Subo aos montes para espiar os
rebanhos e gosto de ver como os bichos são um equilíbrio calmo na
natureza, uma inteligência madura que favorece que se afinem
estações e ciclos de sustento. E os pastores vêem-me chegar e
perguntam se não sou aquele escritor. Procuram nomes na memória,
juram ter visto, ter lido no jornal algo sobre estas terras e sobre
aranhas. E eu digo que sim. Os pastores afidalgam as palavras,
depois, como se me dessem livros boca fora, generosos, conscientes de
que ando por aqui à cata disso de contar. E contam. Confidenciam que
a beleza das mulheres rareia aos velhos e que as ovelhas andam
tosquiadas para refrescarem também, e que há milhafres, sim, e que
alguns emigrantes voltaram cheios de dinheiro à espera dos nevões,
porque levantam telhados suíços e confundem o vendaval com o
anúncio do fim do mundo, já não se habituam ao arvoredo e como se
põe nas noites piores. Contam que se cai aos poços em terror pelas
crianças e se prendem os cães para não mexerem nas galinhas como
os lobos, e que os lobos são esfaimados, desgraçam o gado pequeno.
Os jovens estudam longe e julgam querer viver nas cidades, ficam com
raiva de tantas lavras e de alguma lentidão, queixam-se de quase não
haver raparigas, como se o amor não existisse aqui ou fosse pouco.
Dizem os nomes dos lugares, de Corno do Bico a Túmio, Lamamá ou
Padornelo, S. Bento, Romarigães e Rubiães, Picões ou Peideira, a
ponte, e lamentam tudo, porque pressentem que isto pode acabar.
Perguntam o que vejo. Respondo que vejo beleza. Julgam que é também
uma beleza triste. Perguntam por que escolhi vir para Coura escrever
um livro. Respondo que sou esquisito, preciso cada vez mais de ficar
sozinho e de estabelecer outros encontros. Uns que ampliem meu
universo e me obriguem a não ser exactamente o mesmo, porque também
não busco o mesmo livro ou já não sei o que busco.
Este livro passou por várias versões.
Amadureceu em Sesimbra, abrigado por meus queridos amigos José e
Ana, que me deixaram diante do mar plano, educadíssimo, daquela
terra tão bela. Depois, rasurado por inteiro, foi assim escrito da
primeira à última página na Casa de Imaginar, que arrendei ao João
Gomes, o melhor senhorio de Paredes de Coura, junto à ponte da
Feteira, e onde me apareceram mil aranhas, muitas centopeias e
estranhos insectos que todas as manhãs encontrei mortos no chão da
cozinha. Nesta casa viveram três irmãos, o Gabriel, o Inácio e o
João, que foram sapateiros e compunham, à força de um copo, motas
e bicicletas. Eram muito boa gente. Tinham ao centro do
estabelecimento, onde agora será o meio da Cozinha, um póster do S.
Bento de Balugães, e em todo o redor havia calendários de mulheres
nuas. O Vítor Paulo conta que vinha a mando do avô e dos pais ao
arranjo dos sapatos e pasmava para as mulheres tanto que se
confessava ao padre a pedir perdão. No dia em que um dos irmãos
morreu, justamente ao regresso do seu funeral, outro morreu de
tristeza. O terceiro duraria mais uns tempos desolado. As pessoas
dizem-me que eram muito amigos, os irmãos. Que eram unidos e se
amavam profundamente. Estou na Casa de Imaginar e ouço as madeiras
rangerem e habituo-me à varanda boa sobre as leiras e chamo pela
Faísca, a égua, e nunca estive tão bem sozinho, comigo mesmo.
Talvez porque sinta que esta casa não é deixada sozinha.
Com estes meses, me vieram à alegria
os jantares na casa da minha comadre e do meu co-compadre, como se
fizeram confusões boas e pizzas, cogumelos e caril e assistimos às
gloriosas crianças, como o Pedro ri e como a Maria manda fazer pouco
barulho para desenhar, e vieram os passeios com a minha amiga Isabel
Lhano pelos trilhos e pela vida toda de artes e noites muito brancas.
Em Coura, há o jeito lindíssimo de Vítor Paulo Pereira e de Tiago
Cunha, que simbolizam o mais lúcido amor pelas suas terras, e veio a
simpatia da dona Ana e do senhor Carlos no restaurante Miquelina, que
me aturaram as manias e ficaram na dúvida de haver uma vespa debaixo
do meu prato, há o sorriso do Jorge na pastelaria Visconde, que se
preocupou por não sobrarem almendrados para mim, e há a amizade do
Jorge e da Rosa, que têm o jardim mais perfeito e o carinho tão
notório pelos convidados. Há a Laura Niemeier e há o João
Carvalho, que tem acesso ao melhor guarda-roupa da vila e está
sempre ao pé de fazer uma festa, há o anfiteatro do Festival que
fica de peito ao sol à espera das bandas e eu sonho que um dia
regressem os Sonic Youth para voltar a ser rigorosamente feliz como
já fui um dia, ali, a vê-los tocar parte do “Daydream Nation”,
muito do meu barulho favorito. Por Coura andou o Nick Cave e andou a
Patti Smith. Eu ainda a procuro entre os pastores. Ali mais para onde
vemos as costas aos pássaros, no cimo, tão maravilhosa quanto eu
maravilhado.
Obrigado a todos. Estive com a cabeça
num certo Brasil, mas foi com o vosso cuidado e tanta paciência que
pude assim imaginar. Espero que termine logo a pandemia, o medo, e
que tenhamos de novo o Festival e essa obrigação grata de voltar.
Obrigado à minha irmã Flor, que foi
a primeira a ler e a considerar que, surpreendentemente, ainda não
enlouqueci.
Valter Hugo Mãe, em As doenças do Brasil
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