segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O Winnipeg

Os funcionários da embaixada me entregaram certa manhã, ao chegar, um longo telegrama. Sorriam. Era estranho que me sorrissem uma vez que nem sequer me cumprimentavam. Devia conter essa mensagem algo que os regozijava.
Era um telegrama do Chile, assinado nada menos que pelo presidente Dom Pedro Aguirre Cerda, o mesmo de quem recebi as instruções contundentes para o embarque dos espanhóis desterrados.
Li com estupor que Dom Pedro, nosso bom presidente, tinha sabido esta manhã com surpresa que eu preparava a entrada dos emigrantes espanhóis ao Chile. Pedia que eu desmentisse imediatamente tão insólita notícia.
Para mim o insólito era o telegrama do presidente. O trabalho de organizar, examinar, selecionar a emigração, tinha sido uma tarefa dura e solitária. Por sorte o governo da Espanha no exílio tinha compreendido a importância de minha missão. Mas todo dia surgiam novos e inesperados obstáculos. Entretanto, dos campos de concentração onde se amontoavam na França e na África milhares de refugiados, saíam ou preparavam-se para sair até o Chile centenas deles.
O governo republicano no exílio tinha conseguido adquirir um barco, o Winnipeg. Este tinha sido transformado para aumentar sua capacidade de passageiros e esperava atracado no cais de Trompeloup, pequeno porto vizinho a Bordéus.
Que fazer? Aquele trabalho intenso e dramático, à beira mesmo da Segunda Guerra Mundial, era para mim como o auge de minha existência. Minha mão estendida para os combatentes perseguidos significava para eles a salvação e mostrava-lhes a essência de minha pátria acolhedora e lutadora. Todos esses sonhos vinham abaixo com o telegrama do presidente.
Decidi consultar Negrín sobre o caso. Tinha tido a sorte de fazer amizade com o presidente Juan Negrín, com o ministro Álvarez del Vayo e com alguns outros dos últimos governantes republicanos. Negrín era o mais interessante. A alta política espanhola sempre me pareceu um tanto paroquial e provinciana, desprovida de horizontes. Negrín era universal ou pelo menos europeu, tinha feito os estudos em Leipzig, tinha estatura universitária. Mantinha em Paris, com toda dignidade, essa sombra imaterial que são os governos no exílio.
Conversamos, relatei-lhe a situação, o estranho telegrama presidencial efetivamente me deixava como um impostor, como um charlatão que oferecia a uma multidão de desterrados um asilo inexistente. As soluções possíveis eram três. A primeira, abominável, era simplesmente anunciar que tinha sido cancelada a emigração da Espanha para o Chile. A segunda, dramática, era denunciar publicamente meu inconformismo, dar por terminada minha missão e disparar um tiro na cabeça. A terceira, desafiante, era encher o navio de emigrados, embarcar com eles e me lançar sem autorização para Valparaíso para ver o que aconteceria.
Negrin se jogou para trás na poltrona, fumando seu grande havana. Depois sorriu melancolicamente e me respondeu:
- Você não podia usar o telefone?
Naqueles dias as comunicações telefônicas entre Europa e América eram insuportavelmente difíceis, com horas de espera. Entre ruídos ensurdecedores e bruscas interrupções, consegui ouvir a voz remota do ministro das Relações Exteriores. Através de uma conversação entrecortada, com frases que deviam repetir-se vinte vezes, sem saber se nos entendíamos ou não, dando gritos fenomenais ou escutando como resposta trombetadas oceânicas do telefone, pensei ter feito o ministro Ortega compreender que eu não acatava a contraordem do presidente. Pensei também ter entendido que ele pedia que eu esperasse até o dia seguinte.
Passei, como era lógico, uma noite intranquila em meu pequeno hotel de Paris. Na tarde seguinte soube que o ministro tinha apresentado sua renúncia aquela manhã. Não aceitava ele tampouco minha desautorização. O gabinete tremeu e nosso bom presidente, passageiramente confundido pelas pressões, tinha recobrado sua autoridade. Recebi então um novo telegrama, dizendo-me que prosseguisse a emigração.
Embarcamo-os finalmente no Winnipeg. No mesmo lugar de embarque juntaram-se maridos e mulheres, pais e filhos, que tinham sido separados por longo tempo e que vinham dos confins da Europa e da África. A cada trem que chegava precipitava-se a multidão dos que esperavam. Entre carreiras, lágrimas e gritos, reconheciam os seres amados que colocavam a cabeça para fora pelas janelinhas como cachos humanos. Foram todos entrando no navio. Eram pescadores, camponeses, operários, intelectuais, uma demonstração de força, de heroísmo e de trabalho. Minha poesia, em sua luta, tinha conseguido encontrar pátria para eles. E me senti orgulhoso.
Comprei um jornal. Ia eu andando por uma rua de Varenne-sur-Seine. Passava junto do castelo velho cujas ruínas avermelhadas pelas trepadeiras deixavam subir até o alto pequenas torres de ardósia. Aquele velho castelo em que Ronsard e os poetas da Plêiade se reuniram tinha então para mim um prestígio de pedra e mármore, de verso hendecassílabo escrito em velhas letras de ouro. Abri o jornal. Naquele dia estalava a Segunda Guerra Mundial. Assim dizia, em grandes caracteres de suja tinta negra, o diário que me caiu nas mãos naquela velha aldeia perdida.
Todo o mundo a esperava. Hitler avançava engolindo territórios e os estadistas ingleses e franceses corriam com seus guarda-chuvas a oferecer-lhe mais cidades, reinos e seres.
Uma terrível névoa de confusão enchia as consciências. Da minha janela, em Paris, olhava diretamente até os Inválidos e via sair os primeiros contingentes, os rapazinhos que nunca souberam se vestir de soldados e que partiam para entrar na grande goela da morte.
Era triste sua partida e nada o dissimulava. Era como uma guerra perdida de antemão, algo indefinível. As forças chauvinistas percorriam as ruas em perseguição de intelectuais progressistas. O inimigo não estava para eles nos discípulos de Hitler, nos Laval, mas sim na fina flor do pensamento francês. Abrigamos na embaixada, que tinha mudado muito, o grande poeta Louis Aragon. Passou quatro dias escrevendo de dia e de noite enquanto as hordas o procuravam para o aniquilar. Ali, na embaixada do Chile, terminou sua novela Les Voyageurs de L'Impériale. No quinto dia, vestido de uniforme, dirigiu-se ao Front. Era sua segunda guerra contra os alemães.
Acostumei-me, naqueles dias crepusculares, a essa incerteza européia que não sofre revoluções contínuas nem terremotos mas mantém o veneno mortal da guerra saturando o ar e o pão. Por temor aos bombardeios, a grande metrópole se apagava de noite e essa escuridão de sete milhões de seres juntos, essas trevas espessas em que se tinha de andar em plena cidade-luz, ficaram gravadas em minha memória.
No final desta época, como se toda esta longa viagem tivesse sido inútil, volto a ficar só nos territórios recém-descobertos. Como na crise de nascimento, como no começo alarmante e alarmado do terror metafísico de onde brota o manancial de meus primeiros versos, como em um novo crepúsculo que minha própria criação provocou, entro em uma agonia e na segunda solidão. Para onde ir? Para onde regressar, conduzir, calar ou palpitar? Olho para todos os pontos da claridade e dá escuridão e não encontro senão o próprio vazio que minhas mãos elaboraram com cuidado fatal.
Porém o mais próximo, o mais fundamental, o mais extenso, o mais incalculável não aparecia senão neste momento em meu caminho. Tinha pensado em todos os mundos mas não no homem. Tinha explorado com crueldade e agonia o coração do homem. Sem pensar nos homens tinha visto cidades mas cidades vazias, tinha visto fábricas de trágica presença mas não tinha visto o sofrimento debaixo dos tetos, sobre as ruas, em todas as estações, nas cidades e no campo.
Diante das primeiras balas que atravessaram as guitarras da Espanha, quando em vez de sons saíram delas borbotões de sangue, minha poesia deteve-se como um fantasma no meio das ruas da angústia humana e começou a subir por ela uma corrente de raízes e de sangue. Desde então meu caminho junta-se com o caminho de todos. E em seguida vejo que desde o sul da solidão fui para o norte que é o povo, o povo ao qual minha humilde poesia quisera servir de espada e de lenço para secar o suor de suas grandes dores e para dar-lhe uma arma na luta pelo pão.
O espaço então se faz grande, profundo e permanente. Estamos lá de pé sobre a terra. Queremos entrar na possessão infinita de tudo que existe. Não buscamos o mistério; somos o mistério. Minha poesia começa a ser parte material de um cenário infinitamente espacial, de um cenário ao mesmo tempo submarino e subterrâneo, a entrar por galerias de vegetação extraordinária, a conversar em pleno dia com fantasmas solares, a explorar a cavidade do mineral escondido no segredo da terra, a determinar as relações esquecidas do outono e do homem. A atmosfera se obscurece e é iluminada às vezes por relâmpagos recarregados de fosforescência e de terror. Uma nova construção longe das palavras mais evidentes, mais gastas, aparece na superfície do ar. Um novo continente levanta-se da mais secreta matéria de minha poesia. Em povoar estas terras, em classificar este reino, em tocar todas suas margens misteriosas, em apaziguar sua espuma, em percorrer sua zoologia e sua geográfica longitude, passei anos obscuros, solitários e remotos.
Pablo Neruda, In Confesso que vivi

Nenhum comentário:

Postar um comentário