assistindo ao seu programa preferido, e de repente um rato pulava no sofá. Ou saía de um buraco na parede e em um segundo estava debaixo do sofá.
Quando víamos um deles, dizíamos a Anita: “Vi um rato!” Quando ela o via, pegava o prêmio que ganhamos, o taco vermelho. Ficávamos atrás dela, agarrando-a. Dianne dizia: “Foi para debaixo… foi para debaixo dali. Pega ele. Pega ele. Pega ele.”
Ficávamos quietinhas, esperando que o rato parasse de se mexer. Víamos o rabo, embaixo do sofá. Anita esperava. Ela, que a propósito se tornou uma estrela do softball, batia no tempo perfeito. Bam! Chegava a arrancar o rabo do bicho. Mas não o matava. Só arrancava o rabo.
O taco que ganhamos se mostrou útil mais uma vez um dia em que MaMama estava dormindo à tarde, de boca aberta, em um fim de semana. Sem medo de nosso gato preto, Boots, o maior rato que já tínhamos visto estava na fronha do travesseiro de MaMama, aos poucos se aproximando dela.
Contamos a Anita:
Tem um rato. Ele está prestes a matar a MaMama… Vai morder o pescoço dela!
Anita pegou o taco e, de novo, estávamos atrás dela, nos segurando nela, enquanto o rato sorrateiramente se aproximava da boca aberta de MaMama. Por que não gritamos “MaMama! Acorde!” para fazer o rato pular da cama e correr? Não sei. Boots pulou no travesseiro, miou com agressividade e o rato disparou para dentro do armário e se escondeu entre o monte de roupas.
Mamãe acordou assustada.
O rato está em algum lugar no meio das roupas! — gritamos.
Estava entre os casacos ou escondido nos vestidos? Tentávamos descobrir, espiando atrás de Anita para ver o rabo, já balançando o taco vermelho.
Acho que está bem ali — disse MaMama.
Pega ele, Anita, porque está em algum lugar no meio daquelas roupas — dissemos.
Anita mirou perfeitamente. Ela fez o movimento no tempo correto, da mesma forma que faria mais tarde jogando softball. E com toda a força que conseguiu, desceu o taco vermelho e esmagou o rato como se fosse uma panqueca.
A incrível memória da vitória naquele concurso — minha estreia na atuação, que me iniciou na jornada para me tornar atriz — é acompanhada por lembranças daquele taco vermelho de plástico e sua utilidade como matador de ratos. Ratos são uma parte significativa da lembrança daquela vitória. Até hoje, morro de medo deles.
Nossos anos de juventude tiveram algumas boas memórias. Felicidade para mim era o Dia dos Namorados. Meu pai sabia como celebrar o Dia dos Namorados e outras datas comemorativas. Ele comprava muito chocolate, acredite ou não; para a Páscoa, ele trazia ovos de chocolate e nos dava cartões. No Natal, principalmente quando éramos mais jovens, por volta de 11 ou 12 anos, não havia muitos presentes. Mas mesmo assim, tínhamos uma árvore de Natal, e meu pai era o bêbado alegre tocando violão.
Eu tinha 7 ou 8 anos quando meu pai comprou uma mesa de sinuca pra gente. Era uma mesa grande. Ele a comprou porque gostava de jogar no bar. Eu amava jogar. Depois de um tempo a mesa quebrou, e não compramos outra. Mas às vezes íamos ao bar — na época em que pais podiam levar crianças a bares —, jogávamos dardos e sinuca e comíamos salgadinhos bebendo Sprite.
Essas memórias felizes logo seriam seguidas por traumas — a raiva do meu pai em seus ataques quando estava alcoolizado, violência, pobreza, fome e exclusão. Na minha mente de criança, eu era o problema. Eu me recolhia ao banheiro, apoiava algo contra a porta para que ninguém entrasse e me sentava por muito tempo olhando para os meus dedos e mãos, tentando apagar tudo aquilo da mente. Queria poder sair do meu corpo. Sair dali.
Uma vez, quando tinha mais ou menos 9 anos, consegui. Eu saí; isto é, saí do meu corpo, por assim dizer. Flutuei até o teto, olhei para baixo, para mim, vi meu cabelo, minhas pernas e meu rosto. Então me encarei, diretamente para dentro de mim. Nossa! Eu amei aquilo. Era um poder secreto e mágico, mas não me vi como mágica ou poderosa. Só me senti livre. Era a minha forma de desaparecer. Era a minha onda. Eu nem sempre conseguia controlar a sensação de estar fora do corpo, mas quando conseguia, era algo muito além de fantástico. O poder de sair do meu corpo, de deixar de ser Viola por um tempo, foi uma imagem que esteve comigo por décadas.
Mas nunca gostei de como terminava. Essas experiências fora do corpo sempre pareciam terminar de forma abrupta. Eu caía de uma vez — como nos filmes, quando alguém tinha poderes telecinéticos e erguia um objeto, mas não conseguia mais se concentrar, então a coisa caía. Eu estava fora do meu corpo e, de repente, de volta nele. Tentava compartimentalizar, me desviar daquelas emoções pesadas, até não conseguir mais. O poder era temporário.
Mesmo hoje, Deloris e eu sonhamos com o 128. O prédio criou um pano de fundo para as conexões de irmandade. O 128 foi como um útero para a nossa irmandade. À noite, nós, as irmãs, nos encolhíamos no beliche de cima para nos aquecer, horrorizadas com os sons dos roedores comendo pombos no telhado, comendo nossos brinquedos, guinchando, quando sentíamos o peso do corpo deles enquanto pulavam em nossa cama, procurando o que comer. Enrolávamos lençóis no pescoço para nos proteger de mordidas.
Ir ao banheiro à noite no meio disso não era uma opção. Ligar as luzes e observá-los sair correndo não era uma opção, porque não havia luz na parte do apartamento onde dormíamos. O banheiro ficava distante, do outro lado do apartamento, e poderia muito bem ser do outro lado do mundo. Se não tivéssemos ido antes de deitar, fazer aquela jornada no meio da noite não era uma opção. Então fazíamos xixi na cama.
Dormíamos para esquecer nossos problemas. Quando meu pai estava bêbado ou havia alguma briga, minha irmã Deloris e eu desaparecíamos no quarto e nos tornávamos “Jaja” e “Jagi”, matronas ricas e brancas de Beverly Hills, com joias enormes e chihuahuas pequeninos. Brincávamos assim por horas.
Caramba, Jaja — dizia Jagi. — Comprei esta casa fabulosa e meu marido me deu este lindo anel de diamantes.
Brincávamos, com tantos detalhes que se tornou algo transcendente.
Brincávamos enquanto ao fundo minha mãe apanhava e gritava de dor. Mas acreditávamos que estávamos naquele mundo até Deloris quebrar o feitiço dizendo:
Você não é Jaja. Você é pobre. Recebe auxílio do governo. Você não tem diamantes.
Brigávamos e o faz de conta acabava — até acontecer outra confusão na família. Era nossa válvula de escape. Nos transformávamos em pessoas que pensávamos ser “melhores”. Pessoas que existiam em um mundo com o qual apenas sonhávamos; mulheres que não éramos. Brincávamos por diversão e por desespero. Jaja e Jagi eram nossa proteção de faz de conta.
A maior parte das minhas memórias mais alegres são do meu relacionamento com minhas irmãs. Sonhamos juntas com muita determinação. Começamos uma banda chamada Hot Shots. Queríamos ser os Jackson 5. Nunca chegamos a escrever uma canção nem tocamos instrumentos. Não tínhamos dinheiro para fazer aulas de música. Mas o que nos faltava em habilidade compensávamos com garra e imaginação. Deloris ficava na bateria. Dianne era a cantora principal. Eu tocava tamborim, e Anita, violão. Podíamos fingir e escapar para a nossa imaginação.
Éramos fascinadas por fogos de artifício. Um dia, compramos bombinhas. Ter o dinheiro para comprá-las foi um grande feito. Compramos em uma das lojas da esquina. Por motivos dos quais não me lembro, decidimos acender uma bombinha na cozinha do 128 e jogá-la pela janela. Fiquei responsável por segurar a bombinha. Paralisei, ou, como dizem, “amarelei”.
Minhas irmãs gritaram para que eu jogasse, mas não consegui me mexer. A bombinha explodiu na minha mão! Ela ficou totalmente dormente! Imagine um desenho do Looney Tunes em que eu perco minha audição e fumaça sai do meu nariz e das minhas orelhas. Como o Coyote, fiquei de pé com a bombinha explodida na mão. Minha boca escancarada. Vi os lábios das minhas irmãs dizendo as palavras, mas não consegui ouvir: “Viola, você está bem?”; “Sua burra! Te falei para jogar.” Então comecei a chorar. Estou surda! Ai, meuDeus!
Minha audição voltou.
Minhas irmãs e eu seguimos explorando nosso mundo. Continua­mos a descobri-lo sozinhas na ausência dos nossos pais. Eles tentavam simplesmente nos manter vivas da única maneira que sabiam. Controlavam o que podiam e introduziam esforço, alegria e esperança em pequenas doses. Por exemplo, recebíamos roupas novas pelo menos uma vez por ano, na Páscoa. Apesar das camas mijadas, de quase nunca ter roupas limpas, dos ratos pulando na nossa cama à noite, da mobília quebrada, da insegurança alimentar, do encanamento ruim, da falta de telefone, todos recebíamos uma roupa novinha. A potência e o poder da tradição são coisas profundas.
Minha mãe usava pentes quentes no cabelo — um ferro para enrolar e um pente para alisar que eram aquecidos no fogão. Com pomada Blue Magic, ela alisava e fazia cachos nos nossos cabelos para a Páscoa. Na minha opinião, era um ritual sádico. Ela batia na gente e gritava — “Sossega o facho ou vou te queimar” — se nos encolhêssemos. Quando aquele pente quente atingia uma mecha de cabelo oleosa, que chiava e caía na orelha ou no rosto, era impossívelnão se encolher. Às vezes, ela se distraía com a conversa e deixava o pente e o ferro no fogo por tempo demais. Esses ferros superquentes esturricavam nosso cabelo. “Sossega o facho!”
No fim, ficávamos tão adoráveis em nossos vestidos longos e sapatos novos, mas, caramba, como parecíamos ensebadas. Mas não ligávamos! Nós amávamos. Nossos pais nos davam doce, algum dinheiro, e ficávamos no pátio esperando alguém passar para ver como estávamos engraçadinhas. Por fim, Dianne veio com a ideia de ir à igreja. Ela disse que era o que faziam no sul. As únicas igrejas em Central Falls eram católicas. Reunimos coragem para ir, já que a maioria das pessoas que conhecíamos na cidade eram católicas.
Fomos à Holy Trinity Church e nos sentamos no fundo. Desde o momento em que pisamos na igreja, todos os olhares se voltaram para nós. Pensei que todos estavam hipnotizados pela nossa fofura. Fingimos saber ou tentamos aprender a letra das músicas e as diferentes respostas. Então, incentivadas por Dianne, fomos à Comunhão.
É só dizer “amém” quando ele colocar o pão na sua boca.
Fiquei animada com a possibilidade de receber um pedacinho de pão. Quando chegou a hora de pegar o corpo de Cristo, o padre se inclinou e sussurrou:
Você é católica?
Dianne, com a mão ainda aberta, pronta, balançou a cabeça e respondeu, sincera:
Não.
Ele fez um gesto para que saíssemos. Então percebi por que nos encararam tanto.
Depois disso, pegamos nosso dinheiro da Páscoa e fomos ao cinema Leroy Theatre para assistir a uma sessão dupla e comer cachorro-quente ou M&M’s de embalagens grandes. Setenta e cinco centavos para uma sessão dupla e trinta e cinco centavos por uma embalagem grande de M&M’s.
O outro feriado era Halloween. Nós éramos as primeiras na rua atrás de doces ou travessuras, e as últimas a voltar para casa. O objetivo era conseguir o máximo de doces possível. Enchíamos uma sacola e saíamos com outra. Nunca tínhamos fantasias, então colocávamos a maquiagem da minha mãe no nariz, na testa, nas bochechas e pronto. Não havia dinheiro para mais nada.
Em um ano, decidimos sair antes que escurecesse. Corremos para fora com nossas fronhas e sacolas de papel. Foi a melhor ideia porque éramos as únicas crianças lá fora. Não vimos mais ninguém! Absolutamente ninguém. Íamos conseguir os melhores doces por sermos os primeiros. Batemos na primeira porta. Eram pais com três filhos.
Doces ou travessuras! — gritamos.
O homem pareceu totalmente assustado e desatou a rir.
O Halloween é amanhã! Vocês vieram cedo demais!
A esposa e os filhos dele foram até a porta e começaram a rir de nós descontroladamente. Fugimos correndo e não paramos até chegar em casa.
Algumas batalhas nós ganhamos: sobrevivemos juntas e emergimos com risadas e alguma perspectiva; e outras brutais, como abuso sexual, nós perdemos.
Naquela época, abuso sexual não tinha nome. Os abusadores eram chamados de “velhos safados” e as vítimas eram chamadas de “fáceis” ou “piranhas”. Era algo coberto de silêncio, trauma invisível e vergonha. É difícil entender como era comum. O que nos tornava passivas era nossa falta de supervisão e de conhecimento. Eram tempos diferentes.
O abuso ia de velhos aleatórios na rua dizendo para nós, em especial para mim, porque era a mais nova, como éramos adoráveis. Até que ouvi: “Te dou 25 centavos se você me der um beijo.” Eu queria o dinheiro. Aceitei, dei ao homem de bengala um beijo na bochecha. Ele continuou ali. Me encarando. Esperando algo mais. Eu olhei ao redor desconfiada até que algo me disse para correr.
Uma vez, uma festa de aniversário na casa de um amigo estava lotada de pessoas bêbadas. A casa tinha uma varanda nos fundos que levava para o telhado da garagem. Era um ótimo espaço para brincar quando criança, e foi o que fizemos naquele dia. Um dos homens da festa fingia correr atrás de nós entre um drinque e outro. E nós corríamos, rindo. Ele nos perseguia até quase nos encurralar, mas todas as crianças conseguiam escapar, desviar ao redor dele. Exceto eu. Fiquei paralisada e ele me agarrou.
Todas as crianças estavam apontando, rindo por eu ter sido pega. Ele me agarrou e disse: “Você é tão engraçadinha e bonita…”
E então começou a erguer minha saia, puxou de lado a minha calcinha para expor minhas nádegas, e começou a massagear fazendo sons sexuais. As crianças gritaram assustadas e correram. Eu me encolhi, dei socos até ele me soltar e corri. As outras crianças me provocaram: “Rá! Rá! Você foi pega! Aquilo foi horrível!” Fiquei completamente arrasada. Para piorar tudo e tornar as coisas ainda mais confusas, eu estava sendo humilhada, e não o homem que me apalpou na frente de todo mundo. Eu só tinha 8 anos, mas me senti suja, devastada. Ainda mais traiçoeiramente doloroso foi que eu fiquei envergonhada por me sentir assim, não só pelo que aconteceu. Pense nisso por um momento: estava envergonhada de mim mesma por me sentir violada por um agressor pervertido e adulto. Eu estava sozinha na festa. Sozinha. Abandonada para me virar e navegar por conta própria as águas infestadas de tubarões.
Éramos deixadas com garotos mais velhos, vizinhos que ficavam “de babá” e abriam o cinto da calça enquanto brincavam de cavalinho conosco. Minhas três irmãs e eu (Danielle ainda não tinha nascido) por vezes éramos deixadas sem supervisão com meu irmão em nosso apartamento — a curiosidade sexual passava dos limites. Ele corria atrás de nós. Perdíamos. E por fim outro comportamento inapropriado com um efeito profundo ocorria. Compartimentalizei grande parte disso na época. Guardei em um lugar em minha psique que parecia seguramente escondido. Ao esconder, podia fingir que nada tinha acontecido. Mas aconteceu!
De novo, mais segredos. Camadas sobre camadas de segredos sombrios. Trauma, merda, mijo e argamassa misturados com memórias que foram filtradas, editadas pelo bem da minha sobrevivência e emaranhadas com segredos geracionais. Enterrada em algum lugar embaixo de todo aquele lixo, eu vivo — o meu eu que luta para respirar, que quer tanto se sentir vivo.
Mas essa é a jornada!A única arma que tenho para superar tudo é o perdão. É desistir de toda a esperança de um passado diferente.
Minha mãe tem hoje 78 anos, e a memória dela aos poucos está começando a falhar. Enquanto a observo agora, tento desesperadamente me agarrar a cada restinho de tempo que ainda temos juntas. Estou tentando tirar todos os segredos e barreiras do caminho, quaisquer barreiras que possam existir entre nós.
Um dia, tomando chá verde e comendo torrada, nos sentamos e conversamos sobre memórias e a minha infância em Central Falls. Conforme falávamos, um nó no meu estômago cresceu e se mostrou. Era aquele sentimento familiar que tenho antes de fazer algo arriscado ou que me deixa desconfortável, como quando estou em um ambiente social onde sinto que não me encaixo. Mas daquela vez segui em frente assim mesmo. Fui fundo. Canalizei minha raiva, minha mágoa e contei a ela sobre a dolorosa lembrança. “Deloris, Anita, Dianne e eu fomos abusadas sexualmente”, contei a ela enquanto dizia o nome do meu irmão no mesmo fôlego. “Ele nos perseguia no apartamento. Era agressivo. Tínhamos medo. Éramos tão novas, mãe! Houve penetração com Anita e Dianne. Deloris e eu fomos tocadas.”
Silêncio. Ela não se mexeu. É irônico que ela estivesse sentada na minha linda cozinha de mármore e porcelana, com a geladeira chique e pé-direito alto, e isso não significava porra nenhuma comparado à grandeza da verdade do que estava acontecendo. O sucesso não é nada comparado à cura. Não apenas a verdade do abuso, mas a decisão de amar, de perdoar… a reação que eu sabia que seria… silêncio.
Silêncio.
Silêncio pesado. O silêncio que se tornou choque, mágoa, culpa, reconhecimento do próprio abuso sofrido por ela. O desespero silencioso de tentar negociar a complexidade de ser mãe. O único sinal de que algo mudara nela foi sua torrada intocada.
Houve outros tipos de incidentes que experimentamos enquanto irmandade.
Tentávamos fazer balas de caramelo no fogão enquanto meus pais estavam fora, talvez no bar local, embora minha mãe não bebesse, ou talvez minha mãe estivesse no bingo e meu pai no trabalho. Bala de caramelo era uma tradição do interior que Dianne nos ensinou. Coloca-se uma quantidade absurda de banha em uma panela e açúcar suficiente para deixar todas as crianças de uma escola diabéticas, e deixa-se a mistura em fogo alto. Caramelizando.
Então, apaga-se o fogo para que aquilo esfrie, endureça e vire uma bala. Testávamos tudo relativo a comida. Estávamos sempre, sempre com fome. Nesse dia, deixamos a banha no fogo por tempo demais e ela espirrou por todo o rosto de Anita. Ela gritou! Nós gritamos! Dianne pegou um pano de prato e se limpou. Uma camada de pele saiu junto. Ela agarrou o casaco e saiu correndo para buscar minha mãe. Acabou na emergência, com enormes bolhas no rosto.
Havia também a nossa silenciosa competição sobre quem molhava mais a cama e quem pararia primeiro.
Meu irmão, fingindo ser Bruce Lee, atirou uma faca de açougueiro em Anita. Milagrosamente, não atingiu nenhum órgão dela, mas cravou bem na perna.
Outra vez meus pais começaram uma briga enquanto minha mãe estava arrumando o cabelo de Dianne. Meu pai ficou tão bravo e fora de controle que jogou um copo na minha mãe, que acabou atingindo Dianne na cabeça, causando um ferimento. Sangue espirrou.
Quando lembro as coisas que vi, me impressiono com o que o corpo humano consegue aguentar.
Não há páginas suficientes para mencionar as brigas, ser constantemente acordada no meio da noite ou voltar para casa depois da escola para encontrar meu pai enfurecido e rezar para que ele não perdesse o controle e matasse minha mãe. Às vezes, a cabeça ou o braço dela tinha cortes. O rosto dela inchado, o lábio cortado. Eu sempre ficava com medo quando ele pegava qualquer objeto, como um pedaço de madeira, porque batia nela com a maior força que conseguia e continuava batendo. Às vezes a noite toda. Tantas vezes vimos uma trilha de gotas de sangue levando até o nosso apartamento, e já sabíamos o que estava acontecendo. Eram caos, violência, raiva e pobreza misturados à vergonha.
Uma noite, meu pai chegou em casa muito bêbado. Ele ficou dizendo:
Mae Alice, estou morrendo. Não vou passar de hoje! Acorde as crianças!
Minha mãe, chorando, acordou todos nós. Estávamos exaustos e nos sentamos no quarto deles tentando não adormecer. Meu pai estava no chão, bêbado e vomitando um líquido transparente. Minha mãe segurava a cabeça dele, aos prantos.
Crianças! Seu papai está morrendo — gemia ele. — Não vou estar aqui por muito mais tempo. Quero me despedir de vocês.
Comecei a chorar. Eu era a “bebê chorona”. Minhas irmãs estavam imóveis. Meu pai foi se despedindo de cada uma.
Deloris, você é inteligente. Você vai se sair bem, mas precisa parar de roubar as coisas das suas irmãs e vender na escola. Não pense que não sei o que está fazendo.
Deloris chorou um pouco.
Dianne, tome conta das suas irmãs. Vahla, você é o meu bebê. Você sabe que o papai te ama, mas precisa parar de mijar na cama e deixar a casa toda fedida! Nita, não sei que diabos fazer com você. Você mija na cama, rouba, briga com os outros… AAAAAhhhh!
Ele convulsionou, vomitou e ficou gelado. Meu pai parou de se mexer.
Eu gritei:
Papai! Não! Não morra, papai!
E então ele despertou.
Eu amo vocês.
Minha mãe olhou para nós e disse:
Voltem para a cama.
Havia brigas o tempo todo. Depois de cada uma delas havia uma realidade que se assomava. Como vamos superar agora? A única esperança era que essas brigas fossem pequenos traumas, não um grande trauma. No início dos anos 1970, minha irmã Anita ficou cara a cara com um grande trauma.
Começou como um dia de verão normal e tranquilo, e minha família e nossos vizinhos, os Owens, estavam sentados na varanda conversando. Isso aconteceu no 128. Os Owens moravam no apartamento que acabaria sendo ocupado por nós quando eles se mudassem. Eles eram uma família grande como a nossa. Éramos muito próximos e brincávamos juntos o tempo todo. Enquanto os adultos aproveitavam a paz da varanda, nós, crianças, estávamos correndo dentro de casa, vez ou outra colocando a cabeça para fora. Enquanto nos divertíamos sem nenhuma preocupação, a Sra. Owens e minha mãe disseram de repente:
Olha o monstro! Meu Deus! O que ele está fazendo?
É lógico que corremos lá fora para ver.
Olha! Ele correu para o quintal — exclamamos animados, totalmente ignorantes sobre onde aquela jornada aparentemente inocente nos levaria.
Enquanto corríamos para ver o monstro no quintal, nossos pais gritaram atrás de nós:
Não cheguem perto desse homem!
Nós o vimos: um homem sem sapatos no meio do quintal, usando jeans rasgados na perna e uma camisa abotoada de qualquer jeito. Ele estava de pé, se balançando para a frente e para trás, para a frente e para trás, gemendo. Os olhos dele não nos identificaram mesmo olhando em nossa direção. Nossos pais não estavam brincando. Se ele não era um monstro, certamente faria esse papel até que algum de verdade aparecesse.
Gritamos para ele:
Olhe pra gente! Iuuuh-huuu! Olhe, monstro! Estamos aqui!
Sentíamos pavor, mas em nossa cabeça estávamos disfarçando perfeitamente com nossas provocações. De repente, um gato de rua que tínhamos adotado não oficialmente foi andando na direção do homem.
Nós gritamos:
Gato! — Ainda não tínhamos dado um nome ao danado. — Gato! Saia de perto dele!
Gritamos muito alto, esperando assustar o gato para que ele fugisse. Com certeza não tínhamos coragem de correr para perto do monstro e pegar o gato. Então continuamos gritando para o gato e para o homem não pegar nosso quase animal de estimação.
De repente, a entidade balançante que mais parecia um vilão de filme de terror pegou o gato pelo pescoço. Gritamos mais alto. Se ele estava nos ouvindo, não sabíamos, porque não respondeu. Em vez disso, ele olhou para o gato, acariciou-o quase com ternura, e então com toda a calma quebrou o pescoço do bichano.
O sangue escorreu da boca do felino morto. Sua cabeça ficou pendurada, embora parecesse que ainda tentava resistir. O homem segurou o gato ensanguentado no ar, deixou o sangue dele pingar em seu rosto e lambeu. Ele jogou o corpo do gato no chão e espalhou o sangue no rosto, como se fosse uma pintura ritualística de guerra.
Ficamos paralisados. Sem acreditar no que víamos. Traumatizados.
De repente, como se um interruptor fosse acionado, o homem se deu conta da presença de seus caçadores infantis, grunhiu e voou em nossa direção. Corremos para dentro do prédio como animais sendo caçados, agarrando uns aos outros, tropeçando, chorando. Chegamos às escadas. Quando olhamos ao redor, sem fôlego, aos prantos, nos demos conta de que Anita não estava ali.
Chamamos a polícia. Meu pai correu pela cidade procurando por ela. Nós chorávamos. Enquanto isso, sem que soubéssemos, Anita estava em apuros. Mais tarde, ela nos contou que enquanto nós, irmãs e amigos, corremos para o apartamento, ela correu em outra direção. E logo o monstro a viu e começou a caçada. Anita nos mostrou como correu, se escondendo atrás de árvores, atrás da enorme rocha no Jenks Park. Ela tentou ficar quieta e não denunciar sua posição, mas o homem a rastreava como se estivesse numa guerra. E onde ela se escondia servia apenas como um abrigo temporário, até que ele a visse e retomasse a caçada.
Enquanto minha irmã literalmente corria para salvar a própria pele, não fazíamos ideia de onde ela estava. A polícia foi até nossa casa, mas eles também não a encontraram. Então a vimos correndo pela ­Washington Street, saindo do Jenks Park. Anita estava sem fôlego, chorando desesperada. Ela entrou no mercado do outro lado da rua, o “monstro” ensanguentado em seu encalço.
O açougueiro do mercado colombiano saiu com um facão e gritou:
Pare!
Miraculosamente, aquele quase Jason de Sexta-feira 13 parou. Paralisado. Mancando. Ele baixou a cabeça como se alguém tivesse tirado sua bateria.
Assistimos enquanto os policiais colocavam uma camisa de força nele, o amarravam em uma maca e o empurravam para dentro de uma van de paredes acolchoadas. Mais tarde, descobrimos que ele tinha acabado de voltar do Vietnã, onde passara meses na floresta comendo todo tipo de roedor… e gatos. O estresse pós-traumático dele era tão devastador que a esposa o expulsara de casa naquele dia.
Anita sempre foi a força da nossa família. A sobrevivente. A lutadora. Mas mesmo alguns dos mais poderosos guerreiros têm feridas que os marcam. Esse incidente ameaçava transformar Anita em uma sombra de si mesma. O sangue da minha mãe no chão e o sanguedas almas devastadas que encontrávamos pelas ruas precisavam de montes de bálsamo. E nós não tínhamos o conhecimento ou as ferramentas para lidar com aquilo. Simplesmente… não tínhamos.

Viola Davis, em Em busca de mim

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