segunda-feira, 4 de maio de 2020

A morte da vovó

Casy e tio John, Connie e Rosa de Sharon desceram do caminhão. E todos postaram-se em silêncio. Rosa de Sharon procurava pentear os cabelos para trás, mas quando seus olhos pousaram sobre o vale, suas mãos caíram lentamente.
Onde está a mãe? Quero que ela veja isso. Mãe, vem cá! — gritou Tom.
A mãe descia vagarosa, tesa, pela traseira do caminhão. Tom olhou-a.
Meu Deus, a senhora tá doente? — O rosto dela estava rígido como o de uma estátua; os olhos vermelhos pareciam ter mergulhado profundamente nas órbitas, revelando um enorme cansaço. Seus pés dela tocaram o chão, e ela precisou apoiar-se bem na borda do veículo.
Sua voz estava rouca.
Que é que vocês disseram? A gente já chegou?
Tom apontou para o grande vale.
Olhe!
Ela voltou a cabeça, e seus lábios entreabriram-se. Os dedos tatearam a garganta, apertando de leve a pele.
Graças a Deus! — disse. — A família chegou. — Seus joelhos vergaram e ela sentou-se no estribo do caminhão.
Mãe, a senhora tá doente?
Não, somente cansada.
Mas a senhora não dormiu?
Não.
A avó passou mal?
A mãe olhou as mãos, que jaziam em seu colo qual amantes fatigados.
Só queria não precisar dizer nada a vocês; só queria poder dizer coisas boas.
Então a avó tá mal? — perguntou o pai.
A mãe ergueu a cabeça e lançou seu olhar sobre o vale.
A avó morreu.
Eles a olhavam.
Quando foi? — redarguiu o pai.
De noite, antes de eles querer revistar o caminhão.
Então foi por isso que ocê não queria...
Tinha medo que eles não iam deixar a gente passar. Eu disse pr’avó que não se podia fazer nada. A família tinha que passar. Disse a ela quando ela tava morrendo. Pois que a gente não podia parar no deserto! Tinha as crianças... e o bebê de Rosasharn. Eu disse a ela. — A mãe ergueu as mãos e cobriu as faces por um instante. — Agora ela pode ser enterrada num lugar bonito, todo verde. — E falou baixinho: — Uma terra linda, cheia de árvores. Ela tinha que descansar na Califórnia.
A família olhou a mãe com um ligeiro temor de sua coragem.
Meu Deus! A senhora ficou a noite toda ao lado dela! — disse Tom.
A família tinha que passar — replicou a mãe acabrunhada.
Tom chegou-se a ela e depositou-lhe a mão no ombro.
Não me toca — disse ela. — Senão, não aguento mais.
O pai disse:
Bom, vamo indo, vamo indo logo lá pra baixo.
A mãe olhou-o:
Eu... eu posso sentar na frente agora? Não quero ficar mais lá atrás. Tô cansada, muito cansada.
Subiram todos no caminhão, evitando olhar o corpo rígido, coberto e bem embrulhado numa manta. Tomaram os respectivos lugares e tentaram desviar os olhos do macabro volume, em uma das extremidades, aquela pequena saliência devia ser o nariz, e aquela mais aguda, mais embaixo, o queixo. Tentaram desviar os olhos mas não puderam. Ruthie e Winfield, que se tinham encolhido no canto mais afastado, o mais afastado possível do corpo, olhavam-na como que magnetizados.
É a vovó... ela tá morta — sussurrou Ruthie.
Winfield concordou solenemente:
Ela nem respira mais. Tá bem morta, mesmo.
Rosa de Sharon disse baixinho a Connie:
Ela tava morrendo justamente quando nós...
A gente não podia adivinhar — tranquilizou-a o marido.
Al subiu na carroceria deixando o seu lugar para a mãe. E Al assumiu um ar fanfarrão, pois que se sentia triste. Deixou-se cair entre Casy e tio John.
Ora, ela já era muito velha. Chegou a hora dela — disse. — Um dia todos têm que morrer. — Casy e tio John olharam-no sem expressão nos olhos, como se ele fosse um fantoche. — Ou não têm, talvez? — perguntou. E os olhos continuaram inexpressivos, deixando Al carrancudo e agitado.
Casy disse, admirado:
A noite toda, e ela estava sozinha. — E acrescentou: — John, ela é uma mulher tão cheia de amor... ela me assusta. Palavra que ela me mete medo. Eu me sinto pequeno perto dela.
John perguntou:
Será que foi um pecado? Será uma das coisas que você chamava de pecado, hem?
Casy virou-se para ele, atônito:
Pecado? Não, senhor. Nada disso.
Eu nunca fiz uma coisa que não tivesse um pouco de pecado — disse John, e olhou para o comprido vulto embrulhado.
Tom, a mãe e o pai subiram na cabine do motorista. Tom soltou o veículo e depois ligou o motor. O pesado caminhão descia a montanha saltando, sacolejando e matraqueando. O sol estava atrás dele, e o vale dourado e verdejante espalhava-se à frente. A mãe sacudiu vagarosamente a cabeça, admirada:
Mas que beleza! Só queria que eles pudessem ver também.
É verdade — disse o pai.
Tom deu palmadinhas leves no volante.
Eles já eram muito velhos. Nem iam dar valor direito a isso tudo. O avô ia pensar que vinham índios pelos campos, que nem quando ele era moço. E a avó ia pensar na primeira casa em que ela viveu. Já eram muito velhos, demais. Quem vê isso tudo direito é a Ruthie e o Winfield.
Esse Tommy tá falando que nem um homem feito, até parece um pregador — comentou o pai.
E a mãe esboçou um sorriso triste.
Ele é um homem feito, mesmo. Cresceu tanto que às vezes nem consigo acreditar.
Iam descendo a montanha, aos pulos e sacudidelas, perdendo algumas vezes o vale e tornando a achá-lo. E o hálito quente do vale subia até eles, exalações quentes de vegetações resinosas, de verduras e tomilho. Os grilos cantavam ao longo da estrada. Uma cascavel atravessou, rastejando. Tom atropelou-a e ela ali ficou, contorcendo-se.
Tom disse:
Acho que antes de mais nada a gente tem que procurar a polícia pra dar parte da morte da avó. Depois a gente faz um enterro decente. Quanto dinheiro sobra ainda, pai?
Uns quarenta dólares — respondeu o pai.
Tom riu.
Puxa, vamo começar a vida aqui muito bem! A gente veio mesmo de mão abanando! — Riu ainda por um instante, depois suas feições tornaram-se sérias. Puxou a pala do boné bem sobre os olhos. E o caminhão ia descendo a montanha, rumo ao grande vale.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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