Naquele dia, — já lá vão dez
anos! — o Dr. Félix levantou-se tarde, abriu a janela e
cumprimentou o sol. O dia estava esplêndido; uma fresca bafagem do
mar vinha quebrar um pouco os ardores do estio; algumas raras
nuvenzinhas brancas, finas e transparentes se destacavam no azul do
céu. Chilreavam na chácara vizinha à casa do doutor algumas aves
afeitas à vida semi-urbana, semi-silvestre que lhes pode oferecer
uma chácara nas Laranjeiras. Parecia que toda a natureza colaborava
na inauguração do ano. Aqueles para quem a idade já desfez o viço
dos primeiros tempos, não se terão esquecido do fervor com que esse
dia é saudado na meninice e na adolescência. Tudo nos parece melhor
e mais belo, — fruto da nossa ilusão, — e alegres com vermos o
ano que desponta, não reparamos que ele é também um passo para a
morte.
Teria esta última ideia entrado no
espírito de Félix, ao contemplar a magnificência do céu e os
esplendores da luz? Certo é que uma nuvem ligeira pareceu toldar-lhe
a fronte. Félix embebeu os olhos no horizonte e ficou largo tempo
imóvel e absorto, como se interrogasse o futuro ou revolvesse o
passado. Depois, fez um gesto de tédio, e parecendo envergonhado de
se ter entregue à contemplação interior de alguma quimera, desceu
rapidamente à prosa, acendeu um charuto, e esperou tranquilamente a
hora do almoço.
Félix entrava então nos seus trinta
e seis anos, idade em que muitos já são pais de família, e alguns
homens de Estado. Aquele era apenas um rapaz vadio e desambicioso. A
sua vida tinha sido uma singular mistura de elegia e melodrama;
passara os primeiros anos da mocidade a suspirar por coisas
fugitivas, e na ocasião em que parecia esquecido de Deus e dos
homens, caiu-lhe nas mãos uma inesperada herança, que o levantou da
pobreza. Só a Providência possui o segredo de não aborrecer com
esses lances tão estafados no teatro.
Félix conhecera o trabalho no tempo
em que precisava dele para viver; mas desde que alcançou os meios de
não pensar no dia seguinte, entregou-se corpo e alma à serenidade
do repouso. Mas entenda-se que não era esse repouso aquela
existência apática e vegetativa dos ânimos indolentes; era, se
assim me posso exprimir, um repouso ativo, composto de toda a espécie
de ocupações elegantes e intelectuais que um homem na posição
dele podia ter.
Não direi que fosse bonito, na
significação mais ampla da palavra; mas tinha as feições
corretas, a presença simpática, e reunia à graça natural a
apurada elegância com que vestia. A cor do rosto era um tanto
pálida, a pele lisa e fina. A fisionomia era plácida e indiferente,
mal alumiada por um olhar de ordinário frio, e não poucas vezes
morto.
Do seu caráter e espírito melhor se
conhecerá lendo estas páginas, e acompanhando o herói por entre as
peripécias da singelíssima ação que empreendo narrar. Não se
trata aqui de um caráter inteiriço, nem de um espírito lógico e
igual a si mesmo; trata-se de um homem complexo, incoerente e
caprichoso, em quem se reuniam opostos elementos, qualidades
exclusivas e defeitos inconciliáveis.
Duas faces tinha o seu espírito, e
conquanto formassem um só rosto, eram todavia diversas entre si, uma
natural e espontânea, outra calculada e sistemática. Ambas, porém,
se mesclavam de modo que era difícil discriminá-las e defini-las.
Naquele homem feito de sinceridade e afetação tudo se confundia e
baralhava. Um jornalista do tempo, seu amigo, costumava compará-la
ao escudo de Aquiles — mescla de estanho e ouro, — “muito menos
sólido”, acrescentava ele.
Aquele dia, aurora do ano, escolhera-o
o nosso herói para ocaso de seus velhos amores. Não eram velhos;
tinham apenas seis meses de idade. E contudo iam acabar sem saudade
nem pena, não só porque já lhe pesavam, como também porque Félix
lera pouco antes um livro de Henri Murger, em que achara um
personagem com o sestro destas catástrofes prematuras. A dama dos
seus pensamentos, como diria um poeta, recebia assim um golpe moral e
literário.
Havia meia hora já que o doutor saíra
da janela, quando lhe apareceu uma visita. Era um homem de quarenta
anos, vestido com certo apuro, gesto ao mesmo tempo familiar e grave,
estouvado e discreto.
— Entre, Sr. Viana, disse Félix
quando o viu aparecer à porta da sala. Vem almoçar comigo, já sei.
— Esse é um dos três motivos da
minha visita, respondeu Viana; mas afirmo-lhe que é o último.
— Qual é o primeiro?
— O primeiro, disse o recém-chegado,
é dar-lhe o cumprimento de bons anos. Folgo que lhe corra este tão
feliz como o passado. O segundo motivo é entregar-lhe uma carta do
coronel.
Viana tirou uma cartinha da algibeira
e entregou-a ao doutor, que a leu rapidamente.
— Creio que é um convite para o
sarau de hoje? perguntou Viana quando o viu dobrar a carta.
— É; transtorna-me um pouco, porque
eu tencionava ir para a Tijuca.
— Não caia nessa, acudiu Viana; eu
era capaz de deixar todas as viagens do mundo só para não perder
uma reunião do coronel; é um excelente homem, e dá boas festas.
Vai?
Félix hesitou algum tempo.
— Olhe que eu venho incumbido de lhe
destruir todas as objeções que fizer, disse Viana.
— Não faço nenhuma. O convite
transtorna-me o programa; mas, apesar disso, aceito.
— Ainda bem!
Um moleque veio dar parte de que o
almoço estava na mesa. Viana descalçou as luvas e acompanhou o
anfitrião.
— Que novidades há? perguntou Félix
sentando-se à mesa.
— Nada que me conste, respondeu
Viana imitando o dono da casa; o Rio de Janeiro vai a pior.
— Sim?
— É verdade; já não aparece um
escândalo. Vivemos em completa abstinência, e chegou o reinado da
virtude. Olhe, eu sinto a nostalgia da imoralidade.
Viana era um homem essencialmente
pacato com a mania de parecer libertino, mania que lhe resultava da
frequência de alguns rapazes. Era casto por princípio e
temperamento. Tinha a libertinagem do espírito, não a das ações.
Fazia o seu epigrama contra as reputações duvidosas, mas não era
capaz de perder nenhuma. E, todavia, teria um secreto prazer se o
acusassem de algum delito amoroso, e não defenderia com extremo
calor a sua inocência, contradição que parece algum tanto absurda,
mas que era natural.
Como Félix não lhe animasse a
conversa no terreno em que ele a pôs, Viana entrou a elogiar-lhe os
vinhos.
— Onde acha o senhor vinhos tão
bons? perguntou depois de esvaziar um cálice.
— Na minha algibeira.
— Tem razão; o dinheiro compra
tudo, inclusive os bons vinhos.
A resposta de Félix foi um sorriso
ambíguo, que podia ser benevolente ou malévolo, mas que pareceu não
produzir impressão no hóspede. Viana era um parasita consumado,
cujo estômago tinha mais capacidade que preconceitos, menos
sensibilidade que disposições. Não se suponha, porém, que a
pobreza o obrigasse ao ofício; possuía alguma coisa que herdara da
mãe, e conservara religiosamente intacto, tendo até então vivido
do rendimento de um emprego de que pedira demissão por motivo de
dissidência com o seu chefe. Mas estes contrastes entre a fortuna e
o caráter não são raros. Viana era um exemplo disso. Nasceu
parasita como outros nascem anões. Era parasita por direito divino.
Não me parece provável que houvesse
lido Sá de Miranda; todavia, punha em prática aquela máxima de um
personagem do poeta: “boa cara, bom barrete e boas palavras, custam
pouco e valem muito...”
Chamando-lhe parasita não aludo só à
circunstância de exercer a vocação gastronômica nas casas
alheias. Viana era também o parasita da consideração e da amizade,
o intruso polido e alegre, que, à força de arte e obstinação,
conseguia tornar-se aceitável e querido, onde a princípio era
recebido com tédio e frieza, um desses homens metediços e
dobradiços que vão a toda a parte e conhecem todas as pessoas, “boa
cara, bom barrete, boas palavras”.
Parecendo-lhe que Félix estaria
preocupado, Viana entendeu não dizer palavra antes de achar ocasião
oportuna. Veio o café, e o primeiro que rompeu o silêncio foi o
doutor. Viana aproveitou habilmente o ensejo para reatar o fio dos
louvores, tão asperamente quebrado pelo dono da casa. Não lhe
elogiou desta vez os vinhos, mas as qualidades pessoais; afirmou-lhe
que ninguém era mais querido na casa do Coronel Morais, e que ele
próprio não se recordava de pessoa a quem mais estimasse neste
mundo.
— O senhor é tão feliz a este
respeito, terminou o hóspede, que até as pessoas que o não veem há
muito conservam em toda a integridade o afeto que o senhor lhes
inspirou. Adivinha de quem lhe falo?
— Não.
— Bem, sabê-lo-á de noite; lá
verá em casa do coronel uma pessoa que o admira, e que o não vê há
muito. Sejamos francos; é minha irmã Lívia.
— Admira-me isso, porque eu apenas a
vi duas vezes.
— Não é possível, insistiu Viana.
Lembra-me que eu mesmo os apresentei um ao outro. Se não me engano
foi em dia da Glória, há dois anos…
— Eu descia o outeiro, continuou
Félix, quando os encontrei. Estivemos parados cinco minutos. À
noite encontramo-nos em um baile; cumprimentamo-nos apenas e nada
mais.
— Só isso?
— Nada mais.
— Nesse caso, concluiu Viana, cuido
que o senhor possui o segredo de fascinar as moças, só com cinco
minutos de conversa e um cumprimento de sala. Minha irmã fala muito
no senhor; pelo menos depois que veio de Minas…
— Ah! ela esteve em Minas?
— Foi para lá há perto de dois
anos, depois que lhe morreu o marido. Veio há oito dias; sabe o que
me propõe?
— Não.
— Uma viagem à Europa.
— E vão?
— Os desejos de Lívia são ordens
para mim. Contudo era talvez melhor que eu fosse só, porque uma
senhora é sempre obstáculo aos desmandos de um pecador como eu. Não
lhe parece?
— É então uma viagem de recreio?
perguntou Félix.
— Ou de romance; Lívia tem esse
defeito capital: é romanesca. Traz a cabeça cheia de caraminholas,
fruto naturalmente da solidão em que viveu nestes dois anos e dos
livros que há de ter lido. Faz pena porque é boa alma.
— Vejo que tem todas as condições
necessárias a um poeta, observou o doutor; lembra-me que era bonita.
— Oh! a esse respeito a viuvez foi
para ela uma renovação. Era bonita quando o senhor a viu; hoje está
fascinante. Há ocasiões em que eu sinto ser irmão dela; tenho
ímpetos de a adorar de joelhos. Com franqueza, assusta-me.
Leve sorriso encrespou os lábios de
Félix, enquanto Viana prosseguia o panegírico da irmã, com um
entusiasmo que podia ser sincero e interessado ao mesmo tempo. Ao fim
de um quarto de hora levantou-se este para sair.
— Até à noite? disse, apertando a
mão do dono da casa.
— Até à noite.
Félix ficou só.
— Que mulher será essa, perguntou a
si mesmo, tão bela que mete medo, tão fantasiosa que causa lástima?
Machado de Assis, em Ressurreição

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