Hoje acordei com vontade de mentir,
coisa que raramente me acontece. Peguei do relógio e atrasei-o duas
horas. Desta maneira faltaria pontualmente a todos os compromissos, e
seriam outras tantas mentiras a pregar para justificar-me.
Em seguida, li o jornal pelo avesso
das notícias. Os marginais evadidos voltavam espontaneamente à
penitenciária, declarando que tinham fugido em estado de
sonambulismo, pelo que pediam desculpas e exigiam ser mais vigiados.
A paz fora assinada em Saigon e abrangia o Oriente Médio, a Irlanda
do Norte, as possessões portuguesas e outras áreas não
televisionadas. Notei que não figurava minha pessoa na telefoto da
assinatura do tratado de paz universal, mas logo me lembrei de que
assistira incógnito à cerimônia para não despertar ressentimento
em Kissinger.
Como as ações do Banco do Brasil
tinham chegado na véspera a Cr$ 300 000 cada, telefonei ao meu
corretor, recomendando-lhe vender as quatrocentas e cinquenta mil que
possuo daquele estabelecimento, pois não desejo ser exageradamente
rico; e decidi aplicar o produto na concessão de bolsas de estudo a
índios calapalos, até hoje ignorantes dos benefícios da
cibernética e do barbeador elétrico.
Mentir não é ser otimista
profissional. Por isto não pintei de azul e brisa suave a manhã,
que era nublada e sem viração. Mas, sentindo borbulhar em mim o dom
da invenção, inventei na hora o tempo quadriculado, a saber, a
chuva, o sol, o frio, o calor, o vento, até mesmo o ciclone e o
raio, acondicionados em quadradinhos a serem vendidos nos carrinhos
de sorvete. Levando para casa os invólucros de sua preferência, o
consumidor os fruiria a seu bel-prazer, podendo também ofertá-los a
amigos. A invenção, de utilidade pública, não renderia
dividendos. De vez em quando, a fábrica de tempo distribuiria
surpresas, trocando os quadradinhos, para pregar susto nos clientes,
pois a vida precisa de uns solavancos; do contrário…
Uma das delícias do meu dia de
mentiroso foi dizer que eu não era eu, era outro, ou outros,
conforme o interlocutor. A empregada estranhou que eu recusasse a
correspondência trazida pelo porteiro do edifício, pois meu nome
não coincide com o dos endereços. “O senhor mudou de nome?”
Espantou-se. “Não. Mexendo agora uns papéis velhos, descobri o
meu nome verdadeiro, que é Adão Gomes Batista.” Ela não disse,
mas pensou: “O patrão não é de mentir, nem tem cara de doido;
então é verdade”. Como sabem, para mentir bem é necessário ter
reputação ilibada e gozar de perfeita saúde mental.
De Adão Gomes Batista passei a
Leonardo Veras, a Oscar, a Martiniano, a Gonçalves simplesmente
Gonçalves. “Desculpe, foi engano”, dizia o outro pelo telefone.
“Não foi não, é Gonçalves mesmo, não está me reconhecendo,
Januário?” E Januário, identificando minha voz e não meu nome de
Gonçalves, ficava sem compreender, acabava admitindo não estar
(ele, não eu) bom da cuca. Outro zangou-se: “Não admito
gozação!”. Amanhã explicarei a ele. Hoje é impossível; quero
mentir.
Talvez esteja mentindo demais ao
declarar que li e adorei cinco livros maravilhosos, saídos há
pouco, dos quais não consegui passar de meia página. Mas estou
certo de que seus autores acreditarão piamente, convictos de que não
fiz mais do que justiça. É imprescindível acreditar em alguma
coisa; então, acreditemos no elogio. Farei o mesmo quando me
disserem genial. A superestrutura de fábulas não trava o
funcionamento da máquina do mundo. Até parece que o torna mais
ritmado.
Mentirei até a noite. Jantarei com
distintas damas e cavalheiros, que decerto mentirão também, e não
sei se levarei vantagem, fraco bissexto, em confronto com
profissionais experimentados. Darei o máximo, em mentiras
civilizadas ou não, pois estas últimas estão em alta, e ameaçam
desbancar as outras, de incômoda finura. E aqui me surpreendo
falando verdade ao dizer que minto. Desculpem. A verdade é aquele
não convidado, que aparece e dá vexame nos lugares mais
sofisticados do mundo.
Carlos Drummond de Andrade, em De Notícias e Não Notícias Faz-se a Crônica
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