terça-feira, 14 de outubro de 2025

A Casa de Imaginar

Subo aos montes para espiar os rebanhos e gosto de ver como os bichos são um equilíbrio calmo na natureza, uma inteligência madura que favorece que se afinem estações e ciclos de sustento. E os pastores vêem-me chegar e perguntam se não sou aquele escritor. Procuram nomes na memória, juram ter visto, ter lido no jornal algo sobre estas terras e sobre aranhas. E eu digo que sim. Os pastores afidalgam as palavras, depois, como se me dessem livros boca fora, generosos, conscientes de que ando por aqui à cata disso de contar. E contam. Confidenciam que a beleza das mulheres rareia aos velhos e que as ovelhas andam tosquiadas para refrescarem também, e que há milhafres, sim, e que alguns emigrantes voltaram cheios de dinheiro à espera dos nevões, porque levantam telhados suíços e confundem o vendaval com o anúncio do fim do mundo, já não se habituam ao arvoredo e como se põe nas noites piores. Contam que se cai aos poços em terror pelas crianças e se prendem os cães para não mexerem nas galinhas como os lobos, e que os lobos são esfaimados, desgraçam o gado pequeno. Os jovens estudam longe e julgam querer viver nas cidades, ficam com raiva de tantas lavras e de alguma lentidão, queixam-se de quase não haver raparigas, como se o amor não existisse aqui ou fosse pouco. Dizem os nomes dos lugares, de Corno do Bico a Túmio, Lamamá ou Padornelo, S. Bento, Romarigães e Rubiães, Picões ou Peideira, a ponte, e lamentam tudo, porque pressentem que isto pode acabar. Perguntam o que vejo. Respondo que vejo beleza. Julgam que é também uma beleza triste. Perguntam por que escolhi vir para Coura escrever um livro. Respondo que sou esquisito, preciso cada vez mais de ficar sozinho e de estabelecer outros encontros. Uns que ampliem meu universo e me obriguem a não ser exactamente o mesmo, porque também não busco o mesmo livro ou já não sei o que busco.
Este livro passou por várias versões. Amadureceu em Sesimbra, abrigado por meus queridos amigos José e Ana, que me deixaram diante do mar plano, educadíssimo, daquela terra tão bela. Depois, rasurado por inteiro, foi assim escrito da primeira à última página na Casa de Imaginar, que arrendei ao João Gomes, o melhor senhorio de Paredes de Coura, junto à ponte da Feteira, e onde me apareceram mil aranhas, muitas centopeias e estranhos insectos que todas as manhãs encontrei mortos no chão da cozinha. Nesta casa viveram três irmãos, o Gabriel, o Inácio e o João, que foram sapateiros e compunham, à força de um copo, motas e bicicletas. Eram muito boa gente. Tinham ao centro do estabelecimento, onde agora será o meio da Cozinha, um póster do S. Bento de Balugães, e em todo o redor havia calendários de mulheres nuas. O Vítor Paulo conta que vinha a mando do avô e dos pais ao arranjo dos sapatos e pasmava para as mulheres tanto que se confessava ao padre a pedir perdão. No dia em que um dos irmãos morreu, justamente ao regresso do seu funeral, outro morreu de tristeza. O terceiro duraria mais uns tempos desolado. As pessoas dizem-me que eram muito amigos, os irmãos. Que eram unidos e se amavam profundamente. Estou na Casa de Imaginar e ouço as madeiras rangerem e habituo-me à varanda boa sobre as leiras e chamo pela Faísca, a égua, e nunca estive tão bem sozinho, comigo mesmo. Talvez porque sinta que esta casa não é deixada sozinha.
Com estes meses, me vieram à alegria os jantares na casa da minha comadre e do meu co-compadre, como se fizeram confusões boas e pizzas, cogumelos e caril e assistimos às gloriosas crianças, como o Pedro ri e como a Maria manda fazer pouco barulho para desenhar, e vieram os passeios com a minha amiga Isabel Lhano pelos trilhos e pela vida toda de artes e noites muito brancas. Em Coura, há o jeito lindíssimo de Vítor Paulo Pereira e de Tiago Cunha, que simbolizam o mais lúcido amor pelas suas terras, e veio a simpatia da dona Ana e do senhor Carlos no restaurante Miquelina, que me aturaram as manias e ficaram na dúvida de haver uma vespa debaixo do meu prato, há o sorriso do Jorge na pastelaria Visconde, que se preocupou por não sobrarem almendrados para mim, e há a amizade do Jorge e da Rosa, que têm o jardim mais perfeito e o carinho tão notório pelos convidados. Há a Laura Niemeier e há o João Carvalho, que tem acesso ao melhor guarda-roupa da vila e está sempre ao pé de fazer uma festa, há o anfiteatro do Festival que fica de peito ao sol à espera das bandas e eu sonho que um dia regressem os Sonic Youth para voltar a ser rigorosamente feliz como já fui um dia, ali, a vê-los tocar parte do “Daydream Nation”, muito do meu barulho favorito. Por Coura andou o Nick Cave e andou a Patti Smith. Eu ainda a procuro entre os pastores. Ali mais para onde vemos as costas aos pássaros, no cimo, tão maravilhosa quanto eu maravilhado.
Obrigado a todos. Estive com a cabeça num certo Brasil, mas foi com o vosso cuidado e tanta paciência que pude assim imaginar. Espero que termine logo a pandemia, o medo, e que tenhamos de novo o Festival e essa obrigação grata de voltar.
Obrigado à minha irmã Flor, que foi a primeira a ler e a considerar que, surpreendentemente, ainda não enlouqueci.

Valter Hugo Mãe, em As doenças do Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário