Uma família feliz não é nada
além de um paraíso antecipado.
— GEORGE BERNARD SHAW
Minhas irmãs se tornaram meu
exército. Estávamos todas em uma guerra, lutando por propósito.
Cada uma de nós era um soldado lutando por nosso valor. Estávamos
juntas naquilo; precisávamos umas das outras. Nenhuma de nós
conseguia lutar sozinha. Sei que eu não tinha força para isso.
Estávamos travando uma guerra com inimigos visíveis e invisíveis.
Mesmo assim, nosso comprometimento era com o todo. Criamos uma
cultura de “juntas ou nada”. Às vezes, nos separávamos e
algumas de nós ficavam no campo de batalha, intactas, mas com alguma
coisa faltando. Quando crianças, porém, estávamos juntas naquela
missão: Dianne; a mais velha; Anita, um ano mais nova; Deloris, dois
anos mais nova; e eu, três anos mais nova. Queríamos uma saída e
nossos laços de irmandade nos ajudaram a trilhar um caminho. Dianne
era o cérebro. Anita os músculos. Deloris a cabeça. E eu? Eu era
aquela que podia colocar todo o time para baixo ou para cima
milagrosamente no último minuto.
Fomos transformadas pela Srta. Tyson.
Depois, ganhar aquele concurso com a nossa esquete mudou nossa vida
porque o exército de irmãs se tornou uma materialização de como
venceríamos a guerra.
O taco do kit de softball, o taco
vermelho que ganhamos, se tornou um pegador de ratos, uma ferramenta
em nosso arsenal.
Os ratos sempre saíam do nada. Você
podia estar sentado vendo TV, assistindo ao seu programa preferido, e
de repente um rato pulava no sofá. Ou saía de um buraco na parede e
em um segundo estava debaixo do sofá.
Quando víamos um deles, dizíamos a
Anita: “Vi um rato!” Quando ela o via, pegava o prêmio que
ganhamos, o taco vermelho. Ficávamos atrás dela, agarrando-a.
Dianne dizia: “Foi para debaixo… foi para debaixo dali. Pega ele.
Pega ele. Pega ele.”
Ficávamos quietinhas, esperando que o
rato parasse de se mexer. Víamos o rabo, embaixo do sofá. Anita
esperava. Ela, que a propósito se tornou uma estrela do softball,
batia no tempo perfeito. Bam! Chegava a arrancar o rabo do
bicho. Mas não o matava. Só arrancava o rabo.
O taco que ganhamos se mostrou útil
mais uma vez um dia em que MaMama estava dormindo à tarde, de boca
aberta, em um fim de semana. Sem medo de nosso gato preto, Boots, o
maior rato que já tínhamos visto estava na fronha do travesseiro de
MaMama, aos poucos se aproximando dela.
Contamos a Anita:
— Tem um rato. Ele está prestes a
matar a MaMama… Vai morder o pescoço dela!
Anita pegou o taco e, de novo,
estávamos atrás dela, nos segurando nela, enquanto o rato
sorrateiramente se aproximava da boca aberta de MaMama. Por que não
gritamos “MaMama! Acorde!” para fazer o rato pular da cama e
correr? Não sei. Boots pulou no travesseiro, miou com agressividade
e o rato disparou para dentro do armário e se escondeu entre o monte
de roupas.
Mamãe acordou assustada.
— O rato está em algum lugar no
meio das roupas! — gritamos.
Estava entre os casacos ou escondido
nos vestidos? Tentávamos descobrir, espiando atrás de Anita para
ver o rabo, já balançando o taco vermelho.
— Acho que está bem ali — disse
MaMama.
— Pega ele, Anita, porque está em
algum lugar no meio daquelas roupas — dissemos.
Anita mirou perfeitamente. Ela fez o
movimento no tempo correto, da mesma forma que faria mais tarde
jogando softball. E com toda a força que conseguiu, desceu o taco
vermelho e esmagou o rato como se fosse uma panqueca.
A incrível memória da vitória
naquele concurso — minha estreia na atuação, que me iniciou na
jornada para me tornar atriz — é acompanhada por lembranças
daquele taco vermelho de plástico e sua utilidade como matador de
ratos. Ratos são uma parte significativa da lembrança daquela
vitória. Até hoje, morro de medo deles.
Nossos anos de juventude tiveram
algumas boas memórias. Felicidade para mim era o Dia dos Namorados.
Meu pai sabia como celebrar o Dia dos Namorados e outras datas
comemorativas. Ele comprava muito chocolate, acredite ou não; para a
Páscoa, ele trazia ovos de chocolate e nos dava cartões. No Natal,
principalmente quando éramos mais jovens, por volta de 11 ou 12
anos, não havia muitos presentes. Mas mesmo assim, tínhamos uma
árvore de Natal, e meu pai era o bêbado alegre tocando violão.
Eu tinha 7 ou 8 anos quando meu pai
comprou uma mesa de sinuca pra gente. Era uma mesa grande. Ele a
comprou porque gostava de jogar no bar. Eu amava jogar. Depois de um
tempo a mesa quebrou, e não compramos outra. Mas às vezes íamos ao
bar — na época em que pais podiam levar crianças a bares —,
jogávamos dardos e sinuca e comíamos salgadinhos bebendo Sprite.
Essas memórias felizes logo seriam
seguidas por traumas — a raiva do meu pai em seus ataques quando
estava alcoolizado, violência, pobreza, fome e exclusão. Na minha
mente de criança, eu era o problema. Eu me recolhia ao banheiro,
apoiava algo contra a porta para que ninguém entrasse e me sentava
por muito tempo olhando para os meus dedos e mãos, tentando apagar
tudo aquilo da mente. Queria poder sair do meu corpo. Sair dali.
Uma vez, quando tinha mais ou menos 9
anos, consegui. Eu saí; isto é, saí do meu corpo, por assim dizer.
Flutuei até o teto, olhei para baixo, para mim, vi meu cabelo,
minhas pernas e meu rosto. Então me encarei, diretamente para dentro
de mim. Nossa! Eu amei aquilo. Era um poder secreto e mágico, mas
não me vi como mágica ou poderosa. Só me senti livre. Era a minha
forma de desaparecer. Era a minha onda. Eu nem sempre conseguia
controlar a sensação de estar fora do corpo, mas quando conseguia,
era algo muito além de fantástico. O poder de sair do meu corpo, de
deixar de ser Viola por um tempo, foi uma imagem que esteve comigo
por décadas.
Mas nunca gostei de como terminava.
Essas experiências fora do corpo sempre pareciam terminar de forma
abrupta. Eu caía de uma vez — como nos filmes, quando alguém
tinha poderes telecinéticos e erguia um objeto, mas não conseguia
mais se concentrar, então a coisa caía. Eu estava fora do meu corpo
e, de repente, de volta nele. Tentava compartimentalizar, me desviar
daquelas emoções pesadas, até não conseguir mais. O poder era
temporário.
Mesmo hoje, Deloris e eu sonhamos com
o 128. O prédio criou um pano de fundo para as conexões de
irmandade. O 128 foi como um útero para a nossa irmandade. À noite,
nós, as irmãs, nos encolhíamos no beliche de cima para nos
aquecer, horrorizadas com os sons dos roedores comendo pombos no
telhado, comendo nossos brinquedos, guinchando, quando sentíamos o
peso do corpo deles enquanto pulavam em nossa cama, procurando o que
comer. Enrolávamos lençóis no pescoço para nos proteger de
mordidas.
Ir ao banheiro à noite no meio disso
não era uma opção. Ligar as luzes e observá-los sair correndo não
era uma opção, porque não havia luz na parte do apartamento onde
dormíamos. O banheiro ficava distante, do outro lado do apartamento,
e poderia muito bem ser do outro lado do mundo. Se não tivéssemos
ido antes de deitar, fazer aquela jornada no meio da noite não era
uma opção. Então fazíamos xixi na cama.
Dormíamos para esquecer nossos
problemas. Quando meu pai estava bêbado ou havia alguma briga, minha
irmã Deloris e eu desaparecíamos no quarto e nos tornávamos “Jaja”
e “Jagi”, matronas ricas e brancas de Beverly Hills, com joias
enormes e chihuahuas pequeninos. Brincávamos assim por horas.
— Caramba, Jaja — dizia Jagi. —
Comprei esta casa fabulosa e meu marido me deu este lindo anel de
diamantes.
Brincávamos, com tantos detalhes que
se tornou algo transcendente.
Brincávamos enquanto ao fundo minha
mãe apanhava e gritava de dor. Mas acreditávamos que estávamos
naquele mundo até Deloris quebrar o feitiço dizendo:
— Você não é Jaja. Você é
pobre. Recebe auxílio do governo. Você não tem diamantes.
Brigávamos e o faz de conta acabava —
até acontecer outra confusão na família. Era nossa válvula de
escape. Nos transformávamos em pessoas que pensávamos ser
“melhores”. Pessoas que existiam em um mundo com o qual apenas
sonhávamos; mulheres que não éramos. Brincávamos por diversão e
por desespero. Jaja e Jagi eram nossa proteção de faz de conta.
A maior parte das minhas memórias
mais alegres são do meu relacionamento com minhas irmãs. Sonhamos
juntas com muita determinação. Começamos uma banda chamada Hot
Shots. Queríamos ser os Jackson 5. Nunca chegamos a escrever uma
canção nem tocamos instrumentos. Não tínhamos dinheiro para fazer
aulas de música. Mas o que nos faltava em habilidade compensávamos
com garra e imaginação. Deloris ficava na bateria. Dianne era a
cantora principal. Eu tocava tamborim, e Anita, violão. Podíamos
fingir e escapar para a nossa imaginação.
Éramos fascinadas por fogos de
artifício. Um dia, compramos bombinhas. Ter o dinheiro para
comprá-las foi um grande feito. Compramos em uma das lojas da
esquina. Por motivos dos quais não me lembro, decidimos acender uma
bombinha na cozinha do 128 e jogá-la pela janela. Fiquei responsável
por segurar a bombinha. Paralisei, ou, como dizem, “amarelei”.
Minhas irmãs gritaram para que eu
jogasse, mas não consegui me mexer. A bombinha explodiu na minha
mão! Ela ficou totalmente dormente! Imagine um desenho do Looney
Tunes em que eu perco minha audição e fumaça sai do meu nariz e
das minhas orelhas. Como o Coyote, fiquei de pé com a bombinha
explodida na mão. Minha boca escancarada. Vi os lábios das minhas
irmãs dizendo as palavras, mas não consegui ouvir: “Viola, você
está bem?”; “Sua burra! Te falei para jogar.” Então comecei a
chorar. Estou surda! Ai, meuDeus!
Minha audição voltou.
Minhas irmãs e eu seguimos explorando
nosso mundo. Continuamos a descobri-lo sozinhas na ausência dos
nossos pais. Eles tentavam simplesmente nos manter vivas da única
maneira que sabiam. Controlavam o que podiam e introduziam esforço,
alegria e esperança em pequenas doses. Por exemplo, recebíamos
roupas novas pelo menos uma vez por ano, na Páscoa. Apesar das camas
mijadas, de quase nunca ter roupas limpas, dos ratos pulando na nossa
cama à noite, da mobília quebrada, da insegurança alimentar, do
encanamento ruim, da falta de telefone, todos recebíamos uma roupa
novinha. A potência e o poder da tradição são coisas profundas.
Minha mãe usava pentes quentes no
cabelo — um ferro para enrolar e um pente para alisar que eram
aquecidos no fogão. Com pomada Blue Magic, ela alisava e fazia
cachos nos nossos cabelos para a Páscoa. Na minha opinião, era um
ritual sádico. Ela batia na gente e gritava — “Sossega o facho
ou vou te queimar” — se nos encolhêssemos. Quando aquele pente
quente atingia uma mecha de cabelo oleosa, que chiava e caía na
orelha ou no rosto, era impossívelnão se encolher. Às vezes, ela
se distraía com a conversa e deixava o pente e o ferro no fogo por
tempo demais. Esses ferros superquentes esturricavam nosso cabelo.
“Sossega o facho!”
No fim, ficávamos tão adoráveis em
nossos vestidos longos e sapatos novos, mas, caramba, como parecíamos
ensebadas. Mas não ligávamos! Nós amávamos. Nossos pais nos davam
doce, algum dinheiro, e ficávamos no pátio esperando alguém passar
para ver como estávamos engraçadinhas. Por fim, Dianne veio com a
ideia de ir à igreja. Ela disse que era o que faziam no sul. As
únicas igrejas em Central Falls eram católicas. Reunimos coragem
para ir, já que a maioria das pessoas que conhecíamos na cidade
eram católicas.
Fomos à Holy Trinity Church e nos
sentamos no fundo. Desde o momento em que pisamos na igreja, todos os
olhares se voltaram para nós. Pensei que todos estavam hipnotizados
pela nossa fofura. Fingimos saber ou tentamos aprender a letra das
músicas e as diferentes respostas. Então, incentivadas por Dianne,
fomos à Comunhão.
— É só dizer “amém” quando
ele colocar o pão na sua boca.
Fiquei animada com a possibilidade de
receber um pedacinho de pão. Quando chegou a hora de pegar o corpo
de Cristo, o padre se inclinou e sussurrou:
— Você é católica?
Dianne, com a mão ainda aberta,
pronta, balançou a cabeça e respondeu, sincera:
— Não.
Ele fez um gesto para que saíssemos.
Então percebi por que nos encararam tanto.
Depois disso, pegamos nosso dinheiro
da Páscoa e fomos ao cinema Leroy Theatre para assistir a uma sessão
dupla e comer cachorro-quente ou M&M’s de embalagens grandes.
Setenta e cinco centavos para uma sessão dupla e trinta e cinco
centavos por uma embalagem grande de M&M’s.
O outro feriado era Halloween. Nós
éramos as primeiras na rua atrás de doces ou travessuras, e as
últimas a voltar para casa. O objetivo era conseguir o máximo de
doces possível. Enchíamos uma sacola e saíamos com outra. Nunca
tínhamos fantasias, então colocávamos a maquiagem da minha mãe no
nariz, na testa, nas bochechas e pronto. Não havia dinheiro para
mais nada.
Em um ano, decidimos sair antes que
escurecesse. Corremos para fora com nossas fronhas e sacolas de
papel. Foi a melhor ideia porque éramos as únicas crianças lá
fora. Não vimos mais ninguém! Absolutamente ninguém. Íamos
conseguir os melhores doces por sermos os primeiros. Batemos na
primeira porta. Eram pais com três filhos.
— Doces ou travessuras! —
gritamos.
O homem pareceu totalmente assustado e
desatou a rir.
— O Halloween é amanhã! Vocês
vieram cedo demais!
A esposa e os filhos dele foram até a
porta e começaram a rir de nós descontroladamente. Fugimos correndo
e não paramos até chegar em casa.
Algumas batalhas nós ganhamos:
sobrevivemos juntas e emergimos com risadas e alguma perspectiva; e
outras brutais, como abuso sexual, nós perdemos.
Naquela época, abuso sexual não
tinha nome. Os abusadores eram chamados de “velhos safados” e as
vítimas eram chamadas de “fáceis” ou “piranhas”. Era algo
coberto de silêncio, trauma invisível e vergonha. É difícil
entender como era comum. O que nos tornava passivas era nossa falta
de supervisão e de conhecimento. Eram tempos diferentes.
O abuso ia de velhos aleatórios na
rua dizendo para nós, em especial para mim, porque era a mais nova,
como éramos adoráveis. Até que ouvi: “Te dou 25 centavos se você
me der um beijo.” Eu queria o dinheiro. Aceitei, dei ao homem de
bengala um beijo na bochecha. Ele continuou ali. Me encarando.
Esperando algo mais. Eu olhei ao redor desconfiada até que algo me
disse para correr.
Uma vez, uma festa de aniversário na
casa de um amigo estava lotada de pessoas bêbadas. A casa tinha uma
varanda nos fundos que levava para o telhado da garagem. Era um ótimo
espaço para brincar quando criança, e foi o que fizemos naquele
dia. Um dos homens da festa fingia correr atrás de nós entre um
drinque e outro. E nós corríamos, rindo. Ele nos perseguia até
quase nos encurralar, mas todas as crianças conseguiam escapar,
desviar ao redor dele. Exceto eu. Fiquei paralisada e ele me agarrou.
Todas as crianças estavam apontando,
rindo por eu ter sido pega. Ele me agarrou e disse: “Você é tão
engraçadinha e bonita…”
E então começou a erguer minha saia,
puxou de lado a minha calcinha para expor minhas nádegas, e começou
a massagear fazendo sons sexuais. As crianças gritaram assustadas e
correram. Eu me encolhi, dei socos até ele me soltar e corri. As
outras crianças me provocaram: “Rá! Rá! Você foi pega! Aquilo
foi horrível!” Fiquei completamente arrasada. Para piorar tudo e
tornar as coisas ainda mais confusas, eu estava sendo humilhada, e
não o homem que me apalpou na frente de todo mundo. Eu só tinha 8
anos, mas me senti suja, devastada. Ainda mais traiçoeiramente
doloroso foi que eu fiquei envergonhada por me sentir assim, não só
pelo que aconteceu. Pense nisso por um momento: estava envergonhada
de mim mesma por me sentir violada por um agressor pervertido e
adulto. Eu estava sozinha na festa. Sozinha. Abandonada para me virar
e navegar por conta própria as águas infestadas de tubarões.
Éramos deixadas com garotos mais
velhos, vizinhos que ficavam “de babá” e abriam o cinto da calça
enquanto brincavam de cavalinho conosco. Minhas três irmãs e eu
(Danielle ainda não tinha nascido) por vezes éramos deixadas sem
supervisão com meu irmão em nosso apartamento — a curiosidade
sexual passava dos limites. Ele corria atrás de nós. Perdíamos. E
por fim outro comportamento inapropriado com um efeito profundo
ocorria. Compartimentalizei grande parte disso na época. Guardei em
um lugar em minha psique que parecia seguramente escondido. Ao
esconder, podia fingir que nada tinha acontecido. Mas aconteceu!
De novo, mais segredos. Camadas sobre
camadas de segredos sombrios. Trauma, merda, mijo e argamassa
misturados com memórias que foram filtradas, editadas pelo bem da
minha sobrevivência e emaranhadas com segredos geracionais.
Enterrada em algum lugar embaixo de todo aquele lixo, eu vivo — o
meu eu que luta para respirar, que quer tanto se sentir vivo.
Mas essa é a jornada!A única
arma que tenho para superar tudo é o perdão. É desistir de toda a
esperança de um passado diferente.
Minha mãe tem hoje 78 anos, e a
memória dela aos poucos está começando a falhar. Enquanto a
observo agora, tento desesperadamente me agarrar a cada restinho de
tempo que ainda temos juntas. Estou tentando tirar todos os segredos
e barreiras do caminho, quaisquer barreiras que possam existir entre
nós.
Um dia, tomando chá verde e comendo
torrada, nos sentamos e conversamos sobre memórias e a minha
infância em Central Falls. Conforme falávamos, um nó no meu
estômago cresceu e se mostrou. Era aquele sentimento familiar que
tenho antes de fazer algo arriscado ou que me deixa desconfortável,
como quando estou em um ambiente social onde sinto que não me
encaixo. Mas daquela vez segui em frente assim mesmo. Fui fundo.
Canalizei minha raiva, minha mágoa e contei a ela sobre a dolorosa
lembrança. “Deloris, Anita, Dianne e eu fomos abusadas
sexualmente”, contei a ela enquanto dizia o nome do meu irmão no
mesmo fôlego. “Ele nos perseguia no apartamento. Era agressivo.
Tínhamos medo. Éramos tão novas, mãe! Houve penetração com
Anita e Dianne. Deloris e eu fomos tocadas.”
Silêncio. Ela não se mexeu. É
irônico que ela estivesse sentada na minha linda cozinha de mármore
e porcelana, com a geladeira chique e pé-direito alto, e isso não
significava porra nenhuma comparado à grandeza da verdade do que
estava acontecendo. O sucesso não é nada comparado à cura. Não
apenas a verdade do abuso, mas a decisão de amar, de perdoar… a
reação que eu sabia que seria… silêncio.
Silêncio.
Silêncio pesado. O silêncio que se
tornou choque, mágoa, culpa, reconhecimento do próprio abuso
sofrido por ela. O desespero silencioso de tentar negociar a
complexidade de ser mãe. O único sinal de que algo mudara nela foi
sua torrada intocada.
Houve outros tipos de incidentes que
experimentamos enquanto irmandade.
Tentávamos fazer balas de caramelo no
fogão enquanto meus pais estavam fora, talvez no bar local, embora
minha mãe não bebesse, ou talvez minha mãe estivesse no bingo e
meu pai no trabalho. Bala de caramelo era uma tradição do interior
que Dianne nos ensinou. Coloca-se uma quantidade absurda de banha em
uma panela e açúcar suficiente para deixar todas as crianças de
uma escola diabéticas, e deixa-se a mistura em fogo alto.
Caramelizando.
Então, apaga-se o fogo para que
aquilo esfrie, endureça e vire uma bala. Testávamos tudo relativo a
comida. Estávamos sempre, sempre com fome. Nesse dia, deixamos a
banha no fogo por tempo demais e ela espirrou por todo o rosto de
Anita. Ela gritou! Nós gritamos! Dianne pegou um pano de prato e se
limpou. Uma camada de pele saiu junto. Ela agarrou o casaco e saiu
correndo para buscar minha mãe. Acabou na emergência, com enormes
bolhas no rosto.
Havia também a nossa silenciosa
competição sobre quem molhava mais a cama e quem pararia primeiro.
Meu irmão, fingindo ser Bruce Lee,
atirou uma faca de açougueiro em Anita. Milagrosamente, não atingiu
nenhum órgão dela, mas cravou bem na perna.
Outra vez meus pais começaram uma
briga enquanto minha mãe estava arrumando o cabelo de Dianne. Meu
pai ficou tão bravo e fora de controle que jogou um copo na minha
mãe, que acabou atingindo Dianne na cabeça, causando um ferimento.
Sangue espirrou.
Quando lembro as coisas que vi, me
impressiono com o que o corpo humano consegue aguentar.
Não há páginas suficientes para
mencionar as brigas, ser constantemente acordada no meio da noite ou
voltar para casa depois da escola para encontrar meu pai enfurecido e
rezar para que ele não perdesse o controle e matasse minha mãe. Às
vezes, a cabeça ou o braço dela tinha cortes. O rosto dela inchado,
o lábio cortado. Eu sempre ficava com medo quando ele pegava
qualquer objeto, como um pedaço de madeira, porque batia nela com a
maior força que conseguia e continuava batendo. Às vezes a noite
toda. Tantas vezes vimos uma trilha de gotas de sangue levando até o
nosso apartamento, e já sabíamos o que estava acontecendo. Eram
caos, violência, raiva e pobreza misturados à vergonha.
Uma noite, meu pai chegou em casa
muito bêbado. Ele ficou dizendo:
— Mae Alice, estou morrendo. Não
vou passar de hoje! Acorde as crianças!
Minha mãe, chorando, acordou todos
nós. Estávamos exaustos e nos sentamos no quarto deles tentando não
adormecer. Meu pai estava no chão, bêbado e vomitando um líquido
transparente. Minha mãe segurava a cabeça dele, aos prantos.
— Crianças! Seu papai está
morrendo — gemia ele. — Não vou estar aqui por muito mais tempo.
Quero me despedir de vocês.
Comecei a chorar. Eu era a “bebê
chorona”. Minhas irmãs estavam imóveis. Meu pai foi se despedindo
de cada uma.
— Deloris, você é inteligente.
Você vai se sair bem, mas precisa parar de roubar as coisas das suas
irmãs e vender na escola. Não pense que não sei o que está
fazendo.
Deloris chorou um pouco.
— Dianne, tome conta das suas irmãs.
Vahla, você é o meu bebê. Você sabe que o papai te ama, mas
precisa parar de mijar na cama e deixar a casa toda fedida! Nita, não
sei que diabos fazer com você. Você mija na cama, rouba, briga com
os outros… AAAAAhhhh!
Ele convulsionou, vomitou e ficou
gelado. Meu pai parou de se mexer.
Eu gritei:
— Papai! Não! Não morra, papai!
E então ele despertou.
— Eu amo vocês.
Minha mãe olhou para nós e disse:
— Voltem para a cama.
Havia brigas o tempo todo. Depois de
cada uma delas havia uma realidade que se assomava. Como vamos
superar agora? A única esperança era que essas brigas fossem
pequenos traumas, não um grande trauma. No início dos anos 1970,
minha irmã Anita ficou cara a cara com um grande trauma.
Começou como um dia de verão normal
e tranquilo, e minha família e nossos vizinhos, os Owens, estavam
sentados na varanda conversando. Isso aconteceu no 128. Os Owens
moravam no apartamento que acabaria sendo ocupado por nós quando
eles se mudassem. Eles eram uma família grande como a nossa. Éramos
muito próximos e brincávamos juntos o tempo todo. Enquanto os
adultos aproveitavam a paz da varanda, nós, crianças, estávamos
correndo dentro de casa, vez ou outra colocando a cabeça para fora.
Enquanto nos divertíamos sem nenhuma preocupação, a Sra. Owens e
minha mãe disseram de repente:
— Olha o monstro! Meu Deus! O que
ele está fazendo?
É lógico que corremos lá fora para
ver.
— Olha! Ele correu para o quintal —
exclamamos animados, totalmente ignorantes sobre onde aquela jornada
aparentemente inocente nos levaria.
Enquanto corríamos para ver o monstro
no quintal, nossos pais gritaram atrás de nós:
— Não cheguem perto desse homem!
Nós o vimos: um homem sem sapatos no
meio do quintal, usando jeans rasgados na perna e uma camisa abotoada
de qualquer jeito. Ele estava de pé, se balançando para a frente e
para trás, para a frente e para trás, gemendo. Os olhos dele não
nos identificaram mesmo olhando em nossa direção. Nossos pais não
estavam brincando. Se ele não era um monstro, certamente faria esse
papel até que algum de verdade aparecesse.
Gritamos para ele:
— Olhe pra gente! Iuuuh-huuu! Olhe,
monstro! Estamos aqui!
Sentíamos pavor, mas em nossa cabeça
estávamos disfarçando perfeitamente com nossas provocações. De
repente, um gato de rua que tínhamos adotado não oficialmente foi
andando na direção do homem.
Nós gritamos:
— Gato! — Ainda não tínhamos
dado um nome ao danado. — Gato! Saia de perto dele!
Gritamos muito alto, esperando
assustar o gato para que ele fugisse. Com certeza não tínhamos
coragem de correr para perto do monstro e pegar o gato. Então
continuamos gritando para o gato e para o homem não pegar nosso
quase animal de estimação.
De repente, a entidade balançante que
mais parecia um vilão de filme de terror pegou o gato pelo pescoço.
Gritamos mais alto. Se ele estava nos ouvindo, não sabíamos, porque
não respondeu. Em vez disso, ele olhou para o gato, acariciou-o
quase com ternura, e então com toda a calma quebrou o pescoço do
bichano.
O sangue escorreu da boca do felino
morto. Sua cabeça ficou pendurada, embora parecesse que ainda
tentava resistir. O homem segurou o gato ensanguentado no ar, deixou
o sangue dele pingar em seu rosto e lambeu. Ele jogou o corpo do gato
no chão e espalhou o sangue no rosto, como se fosse uma pintura
ritualística de guerra.
Ficamos paralisados. Sem acreditar no
que víamos. Traumatizados.
De repente, como se um interruptor
fosse acionado, o homem se deu conta da presença de seus caçadores
infantis, grunhiu e voou em nossa direção. Corremos para dentro do
prédio como animais sendo caçados, agarrando uns aos outros,
tropeçando, chorando. Chegamos às escadas. Quando olhamos ao redor,
sem fôlego, aos prantos, nos demos conta de que Anita não estava
ali.
Chamamos a polícia. Meu pai correu
pela cidade procurando por ela. Nós chorávamos. Enquanto isso, sem
que soubéssemos, Anita estava em apuros. Mais tarde, ela nos contou
que enquanto nós, irmãs e amigos, corremos para o apartamento, ela
correu em outra direção. E logo o monstro a viu e começou a
caçada. Anita nos mostrou como correu, se escondendo atrás de
árvores, atrás da enorme rocha no Jenks Park. Ela tentou ficar
quieta e não denunciar sua posição, mas o homem a rastreava como
se estivesse numa guerra. E onde ela se escondia servia apenas como
um abrigo temporário, até que ele a visse e retomasse a caçada.
Enquanto minha irmã literalmente
corria para salvar a própria pele, não fazíamos ideia de onde ela
estava. A polícia foi até nossa casa, mas eles também não a
encontraram. Então a vimos correndo pela Washington Street,
saindo do Jenks Park. Anita estava sem fôlego, chorando desesperada.
Ela entrou no mercado do outro lado da rua, o “monstro”
ensanguentado em seu encalço.
O açougueiro do mercado colombiano
saiu com um facão e gritou:
— Pare!
Miraculosamente, aquele quase Jason de
Sexta-feira 13 parou. Paralisado. Mancando. Ele baixou a
cabeça como se alguém tivesse tirado sua bateria.
Assistimos enquanto os policiais
colocavam uma camisa de força nele, o amarravam em uma maca e o
empurravam para dentro de uma van de paredes acolchoadas. Mais tarde,
descobrimos que ele tinha acabado de voltar do Vietnã, onde passara
meses na floresta comendo todo tipo de roedor… e gatos. O estresse
pós-traumático dele era tão devastador que a esposa o expulsara de
casa naquele dia.
Anita sempre foi a força da nossa
família. A sobrevivente. A lutadora. Mas mesmo alguns dos mais
poderosos guerreiros têm feridas que os marcam. Esse incidente
ameaçava transformar Anita em uma sombra de si mesma. O sangue da
minha mãe no chão e o sanguedas almas devastadas que encontrávamos
pelas ruas precisavam de montes de bálsamo. E nós não tínhamos o
conhecimento ou as ferramentas para lidar com aquilo. Simplesmente…
não tínhamos.
Viola Davis, em Em busca de mim

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