[…]
Diadorim vinha constante comigo. Que
viesse sentido, soturno? Não era, não, isso eu é que estava
crendo, e quase dois dias enganoso cri. Depois, somente, entendi que
o emburro era mesmo meu. Saudade de amizade. Diadorim caminhava
correto, com aquele passo curto, que o dele era, e que a brio
pelejava por espertar. Assumi que ele estava cansado, sofrido também.
Aí mesmo assim, escasso no sorrir, ele não me negava estima, nem o
valor de seus olhos. Por um sentir! às vezes eu tinha a cisma de
que, só de calcar o pé em terra, alguma coisa nele doesse. Mas,
essa ideia, que me dava, era do carinho meu. Tanto que me vinha a
vontade, se pudesse, nessa caminhada, eu carregava Diadorim, livre de
tudo, nas minhas costas. Até, o que me alegrava, era uma fantasia,
assim como se ele, por não sei que modo, percebesse meus cuidados, e
no próprio sentir me agradecendo. O que brotava em mim e rebrotava:
essas demasias do coração. Continuando, feito um bem, que sutil, e
nem me perturbava, porque a gente guardasse cada um consigo sua
tenção de bem-querer, com esquivança de qualquer pensar, do que a
consciência escuta e se espanta; e também em razão de que a gente
mesmo deixava de escogitar e conhecer o vulto verdadeiro daquele
afeto, com seu poder e seus segredos; assim é que hoje eu penso.
Mas, então, num determinado, eu disse:
― Diadorim, um mimo eu tenho, para
você destinado, e de que nunca fiz menção... ― o qual era a
pedra de safira, que do Arassuaí eu tinha trazido, e que à espera
de uma ocasião sensata eu vinha com cautela guardando, enrolada numa
pouca de algodão, dentro dum saquitel igual ao de um breve,
costurado no forro da bolsa menorzinha da minha mochila.
De desde que falei, Diadorim quis
muito saber o presente qual era, assim apertando comigo com
perguntas, que sem aperreio deixei de responder, até de tarde,
quando fizemos estância. A parança que foi ― conforme estou vivo
lembrado ― numa vereda sem nome nem fama, corguinho deitado demais,
de água muito simplificada. Aí, quando ninguém não viu, eu saquei
a mochila, desfiz a ponta de faca as costuras, e entreguei a ele o
mimo, com estilo de silêncio para palavras.
Diadorim entrefez o pra-trás de uma
boa surpresa, e sem querer parou aberto com os lábios da boca,
enquanto que os olhos e olhos remiravam a pedra-de-safira no covo de
suas mãos. Ao que, se sofreou no bridado, se transteve sério,
apertou os beiços; e, sem razão sensível nem mais, tornou a me dar
a pedrinha, só dizendo:
― Deste coração te agradeço,
Riobaldo, mas não acho de aceitar um presente assim, agora. Aí
guarda outra vez, por um tempo. Até em quando se tenha terminado de
cumprir a vingança por Joca Ramiro. Nesse dia, então, eu recebo...
Isso, de arrevés, eu li com hagá; e
mesmo antes, quando apontou no rosto dele, para o avermelhar de cor,
a palidez de espécie. Delongando, ainda restei com a pedra-de-safira
na mão, aquilo dado-e-tomado. Donde declarei!
― Escuta, Diadorim! vamos embora da
jagunçagem, que já é o depois-de-véspera, que os vivos também
têm de viver por só si, e vingança não é promessa a Deus, nem
sermão de sacramento. Não chegam os nossos que morremos, e os judas
que matamos, para documento do fim de Joca Ramiro?!
Ah foi ele me ouvir e se encurtar, em
duro que revi, que nem ossos. Ao crespo de um com a afronta a
meia-goela ― e os olhos davam o que deitavam. O que durou só um
átimo, tanto que ele teve mão em seu gênio, conciso com um
suspiro; mas mesmo me retrouxe remoque!
― Riobaldo, você teme?
Tomei sem ofensa. Mas muita era minha
decisão, que eu já tinha aperfeiçoado lá na Fazenda dos Tucanos,
e que só vinha esperando para executar com mais regimento de ordem,
quando se tivesse chegado no Currais-do-Padre, conforme meu sistema
nesses procedimentos.
― Tem que temerei! Você, aí faz o
que em seu querer esteja. Eu viro minha boa volta...
Dar o mal por mal! assim. Eu tinha a
quanta razão. Eu guardei a pedrinha na algibeira, depois melhor
botei, no bolso do cinto; contei minhas favas, refavas. Diadorim
respirava muito. Dele foi o relance!
― Riobaldo, você pensa bem: você
jurou vinga, você é leal. E eu nunca imaginei um desenlace assim,
de nossa amizade... ― ele botou-se adiante. ― Riobaldo, põe
tento no que estou pedindo: tu fica! E tem o que eu ainda não te
disse, mas que, de uns tempos, é meu pressentir: que você pode ―
mas encobre; que, quando você mesmo quiser calcar firme as
estribeiras, a guerra varia de figura...
Arredei: ― Tu diz missa, Diadorim.
Isso comigo não me toca...
Da maneira, ele me tentava. Com
baboseira, a prosável diguice, queria abrandar minha opinião. Então
eu ia crer? Então eu não me conhecia? Um com o meu retraimento, de
nascença, deserdado de qualquer lábia ou possança nos outros ―
eu era o contrário de um mandador. A pra, agora, achar de levantar
em sanha todas as armas contra o Hermógenes e o Ricardão, aos
instigares? Rebulir com o sertão, como dono? Mas o sertão era para,
aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para à força
se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam de reger em
rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre
debaixo da sela. Eu sabia, eu via. Eu disse: nãozão! Me desinduzi.
Talento meu era só o aviável de uma boa pontaria ótima, em arma
qualquer. Ninguém nem mal me ouvia, achavam que eu era zureta ou
impostor, ou vago em aluado. Mesmo eu não era capaz de falar a
ponto. A conversa dos assuntos para mim mais importantes amolava o
juízo dos outros, caceteava. Eu nunca tinha certeza de coisa
nenhuma.
Diadorim disse: ― Ei, retentêia!
Coragem faz coragem...
Demais eu disse: ― Sou
Capitão-General?!...
Antes tantas astúcias, em empalhar
que eu não fosse embora, que eu ficasse preso naquele urjo de
guerra, sem cabo nem ponta, sem costas nem frente, e que maçava.
Recachei. A mão dele, doçura de dada, de leve na minha. Temi
afracar. E em duro repostei, com outra ombrada!
― Vou e vou. Só inda acompanho é
até o Currais-do-Padre. Lá eu requeiro para mim um cavalo bom. E
trovejo no mundo...
Verdadeiro meu propósito era esse,
como está dito. Eu não caturrava. Eu sou assim amor-com-amor, e
ingratidão não. E bem por isso Diadorim não persistiu, com
palavras cordatas; mas por fim disse, de motêjo, zombariazinha!
― Então, que quer mesmo ir, vai.
Riobaldo, eu sei que você vai para onde! relembrado de rever a moça
clara da cara larga, filha do dono daquela grande fazenda, nos gerais
da Serra, na Santa Catarina... Com ela, tu casa. Cês dois assentam
bem, como se combinam...
Nonde nada eu não disse. Se menos
pensei em Otacília. Nem maldisse Diadorim, de que não se calava. A
mais, pirraçou!
― Vai-te, pega essa prenda jóia,
leva dá para ela, de presente de noivado...
Demorei no fazer um cigarro. Nós
estávamos na beira do cerrado, cimo donde a ladeirinha do resfriado
principia; a gente parava debaixo dum paratudo ― pau como diz o
goiano, que é a caraíba mesma ― árvore que respondia à saudade
de suas irmãs dela, crescidas em lontão, nas boas beiras do
Urucúia. Acolá era a vereda. Com o tempo se refrescando, e o
desabafo do ar, burití revira altas palmas. A por perto, se ouvia a
algazarra dos companheiros. De ver, eu tinha dó, minha pena sincera
de Diadorim, nessas jornadas. De verdade, entardecia. Derradeira
arara já revoava.
― ...Ou quem sabe você resolve
melhor mandar de dádiva para aquela mulherzinha especial, a da
Rama-de-Ouro, filha da feiticeira... Arte que essa mais serve,
Riobaldo, ela faz o gozo do mundo, dá açúcar e sal a todo
passante…
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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