segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Darl


Cash está deitado de costas no chão, a cabeça pousada sobre uma roupa dobrada. Tem os olhos fechados, o rosto cinzento, o cabelo tão grudado à testa, de viés, que parece pintado ali por uma brocha. Seu rosto parece haver afundado um pouco, encovado ao redor das órbitas, do nariz, das gengivas, como se a água houvesse desfeito a firmeza da carne que mantinha a pele esticada; os dentes, enfiados nas gengivas esbranquiçadas, estão um pouco entreabertos, como se ele risse para si mesmo. Está estirado qual uma vara, em suas roupas encharcadas, e uma pequena mancha de vômito formou-se junto à sua cabeça; um fio de vômito escorre-lhe do canto da boca, pelo queixo, como se ele não pudesse virar a cabeça depressa, ou à distância desejada, até que Dewey Dell se debruça e limpa-o com a barra do vestido.
Jewel aproxima-se. Traz a plaina. “Vernon acaba de encontrar o esquadro”, diz. Baixa os olhos para Cash, pingando água também. “Ele ainda não falou?” “Ele trazia a serra, o martelo, a linha de marcar o nível e a régua”, eu digo. “Tenho certeza.” Jewel põe o esquadro no chão. Pai observa-o. “As ferramentas não podem estar longe”, diz Pai. “Caíram juntas no mesmo lugar. Que homem mais azarado eu sou.” Jewel não olha para Pai. “Melhor chamar Vardaman aqui”, diz. Olha Cash. Em seguida, volta-se e vai embora. “Façam-no falar o mais rápido possível”, diz, “a fim de que ele nos informe o que tinha mais.” Voltamos ao rio. A carroça está posta a secar, com as rodas calçadas (cuidadosamente: todos nós ajudamos, e parece que na forma tosca, familiar e inerte da carroça, resta, latente e contudo imediata, aquela violência que esfalfou as mulas que a puxavam não faz ainda uma hora) na ponta de terra não alcançada pela inundação. No fundo da carroça o caixão jaz profundamente, com as compridas tábuas ainda marcadas pela umidade, e no entanto ainda amarelas, como ouro visto através da água, a não ser em dois lugares onde há riscos de lama. Passamos pela carroça e vamos à beira do rio.
Uma das pontas da corda está amarrada a uma árvore. Na fimbria da corrente, com água até os joelhos, Vardaman inclina-se um pouco e contempla Vernon com grande fascínio. Parou de gritar e está molhado até as axilas. Vernon encontra-se na outra extremidade da corda, mergulhado até os ombros, de rosto voltado para Vardaman. “Um pouco mais atrás”, diz. “Recue até a árvore e segure a corda em meu lugar, para que ela não escape.” Vardaman retrocede ao longo da corda, até a árvore, movimentando-se como um cego, e tendo os olhos postos em Vernon. Ao chegarmos, olha uma vez para nós, com olhos redondos e espantados. Em seguida, volta a olhar Vernon, naquela atitude de completo fascínio.
Encontrei também o martelo”, diz Vernon. “A linha de marcar já devia ter aparecido. Devia estar flutuando.”
Flutuou rio abaixo”, diz Jewel. “Não conseguiremos achá-la. Mas seria bom encontrar a serra.”
Sem dúvida”, diz Vernon. Olha para a água. “E a linha de marcar também. Que mais ele tinha?”
Ainda não voltou a falar”, diz Jewel entrando na água. Olha para mim, que estou atrás. “Volte, levante-o e veja se ele fala’, diz.
Pai está lá”, eu digo. Acompanho Jewel pela água, ao longo da corda. Sinto a corda viva na minha mão, inchada em arco prolongado e ressonante. Vernon me observa.
Melhor você ir”, diz. “Melhor ficar com ele.”
Vamos ver se tiramos mais alguma coisa da água, antes que a corrente leve tudo”, eu digo.
Agarrados à corda, a corrente encrespa-se e redemoinha em volta dos nossos ombros. Mas, sob esta aparente brandura, a verdadeira força da corrente nos empurra preguiçosamente. Eu não imaginava que a água no mês de julho pudesse ser tão fria. Até parece que mãos geladas modelam nossos ossos. Vernon ainda olha para trás, para a margem.
Será que a corda aguenta nós todos?”, pergunta. Olhamos também para trás, acompanhando a rígida barra da corda, no lugar em que se levanta da água até a árvore, e Vardaman encurvado, perto da corda, sempre a nos observar. “Tomara que minha mula tenha ido para casa”, diz Vernon.
Vamos”, diz Jewel. “Vamos acabar logo com isto aqui.” Mergulhamos por turno, segurando a corda, perto um dos outros, enquanto a fria muralha sorve para trás, em contracorrente, a lama do fundo, e ficamos suspensos, sondando o gelado fundo do rio. Até mesmo o lodo não tem firmeza ali. Tem algo de fugidio, de calafrio, como se a terra embaixo de nós estivesse também em movimento. Do braços estendidos, tocando-nos, sem perder contato uns com os outros, exploramos cautelosamente o trecho assinalado pela corda; ou então, de pé, quando nos toca a vez, observamos a água retrair-se e borbulhar no lugar onde um dos outros dois homens perscruta a superfície. Pai desceu à beira do rio e se pôs a nos observar.
Vernon emerge, pingando água, com a cara descaindo para a boca ofegante. Tem a boca azulada, como um pedaço redondo de borracha estragado pelo tempo. Traz a régua.
Ele vai ficar contente”, digo. “A régua é nova. Ele encomendou-a o mês passado, pelo catálogo!” “Se a gente soubesse o que ele tinha mais...”, diz Vernon, olhando por sobre o ombro e virando-se, depois, para onde Jewel havia desaparecido. “Ele não mergulhou antes de mim”, Vernon diz. “Não sei”, eu digo. “Creio que sim. Sim, ele mergulhou antes.” Observamos a espessa superfície encaracolada; que se afasta de nós em círculos vagarosos.
Deem-lhe um puxão na corda”, diz Vernon.
Ele está do seu lado”, eu digo.
Não há ninguém aqui”, ele diz.
Puxe”, eu digo. Mas ele já deu o puxão, esticando a ponta da corda acima da água; e então vemos Jewel. Está a uns dez metros de distância; vem à superfície, respirando pesadamente, e olha para nós, sacudindo o comprido cabelo preto com um violento movimento da cabeça, depois, olha para a margem; podemos vê-lo a encher os pulmões.
Jewel”, diz Vernon, não muito forte, mas com voz cheia e clara sobre a água, peremptória e, no entanto, comedida. “Deve estar aqui por perto. É melhor você voltar.” Jewel mergulha de novo. Em pé, dobrados contra a corrente, olhamos o lugar onde ele desapareceu, pegando na corda morta como dois homens que empunhassem o bocal de uma mangueira de incêndio, à espera de que houvesse água. De súbito, Dewey Dell surge às nossas costas, dentro da água. “Façam-no voltar”, ela diz. “Jewell”, grita. Ele sobe outra vez, puxando o cabelo preto de cima dos olhos. Agora está nadando na direção da margem, a corrente forçando-o à deriva. “Ei, Jewell”, chama Dewey Dell. Continuamos em pé, segurando a corda, vendo-o chegar à beira do rio e subir a ribanceira. Ao sair da água, abaixa-se e pega alguma coisa. Retrocede ao longo da margem. Acaba de encontrar a linha de marcar. Chega defronte da gente e fica parado, olhando em redor, como à procura de alguma coisa. Pai caminha pela margem. Vai até o lugar onde as mulas flutuam os corpos gordos e esfregam-se na água preguiçosa da curva do rio.
Que fez do martelo, Vernon?”, pergunta Jewel.
Dei-o a ele”, diz Vernon, sacudindo a cabeça na direção de Vardaman. Vardaman está olhando para Pai. Em seguida, olha Jewel. “Junto com o esquadro.” Vernon observa Jewel. Dirige-se à margem, passando por Dewey Dell e por mim.
Saia daqui”, eu digo. Ela não responde, olhando para Jewel e Vernon. “Onde está o martelo?”, pergunta Jewel. Vardaman corre pela beira do rio, a fim de apanhá-lo. “Ele é mais pesado que a serra”, diz Vernon. Jewel está atando a ponta da linha de marcar na cabeça do martelo. “Mas o martelo tem mais madeira”, diz Jewel. Ele e Vernon estão frente a frente, olhando as mãos de Jewel. “E também é mais liso”, diz Vernon. “Flutuaria três vezes melhor, ou quase. Experimente a plaina.” Jewel olha para Vernon. Vernon também é alto; compridos e delgados, eles se encaram em suas roupas molhadas e coladas ao corpo. Lon Quick é capaz de olhar o céu cheio de nuvens e dizer que horas são, com uma margem de erro de dez minutos apenas. Eu me refiro ao velho Lon, não ao filho.
Por que não sai para fora da água?”, eu digo.
Não flutuaria tão bem quanto a sena”, diz Jewel.
Flutuará melhor com a serra do que com o martelo”, diz Vernon.
Quer apostar?”, diz Jewel.
Não aposto”, diz Vernon.
Continuam em pé, observando as mãos calmas de Jewel. “Diabo”, diz Jewel. “Traga a plaina.”
Pegam a plaina, amarram-na à linha de marcar e entram outra vez no rio. Pai volta pela margem. Para um instante e nos olha, encurvado, lúgubre, como um boi abatido ou como um grande pássaro velho.
Vernon e Jewel retomam, fazendo força contra a corrente. “Saia do caminho”, Jewel diz a Dewell. “Saia de dentro da água.”
Ela se aperta um pouco contra mim para deixá-los passar; Jewel segura a plaina no alto, como se fosse um objeto bem frágil, e o cordel azul deixa um risco preto em seu ombro. Passam por nós e param; discutem, com calma, qual o exato lugar em que a carroça tombou.
Darl deve saber”, diz Vernon. E olham para mim. “Não sei”, digo. “Não fiquei muito tempo lá.”
Diabo”, diz Jewel. Avançam cautelosamente, dobrados contra a corrente, procurando sentir o vau com os pés. “Você segurou bem a corda?”, pergunta Vernon. Jewel não responde. Lança um olhar calculista à margem, e depois à água. Atira a plaina longe, deixando o cordel correr entre os dedos, os dedos tomando-se azuis por causa da fricção. Quando o cordel termina, ele estende-o a Vernon. “Melhor deixar que eu vá esta vez”, diz Vernon. Mais uma vez. Jewel não responde. Nós o vemos mergulhar. “Jewel”, geme Dewey Dell. “Não é tão profundo aqui”, diz Vernon. Ele não olha para trás. Está olhando a água no lugar onde Jewel mergulhou. Quando Jewel volta à superfície traz a serra. Ao passarmos pela carroça, Pai está em pé, ao lado do caixão, esfregando as riscas de lama com um punhado de folhas. Contra o fundo do bosque, o cavalo de Jewel parece uma colcha de retalhos pendurada de uma corda.
Cash ainda não se mexeu. Paramos ao redor, segurando a plaina, a serra, o martelo, o esquadro, a régua, a linha de marcar, enquanto Dewey Dell se debruça para erguer-lhe a cabeça.
Cash”, ela diz, “Cash.” Ele abre os olhos e fita com intensidade nossos rostos invertidos.
Não pode haver ninguém mais desgraçado que eu”, diz Pai.
Olhe, Cash”, dizemos, segurando as ferramentas de forma que possa vê-las. “Você tinha outras coisas?”
Ele tenta falar, rolando a cabeça, fechando os olhos.
Cash”, dizemos. “Cash.”
É para vomitar que ele vira a cabeça. Dewey Dell enxuga-lhe a boca com a barra molhada do vestido; só então ele consegue falar.
É o amolador”, diz Jewel. “O novo, aquele que ele comprou quando comprou a régua.”
Afasta-se. Vernon, ainda acocorado, acompanha-o com o olhar. Em seguida, ergue-se e segue Jewel até a beira do rio.
Não pode haver ninguém mais desgraçado que eu”, diz Pai. Em pé, como está, sua figura domina a nós todos, que estamos de cócoras; parece uma escultura grosseiramente esculpida em madeira ruim por um caricaturista bêbado. “É mesmo um castigo”, diz. “Mas não lhe quero mal. Ninguém pode dizer que eu me queixei dela.”
Dewey Dell deitou a cabeça de Cash no casaco dobrado, torcendo-a um pouco para evitar o vômito. Ao seu lado jazem as ferramentas. “Este pode ser considerado um sujeito de sorte, pois é a mesma perna que ele quebrou quando caiu do alto da igreja”, diz Pai. “Mas eu não me queixo dela.”
Jewel e Vernon voltaram ao rio. Daqui de cima, eles não parecem violar, em absoluto, a superfície da água; é como se a água os tivesse cortado de um só talho, deixando apenas os torsos, que se movem com infinitesimal e cômica cautela sobre a superfície. Tudo aprazível, como um maquinismo que a gente observa e escuta durante longo tempo. Como se esse coágulo que somos nós, dissolvido na miríade do movimento original, nos tornasse cegos e surdos para ver e ouvir a nós próprios; e toda a nossa fúria se aplacasse na estagnação. De cócoras, Dewey Dell modela, com seu vestido encharcado, para os olhos de três homens cegos, essas rotundidades mamárias que são os horizontes e os vales da terra.

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

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