36.
Não
são as paredes reles do meu quarto vulgar, nem as secretárias
velhas do escritório alheio, nem a pobreza das ruas intermédias da
Baixa usual, tantas vezes por mim percorridas que já me parecem ter
usurpado a fixidez da irreparabilidade, que formam no meu espírito a
náusea, que nele é frequente, da quotidianidade enxovalhante da
vida. São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que,
desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o convívio e a fala,
que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto
físico. E a sordidez monótona da sua vida, paralela à
exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem meus
semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a cela de
penitenciário, me faz apócrifo e mendigo.
Há
momentos em que cada pormenor do vulgar me interessa na sua
existência própria, e eu tenho por tudo a afeição de saber ler
tudo claramente. Então vejo — como Vieira disse que Sousa
descrevia – o comum com singularidade, e sou poeta com aquela alma
com que a crítica dos gregos formou a idade intelectual da poesia.
Mas também há momentos, e um é este que me oprime agora, em que me
sinto mais a mim que às coisas externas, e tudo se me converte numa
noite de chuva e lama, perdido na solidão de um apeadeiro de desvio,
entre dois comboios de terceira classe.
Sim,
a minha virtude íntima de ser frequentemente objetivo, e assim me
extraviar de pensar-me, sofre, como todas as virtudes, e até como
todos os vícios, decréscimos de afirmação. Então pergunto a mim
mesmo como é que me sobrevivo, como é que ouso ter a cobardia de
estar aqui, entre esta gente, com esta igualdade certeira com eles,
com esta conformação verdadeira com a ilusão de lixo de eles
todos? Ocorrem-me com um brilho de farol distante todas as soluções
com que a imaginação é mulher – o suicídio, a fuga, a renúncia,
os grandes gestos da aristocracia da individualidade, o capa e espada
das existências sem balcão.
Mas
a Julieta ideal da realidade melhor fechou sobre o Romeu fictício do
meu sangue a janela alta da entrevista literária. Ela obedece ao pai
dela; ele obedece ao pai dele. Continua a rixa dos Montecchios e dos
Capuletos; cai o pano sobre o que não se deu; e eu recolho a casa —
àquele quarto onde é sórdida a dona de casa que não está lá, os
filhos que raras vezes vejo, a gente do escritório que só verei
amanhã — com a gola de um casaco de empregado do comércio erguida
sem estranhezas sobre o pescoço de um poeta, com as botas compradas
sempre na mesma casa evitando inconscientemente os charcos da chuva
fria, e um pouco preocupado, misturadamente, de me ter esquecido
sempre do guarda-chuva e da dignidade da alma.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
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