sexta-feira, 18 de julho de 2025

Doutor Jivago — 7


7

Na cabine da segunda classe do trem, junto com seu pai, o advogado Gordon de Orenburgo, viajava o ginasiano da segunda série Micha Gordon — um menino de onze anos com um rosto pensativo e grandes olhos negros. O pai estava se transferindo a serviço para Moscou, e o menino para o ginásio moscovita. A mãe e as irmãs já estavam há algum tempo em Moscou, ocupadas com a arrumação do apartamento.
O menino e o pai viajavam no trem há três dias.
Diante deles, em nuvens de poeira quente, branqueada pelo sol, como cal, passava voando a Rússia, os campos e estepes, as cidades e aldeias. Pelas estradas arrastavam-se carroças, que se desviavam do caminho pesadamente nas passagens de nível. Do trem, que corria loucamente, parecia que as carroças estavam sem se mover e que os cavalos suspendiam e abaixavam os pés sem sair do lugar.
Nas grandes estações, os passageiros, como desvairados, corriam até o café. O sol poente por trás das árvores do jardim da estação clareava seus pés e brilhava por baixo das rodas dos vagões.
Todos os movimentos no mundo estavam, um a um, calculadamente sóbrios, e no fim das contas, inconscientemente bêbados pelo fluxo comum da vida que os unia. As pessoas trabalhavam e cuidavam de seus interesses, movidas pelo mecanismo das próprias preocupações. Porém, os mecanismos não funcionariam caso o seu regulador principal não fosse o sentimento de despreocupação, enorme e fundamental. Esta despreocupação dava uma sensação de união das existências humanas, uma certeza da relação entre elas, um sentimento de felicidade por tudo que estava acontecendo, não somente na terra, onde enterram os mortos, mas em outro lugar qualquer, no lugar que alguns denominam de Reino de Deus e outros de história e terceiros, de alguma outra forma.
Dessa regra geral, o menino era uma exceção amarga e pesada. Como seu móvel final permaneceu o sentimento de preocupação, o sentimento de despreocupação não o aliviava nem o enobrecia. Ele conhecia essa sua característica hereditária e com cuidado e desconfiança captava em si seus indícios. Ela o aborrecia. Sua presença o humilhava.
Desde que se entendia por gente, ele não parava de se espantar com o fato de ser possível, tendo as mãos e os pés iguais, falando a mesma língua e possuindo os mesmos costumes, ser alguém diferente — e tão diferente que agradava a poucos e de quem muitos não gostavam? Ele não conseguia entender a teoria, pela qual, se você é pior do que os outros, não podia se esforçar para se corrigir e melhorar. O que significava ser judeu? Por que isso existia? Com que é recompensado ou justificado este desafio desarmado que não traz nada além de desgraça?
Quando ele pedia respostas ao pai, este dizia que suas premissas eram absurdas e que não se podia raciocinar desta maneira, mas não oferecia em troca nada que atraísse Micha com profundeza de sentido e o obrigasse a se curvar, calado, diante do irrevogável.
E fazendo uma exceção para o pai e a mãe, Micha aos poucos se encheu de ódio pelos adultos, que não conseguiam resolver o problema que criaram. Ele tinha certeza de que, quando crescesse, resolveria tudo por conta própria.
E agora, também, ninguém teria coragem de dizer que seu pai se comportara de maneira desastrosa quando correu atrás daquele demente quando este apareceu na plataforma; e que ele não precisava parar o trem quando, empurrando com força Grigori Osipovitch e escancarando a porta do vagão, o homem se jogou do expresso em alta velocidade, de cabeça para baixo, no aterro, da mesma forma como se jogam da ponte para debaixo d'água, quando se atiram dela.
Mas como a manivela do freio foi puxada por ninguém mais que Grigori Osipovitch, para todos ficara evidente que o trem continuava parado longa e inexplicavelmente por causa dele.
Ninguém sabia ao certo o motivo da demora. Uns diziam que, por causa da parada repentina, os freios a ar haviam sido danificados; outros diziam que o trem estava parado em uma subida íngreme e que sem pegar impulso não conseguia ir adiante. Uma terceira opinião era difundida — a de que a pessoa que se matou era uma personalidade importante e por isso seu advogado, que viajava com ele no trem, exigiu que da estação mais próxima, Kologrivovka, fossem chamadas pessoas capacitadas para fazer o protocolo de ocorrência. Para observar melhor, o auxiliar do maquinista subiu no poste de telefone. O trole já devia estar a caminho.
O mau cheiro dos banheiros, que exalava pelo vagão, começou a ser combatido com água-de-colônia; sentia-se ainda cheiro de galinha frita já levemente apodrecida, embrulhada em papel engordurado. No vagão, as damas de Petersburgo continuavam a passar pó-de-arroz, limpar as palmas das mãos com lenço e conversar com vozes guturais e rangentes, todas transformadas em ciganas ardentes com a mistura do pó de carvão do trem e a cosmética gordurosa. Quando elas passavam diante da cabine dos Gordon, escondendo os ângulos dos ombros em capas e transformando o corredor apertado em novo local de exibição, a Micha parecia que elas murmuravam, ou a julgar por seus lábios cerrados, deviam murmurar: “Ah, vejam só que sensibilidade! Nós somos especiais! Nós somos intelectuais! Nós somos poderosos!”
O corpo do suicida estava estirado na grama ao lado do aterro. Um filete de sangue coagulado, como um sinal repentino, escureceu ao longo da testa e dos olhos do morto, riscando este rosto como se fosse uma cruz de sujeira. O sangue parecia não ser dele, parecia não ter escorrido dele, mas sim um apêndice estranho grudado, um esparadrapo ou um respingo de sujeira seca ou uma folha de bétula molhada.
O grupo de curiosos que se lamentava em torno do corpo mudava a toda hora. Sobre ele, sombrio e sem expressão, estava seu vizinho de cabine, um advogado robusto e arrogante, um animal com pedigree numa camisa encharcada de suor. Ele estava morrendo de calor e se abanava com um chapéu leve. Ao responder às perguntas, ele resmungava antipaticamente, encolhia os ombros e nem se virava para o interlocutor: “Era alcoólatra. Será que não entendem? A mais típica consequência do delirium tremens.”
Uma mulher magra num vestido de lã e lenço de renda se aproximou duas ou três vezes do corpo. Era a velha Tiverzina, viúva e mãe de dois maquinistas, que viajava de graça com duas noras na terceira classe, com passagens de serviço. As mulheres seguiam-na quietas, com os lenços quase cobrindo o rosto, caladas como duas freiras atrás da madre superiora. Este grupo impunha respeito. Diante delas, as pessoas abriam caminho.
O marido de Tiverzina morreu queimado, em um acidente na estrada de ferro. Ela parou a alguns passos do cadáver, para que pudesse ver através da multidão e, suspirando, parecia fazer uma comparação: “Para cada um está escrito”, parecia dizer, “uns pela decisão de Deus, e nesse caso, vejam só o que deu-lhe na telha — por causa da vida rica e da perda do juízo.”
Todos os passageiros do trem iam ver o corpo de perto, mas retornavam logo para o vagão por temor de ser roubados.
Quando saltavam do trem, se esticavam, arrancavam flores e davam uma corridinha, todos tinham a sensação de que a localidade surgiu somente graças à parada, e a várzea pantanosa com montículos, o rio largo e a bonita casa, com a igreja na outra margem alta, não existiriam no mundo, não fosse o acidente.
Até mesmo o sol, que também parecia um objeto local, iluminava tímido e vespertino a cena ao lado dos trilhos, aproximando-se medrosamente dela como faria, ao aproximar-se da estrada para ver as pessoas, uma vaca do rebanho que pastava ali ao lado.
Micha estava abalado com o acontecido e nos primeiros minutos chorou de pena e susto. Durante o longo caminho, o suicida veio várias vezes até a cabine deles e por horas conversou com o pai de Micha. Ele dizia que estava morrendo espiritualmente no silêncio limpo e moral e não compreendia o mundo deles; perguntava a Grigori Osipovitch sobre diferentes detalhes e cláusulas jurídicas em questões ligadas a letras de câmbio, doações, bancarrotas e fraudes.
Ah, é assim? — admirava-se ele com os esclarecimentos de Gordon. — O Senhor possui leis mais gentis. Meu advogado tem outras informações. Ele olha para estas coisas de maneira mais sombria.
A cada vez que este homem nervoso se acalmava, da primeira classe vinha atrás dele seu advogado e vizinho de cabine, que o arrastava até o vagão-restaurante para beber champanhe. Era o mesmo advogado robusto, arrogante, bem-barbeado e faceiro que estava parado ao lado do corpo, sem se impressionar com nada no mundo. Não dava para se livrar da sensação de que a constante inquietação de seu cliente de alguma maneira o favorecia
O pai dizia que o falecido era um conhecido ricaço, bondoso e baderneiro, meio irresponsável. Sem se intimidar com a presença de Micha, ele contava sobre seu filho, coetâneo de Micha, e sobre a falecida mulher; depois passava a falar de sua segunda família, também abandonada. Aí, ele se lembrava de algo recente, empalidecia de pavor, não dizia coisa com coisa e começava a ficar confuso.
Ele demonstrava para com Micha um carinho inexplicável, provavelmente refletido e não destinado a ele. Em cada parada do trem, ele o presenteava com alguma coisa e para isso saía, nas maiores estações, para as salas de primeira classe, onde ficavam estantes de livros e vendiam jogos e curiosidades da região.
Ele bebia sem parar e reclamava que era o seu terceiro mês sem dormir, às vezes ficava lúcido, pelo menos durante algum tempo e sofria tormentos que uma pessoa normal não poderia imaginar.
Um minuto antes do fim, ele entrou correndo na cabine deles, agarrou Grigori Osipovitch pela mão, queria dizer algo mas não conseguiu, e saindo na plataforma, se jogou do trem.
Micha observava uma pequena coleção de minerais dos Urais numa caixinha de madeira — o último presente do falecido. De repente, tudo ao seu redor começou a se mover. Pelo outro trilho, o trole se aproximou do trem. Dele desceram o delegado de boné, o médico e dois guardas. Ouviam-se as frias vozes burocráticas. Faziam perguntas, anotavam algumas coisas. Subindo o aterro, tropeçando e escorregando na areia, os condutores e os guardas arrastavam desajeitadamente o corpo. Uma mulher começou a urrar. Os passageiros foram convidados a voltar para os vagões e ouviram-se apitos. O trem pôs-se em movimento.

Boris Pasternak, em Doutor Jivago

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