A Arnaldo Damasceno Vieira
Reclus, na sua Geografia universal,
tratando do Brasil, notava a necessidade de conservarmos os nomes
tupis dos lugares de uma terra. Têm eles, diz o grande geógrafo, a
vantagem de possuir quase todos um sentido claro, muito claro, nas
suas palavras, exprimindo algum fato da natureza, a cor das águas
correntes, a altura, a forma ou o aspecto dos rochedos, a vegetação
ou a aridez da região. No Rio de Janeiro, há de fato nomes tupis
tão eloquentes, para traduzir a forma ou o encanto dos lugares, que
ficamos pasmos, quando lhes sabemos a significação, com o poder
poético, com a força de emoção superior de que eram capazes os
primitivos canibais habitantes desta região, diante dos aspectos da
natureza tão bela e singular que é a que cerca e limita nossa
cidade. Bastam os nomes da baía. Como não traduz bem a sua sedução,
o seu recato, a sua fascinação, o nome: Guanabara — seio do mar?
E se o mar abriu aqui um seio foi para nele esconder as suas águas.
— Niterói — água escondida.
Esses nomes tupis, nos acidentes
naturais das cercanias da cidade, são os documentos mais antigos que
ela possui das vidas que aqui floresceram e morreram. Edificada em um
terreno que é o mais antigo do globo, nos depósitos sedimentares
das velhas regiões, até hoje não se encontram vestígios quaisquer
da vida pré-histórica. A terra é velha, mas as vidas que viveram
nela não deixaram, ao que parece, nenhum traço direto ou indireto
de sua passagem. Os mais antigos testemunhos das existências
anteriores às nossas, que por aqui passaram, são esses nomes em
linguagem dos índios que habitavam estes lugares; e são assim bem
recentes, relativamente.
Há, parece, na fatalidade destas
terras, uma necessidade de não conservar impressões das sucessivas
camadas de vida que elas deviam ter presenciado o desenvolvimento e o
desaparecimento [sic]. Estes nomes tupaicos mesmo tendem a
desaparecer, e todos sabem que, quando uma turma de trabalhadores, em
escavações de qualquer natureza, encontra uma igaçaba, logo se
apressam em parti-la, em destruí-la como coisa demoníaca ou indigna
de ficar entre os de hoje. A pobre talha mortuária dos tamoios é
sacrificada impiedosamente.
Frágeis eram os artefatos dos índios
e todas as suas outras obras; frágeis são também as nossas de
hoje, tanto assim que os mais antigos monumentos do Rio são de
século e meio; e a cidade vai já para o caminho dos quatrocentos
anos.
O nosso granito vetusto, tão velho
quanto a terra, sobre o qual repousa a cidade, capricha em querer o
frágil, o pouco duradouro. A sua grandeza e a sua antiguidade não
admitem rivais.
Ainda hoje esse espírito do lugar
domina a construção dos nossos edifícios públicos e particulares,
que estão a rachar e a desabar, a todo instante. E como se a terra
não deseje que fiquem nela outras criações, outras vidas, senão
as florestas que ela gera, e os animais que nestas vivem.
Ela as faz brotar, apesar de tudo,
para sustentar e ostentar um instante, vidas que devem desaparecer
sem deixar vestígios. Estranho capricho...
Quer ser um recolhimento, um lugar de
repouso, de parada, para o turbilhão que arrasta a criação a
constantes mudanças nos seres vivos; mas só isto, continuando ela
firme, inabalável, gerando e recebendo vidas, mas de tal modo que as
novas que vierem não possam saber quais foram as que lhes
antecederam.
Desde que as suas rochas surgiram,
quantas formas de vida ela já viu? Inúmeras, milhares; mas de
nenhuma quis guardar uma lembrança, uma relíquia, para que a Vida
não acreditasse que podia rivalizar com a sua eternidade.
Mesmo os nomes índios, como já foi
observado, se apagam, vão se apagando, para dar lugar a nomes banais
de figurões ainda mais banais, de forma que essa pequena antiguidade
de quatro séculos desaparecerá em breve, as novas denominações
talvez não durem tanto.
Nenhum testemunho, dentro em pouco,
haverá das almas que eles representam, dessas consciências tamoias
que tentaram, com tais apelidos, macular a virgindade da incalculável
duração da terra. Sapopemba é já um general qualquer, e tantos
outros lugares do Rio de Janeiro vão perdendo insensivelmente os
seus nomes tupis.
Inhaúma é ainda dos poucos lugares
da cidade que conserva o seu primitivo nome caboclo, zombando dos
esforços dos nossos edis para apagá-lo.
É um subúrbio de gente pobre, e o
bonde que lá leva atravessa umas ruas de largura desigual, que, não
se sabe por quê, ora são muito estreitas, ora muito largas,
bordadas de casas e casitas sem que nelas se depare um jardinzinho
mais tratado ou se lobrigue, aos fundos, uma horta mais viçosa. Há,
porém, robustas e velhas mangueiras que protestam contra aquele
abandono da terra. Fogem para lá, sobretudo para seus morros e
escuros arredores, aqueles que ainda querem cultivar a Divindade como
seus avós. Nas suas redondezas, é o lugar das macumbas, das
práticas de feitiçaria com que a teologia da polícia implica, pois
não pode admitir nas nossas almas depósitos de crenças ancestrais.
O espiritismo se mistura a eles e a sua difusão é pasmosa. A Igreja
católica unicamente não satisfaz o nosso povo humilde. É quase
abstrata para ele, teórica. Da divindade, não dá, apesar das
imagens, de água benta e outros objetos do seu culto, nenhum sinal
palpável, tangível de que ela está presente. O padre, para o
grosso do povo, não se comunica no mal com ela; mas o médium, o
feiticeiro, o macumbeiro, se não a recebem nos seus transes,
recebem, entretanto, almas e espíritos que, por já não serem mais
da terra, estão mais perto de Deus e participam um pouco da sua
eterna e imensa sabedoria.
Os médiuns que curam merecem mais
respeito e veneração que os mais famosos médicos da moda. Os seus
milagres são contados de boca em boca, e a gente de todas as
condições e matizes de raça a eles recorre nos seus desesperos de
perder a saúde e ir ao encontro da Morte. O curioso — o que era
preciso estudar mais devagar — é o amálgama de tantas crenças
desencontradas a que preside a Igreja católica com os seus santos e
beatos. A feitiçaria, o espiritismo, a cartomancia e a hagiologia
católica se baralham naquelas práticas, de modo que faz parecer que
de tal baralhamento de sentimentos religiosos possa vir nascer uma
grande religião, como nasceram de semelhantes misturas as maiores
religiões históricas.
Na confusão do seu pensamento
religioso, nas necessidades presentes de sua pobreza, nos seus
embates morais e dos familiares, cada uma dessas crenças atende a
uma solicitação de cada uma daquelas almas, e a cada instante de
suas necessidades.
A gravidade de pensamento que todo
esse espetáculo provoca e as lembranças históricas que acodem
fazem perguntar se a terra, que não tem querido guardar na sua
grandeza traços das vidas e das almas que por ela têm passado,
ainda desta vez, não consentirá que fiquem vestígios, pegadas,
impressões das atuais que, nela, hoje sofrem e mergulham, a seu
modo, no Mistério que nos cerca, para esquecê-las soturnamente; e
pensa-se isto sob a luz do sol, alegre, clara, forte e alta, que
recorta no céu azul as montanhas que se alongam para tocá-lo, tal
como se vê nesse lugar de Inhaúma, antiga aldeia de índios, a
serra dos Órgãos, solene, soberba...
Numa das ruas desse humilde arrebalde,
antes trilho que mesmo rua, em que as águas cavaram sulcos
caprichosos, todo ele bordado de maricás que, quando floriam,
tocavam-se de flocos brancos, morava em um barracão dona Felismina.
O “barracão” é uma espécie
arquitetônica muito curiosa e muito especial àquelas paragens da
cidade. Não é a nossa conhecida choupana de sapê e de paredes “a
sopapos”. É menos e é mais. É menos, porque em geral é menor,
com muito menos acomodações; e mais, porque a cobertura é mais
civilizada; é de zinco ou de telhas. Há duas espécies. Em uma, as
paredes são feitas de tábuas; às vezes, verdadeiramente tábuas;
em outras, de pedaços de caixões. A espécie, mais aparentada com o
nosso “rancho” roceiro, possui as paredes como este: são de
taipa. Estes últimos são mais baixos e a vegetação das bordas das
ruas e caminhos os dissimula, aos olhos dos transeuntes; mas aqueles
têm mais porte e não se envergonham de ser vistos. Há alguns com
dois aposentos; mas quase sempre, tanto os de uma como de outra
espécie, só possuem um. A cozinha é feita fora, sob um telheiro
tosco, um puxado no telhado da edificação, para aproveitar o abrigo
de uma das paredes da barraca; e tudo cercado do mais desolador
abandono. Se o morador cria galinhas, elas vivem soltas, dormem nas
árvores, misturam-se com as dos vizinhos e, por isso, provocam rixas
violentas entre as mulheres e maridos, quando disputam a posse dos
ovos.
Por vezes, no fundo, na frente ou aos
lados deles, há uma árvore de mais vulto: um cajueiro, um mamoeiro,
uma pitangueira, uma jaqueira, uma laranjeira; mas nenhum sinal de
amanho do terreno, de tentativa de cultura, a não ser um
canteirozinho com uns pés de manjericão ou alecrim. Isto às vezes;
e, às vezes também, uma touceira de bananeira.
A guaxima cresce, e o capim, e a
vassourinha, e o carrapicho e outros arbustos silvestres e tenazes.
O barracão de dona Felismina era de
um só aposento, mas o da vizinha, dona Emerenciana, tinha dois. Eram
ambos da primeira espécie. Dona Emerenciana era casada com o senhor
Romualdo, servente ou coisa que o valha em uma dependência da grande
oficina do Trajano. Era preta como dona Felismina e honesta como ela.
Defronte ficava a residência da Antônia, uma rapariga branca, com
dois filhos pequenos, sempre sujos e rotos. A sua residência era
mais modesta: as paredes do seu barraco eram de taipa.
A vizinhança, ao mesmo tempo que
falava dela, tinha-lhe piedade:
— Coitada! Uma desgraçada! Uma
perdida!
Era bem nova ela, mas fanada pelo
sofrimento e pela miséria. Com os seus vinte e poucos anos de idade,
de boas feições, mesmo delicadas, a sua história devia ser a
triste história de todas essas raparigas por aí...
Mal comendo, ela e os filhos; mal
tendo com que se cobrir, todas as manhãs, quando saía a comprar um
pouco de café e açúcar, na venda do Antunes, e, na padaria do
Camargo, um pão — que lhe teria custado, quem sabe! que profunda
provação no seu pudor de mulher, para ganhá-lo — não se
esquecia nunca de colher pelo caminho uns “boas-noites”, umas
flores de melão-de-são-caetano, de pinhão, de quaresma, de
manacás, de maricás — o que encontrasse — para enfeitar-se ou
trazê-las nas mãos, em ramalhete.
Todos da rua dos Maricás — era este
o nome daquele trilho de Inhaúma — conheciam-lhe a vida, mas com a
piedade e compaixão próprias à ternura do coração do povo
humilde pela desgraça, tratavam-na como outra fosse ela e a
socorriam nas suas horas de maiores aflições. Só o Antunes, o da
venda, com o seu empedernido coração de futuro grande burguês, é
que dizia, se lhe perguntavam quem era:
— Uma vagabunda.
Dona Felismina gozava de toda a
consideração nas cercanias e até de crédito, tanto no Antunes,
como no Camargo da padaria. Além de lavar para fora, tinha uma
pequena pensão que lhe deixara o marido, guarda-freios da Central,
morto em um desastre. Era uma preta de meia-idade, mas já sem
atrativo algum. Tudo nela era dependurado e todas as suas carnes,
flácidas. Lavava todo o dia e todo o dia vivia preocupada com o seu
humilde mister. Ninguém lhe sabia uma falta, um desgarro qualquer, e
todos a respeitavam pela sua honra e virtude. Era das pessoas mais
estimadas da ruela e todos depositavam na humilde crioula a maior
confiança. Só a Baiana tinha-a mais. Esta, porém, era “rica”.
Morava em uma das poucas casas de tijolo da rua dos Espinhos, casa
que era dela. Vendedora de angu, em outros tempos, conseguira juntar
alguma coisa e adquirira aquela casita, a mais bem tratada da rua.
Tinha “homem” enquanto lhe servia; e, quando ele vinha
aborrecê-la mandava-o embora, mesmo a cabo de vassoura. Muito
enérgica e animosa, possuía uma piedade contida que se revelou
perfeitamente numa aventura curiosa de sua vida. Uma manhã, havia
cinco ou seis anos, saindo com o seu tabuleiro de angu, encontrou em
uma calçada um embrulho um tanto grande. Arriou o tabuleiro e foi
ver o que era. Era uma criança, branca — uma menina. Deu os passos
necessários e criava a criança, que, nas imediações, era
conhecida por “Baianinha”. E, ao ir às compras na venda, o
caixeiro lhe dizia por brincadeira:
— “Baianinha”, tua mãe é
negra.
A pequena arrufava-se e respondia com
indignação:
— Negra é tu, “seu” burro!
A Baiana, porém, era “rica”,
estava mais distante. Dona Felismina, porém, ficava mais próximo da
vida de toda aquela gente da rua. Os seus conselhos eram ouvidos e
procurados, e os seus remédios eram aceitos como se partissem da
prescrição de um doutor. Ninguém como ela sabia dar um chá
conveniente, nem aconselhar em casos de dissídias domésticas.
Detestava a feitiçaria, os bruxedos, os macumbeiros, com as suas
orgias e barulhadas; mas inclinava-se para o espiritismo,
frequentando as sessões do “seu” Frederico, um antigo colega do
seu marido, mas branco, que morava adiante, um pouco acima. Além da
medicina de chás e tisanas, ela aconselhava àquela gente os
medicamentos homeopáticos. A beladona, o acônito, a briônia, o
súlfur eram os seus remédios preferidos e quase sempre os tinha em
casa, para o seu uso e dos outros.
Certa vez salvou um dos filhos da
Antônia de uma convulsão e esta lhe ficou tão grata que chegou a
prometer que se emendaria.
Dona Felismina morava com o seu filho
José, o Zeca, um pretinho de pele de veludo, macia de acariciar o
olhar, com a carapinha sempre aparada pelos cuidados da mão de sua
mãe, e também com as roupas sempre limpas, graças também aos
cuidados dela.
Tinha todos os traços de sua raça,
os bons e os maus; e muita doçura e tristeza vaga nos pequenos olhos
que quase ficavam no mesmo plano da testa estreita.
Era-lhe este seu filho o seu braço
direito, o seu único esteio, o arrimo de sua vida com os seus nove
ou dez anos de idade. Doce, resignado e obediente, não havia ordem
de sua mãe que ele não cumprisse religiosamente. De manhã, o seu
encargo era levar e trazer a roupa dos fregueses; e ele carregava os
tabuleiros de roupa e trazia as trouxas; sem o menor desvio de
caminho. Se ia à casa do “seu” Carvalho, ia até lá, entregava
ou recebia a roupa e voltava sem fazer a menor traquinada, a menor
escapada de criança por aquelas ruas que são mais estradas que rua
mesmo. Almoçava e a mãe quase sempre precisava:
— Zeca, vai à venda e traz dois
tostões de sabão “regador”.
Na venda, entre todo aquele pessoal
tão especial e curioso das vendas suburbanas: carroceiros,
verdureiros, carvoeiros, de passagens; habitués do parati, como os
há na cidade de chope; conversadores da vizinhança, gente sem ter
que fazer que não se sabe como vive, mas que vive honestamente; um
ou outro degradado da sua condição anterior ou nascimento — entre
toda essa gente, Zeca era mais imperioso e gritava:
— Caixeiro, “mi” serve já. Dois
tostões de sabão “regador”!
Se o caixeiro estava atendendo à dona
Aninha, mulher do servente dos telégrafos, Fortes, e não vinha
atendê-lo logo, Zeca insistia, fingindo-se irritado:
— “Mi despache”, caixeiro! Dois
tostões de sabão “regador”.
“Seu” Eduardo, o caixeiro, que era
bom e habituado a suportar a insolência dos pequenos que vão às
compras, fazia docemente:
— Espere, menino. Você não vê que
estou servindo, aqui, a dona Aninha!
A mãe tinha vontade de pô-lo no
colégio; ela sentia a necessidade disso todas as vezes que era
obrigada a somar os róis. Não sabendo ler, escrever e contar, tinha
que pedir a “seu” Frederico, aquele “branco” que fora colega
de seu marido. Mas, pondo-o no colégio, quem havia de levar-lhe e
trazer-lhe a roupa? Quem havia de fazer-lhe as compras?
À tarde, Zeca descansava, brincava
com as crianças do lugar um pouco; mas, ao anoitecer, já estava
perto da mãe que remendava a roupa dos fregueses, à luz do lampião
de querosene, cuja fumaça enegrecia o zinco do teto do barracão.
Se bem fosse com a mãe todos os meses
receber a módica pensão que o pai deixara, na Caixa dos
Guarda-Freios, o seu sonho não era viver no centro da cidade, nas
suas ruas brilhantes, cheias de bondes, automóveis, carroças e
gente. Zeca desprezava aquilo tudo. O seu sonho era o Engenho de
Dentro e o seu cinema. Ter dinheiro, para ir sempre a ele, ver-lhe
instantemente as “fitas” que os grandes cartazes anunciavam e o
tímpano a soar continuamente insistia no convite de vê-las. Quando
sua mãe permitia, aos domingos, com outra criança ajuizada da
vizinhança, ia até à estação, até lá, defronte do fascinante
cinema. Encostava-se, então, à grade da estrada de ferro e ficava a
olhar, no alto, minutos a fio, aqueles grandes painéis, cheios de
grandes figuras, deslumbrantes na sua cercadura de lâmpadas
elétricas, como se tudo aquilo fosse uma promessa de felicidade.
Como atingiria aquilo? O céu talvez não fosse mais belo... Em cima
dos seus tamancos domingueiros, com o terno de casimira que a
caridade do coronel Castro lhe dera, e a tesoura de sua mãe adaptara
a seu corpo, ele, fascinado, não pensava senão naquele cinema
brilhante de luzes e apinhado de povo. Nem o apito dos trens o
distraía e só a passagem dos bondes elétricos aborrecia-o um
pouco, por lhe tirar vista do divertimento. Não tinha inveja dos que
entravam; o que ele queria era entrar também.
Como havia de ser uma “fita”? As
moças se moviam sob luzes? Como faziam-nas grandes, parecidas? Como
apareciam os homens tal e qual? As árvores e as ruas? E sem falar,
como é que tudo aquilo falava?
Podia ter dinheiro para ir, pois, em
geral, sempre os fregueses de sua mãe lhe davam um níquel ou outro;
mas, mal os apanhava, levava-os à mãe que sempre andava necessitada
deles, para a compra do trincal, do polvilho, do sabão e mesmo para
a comida que comiam. Distraí-los com o cinema seria feio e
ingratidão para com a sua mãe. Um dia havia de ir ao cinema, sem
sacrificá-la, sem enganá-la, como mau filho. Ele não o era como o
Carlos que furtava os do próprio pai...
Zeca, por seu procedimento, pela sua
dedicação à mãe, era muito estimado de todos e todos lhe davam
gratificações, gorjetas, balas, frutas, quando ia entregar ou
buscar a roupa.
Muitos se interessavam com a mãe,
para pô-lo em um recolhimento, em um asilo; ela, porém, embora
quisesse vê-lo sabendo ler, sempre objetava, e com razão, a
necessidade que tinha dos seus serviços, pois era este seu único
filho o braço direito dela, seu único auxílio, o seu único
“homem”.
Uma vez quase cedeu. O “seu”
Castro, o coronel, empregado aposentado da alfândega, conhecido em
Inhaúma pelo seu gênio benfazejo e seu infortúnio com os filhos e
filhas, viera-lhe até à sua própria casa, até àquele barracão,
naquela modesta rua, bordada de um lado e outro de sebes de maricás
e de “pinhão”, e expôs-lhe a que vinha. Dona Felismina
respondeu-lhe com lágrimas nos olhos:
— Não posso, “seu” coronel; não
posso... Como hei de viver sem ele? É ele quem me ajuda... Sei bem
que é preciso aprender, saber, mas...
— Você vai lá para casa,
Felismina; e não precisa estar se matando.
Titubeou a rapariga e o velho
funcionário compreendeu, pois desde há muito já tinha
compreendido, na gente de cor, especialmente nas negras, esse amor,
esse apego à casa própria, à sua choupana, ao seu rancho, ao seu
barracão — uma espécie de Protesto de Posse contra a dependência
da escravidão que sofreram durante séculos. Apesar da recusa, o
coronel Castro, em quem a idade e as desgraças domésticas tinham
mais enchido de bondade o seu coração naturalmente bom, nunca
deixou de interessar-se pela criança, que o penalizava
excessivamente. A sua meiguice, a sua resignação, aquele árduo
trabalho diário para a sua idade eram motivos para que o velho e
tristonho aposentado sempre a olhasse com a mais extremada simpatia.
Quando o pretinho ia à sua casa levar-lhe a sua ou a roupa das
filhas, dava-lhe sempre qualquer coisa, puxava-lhe a língua,
perguntava-lhe pelas suas necessidades.
Certo dia, em começo do ano, o
pequeno Zeca chegou-lhe em casa com a fisionomia um tanto
transtornada. Parecia ter chorado e muito. O coronel, homem para
quem, como disse um sábio, não havia nada insignificante e
desprezível que pudesse causar dor ou prazer à mais humilde
criatura, que não merecesse a atenção do filósofo — o coronel
interrogou-o sobre o motivo de sua mágoa.
— Foi tua mãe?
— Não, “seu” coronel.
— Que foi, então, Zeca?
O pequeno não quis dizer e não
cessava de olhar o chão, de encará-lo, de cravá-lo, de cavá-lo,
de enterrar toda a sua vida nele. Zeca estava na varanda de uma velha
casa de fazenda, como ainda as há muito por lá, varanda em
parapeito e colunas, no clássico estilo dessas velhas habitações;
o coronel nela também estava lendo os jornais, na cadeira de
balanço, e só deixara a leitura quando avistou o pequeno que subia
a ladeira com o tabuleiro de roupa à cabeça.
A atitude do pequeno, a sua recusa em
confessar o motivo do seu choro e o seu todo de desalento fizeram que
o velho funcionário, já por ternura natural, já por bondosa
curiosidade, procurasse a causa da dor que feria tão profundamente
aquela criança tão pobre, tão humilde, tão desgraçada, quase
miserável.
— Dize, Zeca. Dize que eu te darei
uma vestimenta de “diabinho” no Carnaval que está aí.
O pretinho levantou a cabeça e olhou
com um grande e brusco olhar de agradecimento, de comovido
agradecimento àquele velho de tão belos cabelos brancos.
Confessou; e Castro nada disse a
ninguém da humilde e ingênua confissão do pretinho Zeca.
Aproximou-se o Carnaval; e, quando foi
sábado, véspera dele, dona Felismina retirou mais cedo dos arames a
roupa branca que estivera a secar.
Atarefada com esse serviço, ela não
viu que o seu filho entrara-lhe pelo barracão adentro, sobraçando
um embrulho guizalhante e um outro, com rasgões no papel, por onde
saíam recurvados chifres e uma formidável língua vermelha. Era uma
horrível máscara de “diabo”.
Dona Felismina veio para o interior do
barracão; e pôs-se a arrumar a roupa seca ou corada. Zeca,
distraído, no outro extremo do aposento, não a viu entrar e,
julgando-a lá fora, desembrulhou os apetrechos carnavalescos. Sobre
a humilde e tosca mesa de pinho estendeu uma rubra vestimenta de
ganga rala e uma máscara apavorante de olhos esbugalhados, língua
retorcida e chifres agressivos, apareceu tão amedrontadora que se o
próprio diabo a visse teria medo.
A mãe, ao barulho dos guizos,
virou-se, e, vendo aquilo, ficou subitamente cheia de más suspeitas:
— Zeca, que é isso?
Uma visão dolorosa lhe chegou aos
olhos, da casa de detenção, das suas grades, dos seus muros
altos... Ah! meu Deus! Antes uma boa morte!... E repetiu ainda mais
severamente:
— Que é isso, Zeca? Onde você
arranjou isso?
— Não... mamãe... não...
— Você roubou, meu filho?... Zeca,
meu filho! Pobre, sim; mas ladrão, não! Ah! meu Deus!... Onde você
arranjou isso, Zeca?
A pobre mulher quase chorava e o
pequeno, transido de medo e com a comoção diante da dor da mãe,
balbuciava, titubeava e as palavras não lhe vinham. Afinal, disse:
— Mas... mamãe... não foi assim...
— Como foi? Diz!
— Foi “seu” Castro quem me deu.
Eu não pedi...
Dona Felismina sossegou e o pequeno
também. Passados instantes, ela perguntou com outra voz:
— Mas para que você quer isso?
Antes tivesse dado a você umas camisas... Para que essas bobagens?
Isso é para gente rica, que pode. Enfim...
— Mas, mamãe, eu aceitei, porque
precisava.
— Disto! Ninguém precisa disto!
Precisa-se de roupa e comida... Isto são tolices!
— Eu precisava, sim senhora.
— Como, você precisava?
— Não lhe contei que há meses,
diversas vezes, quando passava, para ir à casa de dona Ludovina,
diante do portão do capitão Albuquerque, os meninos gritavam: ó
moleque! — ó moleque! — ó negro! — ó gibi!? Não lhe contei?
— Contou-me; e daí?
— Por isso quando o coronel me
prometeu a fantasia, eu aceitei.
— Que tem uma coisa com a outra?
— Queria amanhã passar por lá e
meter medo aos meninos que me vaiaram.
Lima Barreto, em Contos Completos

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