William Acton ficou de pé. O relógio
em cima da lareira bateu meia-noite.
Olhou para os dedos e olhou para a
sala grande em torno de si e olhou para o homem deitado no chão.
William Acton, cujos dedos haviam apertado teclas de máquina de
escrever e feito amor e fritado presunto e ovos para desjejuns
matutinos, agora cometera um assassinato com aqueles mesmos dez dedos
cobertos de pequenas espirais digitais.
Nunca havia pensado em si mesmo como
escultor e, no entanto, naquele momento, olhando entre as mãos, para
baixo, para o corpo sobre o chão de madeira encerada, ele percebeu
que, ao apertar e remodelar e retorcer, de algum modo, a argila
humana, ele havia se apoderado desse homem chamado Donald Huxley e
mudado sua fisionomia, a própria estrutura de seu corpo.
Com uma torção de dedos, ele havia
removido o brilho preciso dos olhos de Huxley, substituindo-o por uma
opacidade cega de olho frio na órbita. Os lábios, sempre rosados e
sensuais, estavam abertos mostrando os dentes eqüinos, os incisivos
amarelos, os caninos tingidos de nicotina, os molares incrustados de
ouro. O nariz, também rosado, estava agora mosqueado, pálido,
desbotado, assim como as orelhas. As mãos de Huxley, sobre o chão,
estavam abertas, pela primeira vez na vida implorando, em vez de
exigindo.
Sim, era uma concepção artística.
No geral, a mudança havia feito certo bem a Huxley. A morte o tornou
um homem mais fácil de lidar. Agora, quando alguém conversasse com
ele, ele teria de ouvir.
William Acton olhou para os próprios
dedos. Estava feito. Não podia desfazer. Alguém teria ouvido?
Escutou. Do lado de fora, os sons tardios normais do tráfego na rua
continuavam. Não havia nenhuma batida na porta da casa, nenhum ombro
arrebentando-a em pedaços, nenhuma voz exigindo entrada. O
assassinato, a transformação da argila de calor em frieza estava
feita, e ninguém sabia.
E agora? O relógio marcava
meia-noite. Todo o seu impulso explodia em histeria rumo à porta.
Depressa, fuja, não volte nunca mais, pegue um trem, chame um táxi,
saia, vá, corra, ande, suma, mas dê o fora daqui!
Suas mãos pairavam diante de seus
olhos, flutuando, volteando.
Ele as contorceu em lenta deliberação;
pareciam etéreas e leves como penas.
Por que estava olhando para elas desse
jeito?, ele se perguntava. Havia nelas algo de tão grande interesse
que ele devesse fazer uma pausa agora, depois de um estrangulamento
bem-sucedido, e examinar as linhas de suas impressões digitais, uma
a uma?
Eram mãos comuns. Nem grossas, nem
finas, nem longas, nem curtas, nem peludas, nem sem pêlos, não
tratadas, porém não sujas, não macias, porém não calejadas, não
enrugadas, porém não lisas; mãos de jeito algum assassinas, porém
não inocentes. Ele parecia considerá-las milagres a serem
contemplados.
Não eram as mãos em si que
interessavam a ele, nem os dedos em si. Na eternidade entorpecida
após uma violência consumada, ele apenas tinha interesse nas pontas
de seus dedos.
O relógio tiquetaqueava sobre a
lareira.
Ele se ajoelhou ao lado do corpo de
Huxley, tirou um lenço do bolso de Huxley e começou a esfregar a
garganta de Huxley metodicamente. Ele esfregava e massageava a
garganta e limpava o rosto e a nuca com energia feroz. Então,
levantou-se.
Olhou para a garganta. Olhou para o
chão encerado. Curvou-se vagarosamente e esfregou de leve o chão
com o lenço, então franziu o cenho e esfregou com força; primeiro,
perto da cabeça do cadáver, depois, perto dos braços. Em seguida,
lustrou o chão todo em torno do corpo. Lustrou o chão um metro a
partir do corpo em todas as direções. Depois, lustrou o chão dois
metros a partir do corpo em todas as direções. Depois, lustrou o
chão três metros a partir do corpo em todas as direções.
Depois...
Parou.
***
Houve um momento em que viu a casa
inteira, os corredores forrados de espelhos, as portas entalhadas, os
móveis esplêndidos e, tão claramente como se estivesse se
repetindo palavra por palavra, ele ouviu a voz de Huxley e a sua
própria, conversando, exatamente como haviam conversado apenas uma
hora antes.
O dedo na campainha de Huxley. A porta
de Huxley se abrindo.
“Ah!”, disse Huxley chocado. “É
você, Acton.”
“Onde está a minha esposa, Huxley?”
“Você acha mesmo que eu contaria a
você? Não fique aí fora, seu idiota. Se quiser falar de negócios,
entre. Por aquela porta. Lá. Na biblioteca.”
Acton havia tocado a porta da
biblioteca.
“Bebida?”
“Preciso de uma. Não consigo
acreditar que Lily se foi, que ela...”
“Há uma garrafa de borgonha, Acton.
Importa-se de trazê-la daquele armário? Sim, traga. Manuseie-a.
Toque-a.”
Ele o fez.
“Algumas primeiras edições
interessantes ali, Acton. Sinta esta encadernação. Sinta-a.”
“Não vim para ver livros, eu...”
Ele havia tocado os livros e a
mesa da biblioteca e tocado a garrafa do borgonha e os copos
de borgonha.
Agora, agachado no chão, ao lado do
corpo frio de Huxley, segurando o lenço usado no chão, ele olhava a
casa, as paredes, os móveis ao seu redor, os olhos arregalados, a
boca aberta, estupefato com o que percebeu e com o que via. Fechou os
olhos, deixou pender a cabeça, apertou o lenço entre as mãos,
amassando-o, mordendo os lábios, contendo-se.
As impressões digitais estavam em
toda parte, em toda parte!
“Importa-se de pegar o borgonha,
Acton, hein? A garrafa de Borgonha, hein? Com seus dedos, hein? Estou
terrivelmente cansado. Você entende?”
Um par de luvas.
Antes de fazer mais alguma coisa,
antes de lustrar uma outra área, ele precisava ter um par de luvas,
ou poderia, involuntariamente, depois de limpar uma superfície,
redistribuir sua identidade.
Colocou as mãos nos bolsos.
Atravessou a casa até o porta-guarda-chuva na entrada, o cabide de
chapéus. O sobretudo de Huxley. Revistou os bolsos do sobretudo.
Nenhuma luva.
Com as mãos de volta aos bolsos, foi
ao andar de cima, movendo-se com rapidez controlada, não se
permitindo nada frenético, nada impensado. Havia cometido o erro
inicial de não usar luvas (afinal, não tinha planejado um
assassinato, e seu subconsciente, que talvez soubesse do crime antes
de ser cometido, não havia nem mesmo sugerido que ele devesse usar
luvas antes que a noite chegasse ao fim), e agora ele tinha de pagar
pelo pecado de omissão. Em algum lugar da casa devia haver pelo
menos um par de luvas. Ele teria de se apressar; era bem possível
que alguém visitasse Huxley, mesmo àquela hora. Amigos ricos se
embebedando, entrando e saindo pela porta, rindo, gritando, indo e
vindo sem muito mais que um olá ou adeus. Ele teria até seis da
manhã, do lado de fora, quando os amigos de Huxley viriam buscá-lo
para irem ao aeroporto e à Cidade do México...
Acton se apressou no andar de cima,
abrindo gavetas, usando o lenço como mata-borrão. Desarrumou
setenta ou oitenta gavetas em seis cômodos, deixando-as, por assim
dizer, com as línguas para fora, e correu para desarrumar outras.
Sentia-se nu, incapaz de fazer qualquer coisa até encontrar luvas.
Poderia esfregar a casa toda com o lenço, lustrando todas as
superfícies possíveis em que pudesse haver impressões digitais e,
acidentalmente, esbarrar em uma parede aqui ou ali, selando assim o
próprio destino com um microscópico em forma de espiral! Seria como
colocar seu selo de aprovação no assassinato, é o que seria! Como
aqueles lacres de cera de antigamente, quando desenrolavam papiros,
floreavam-nos à pena, polvilhavam tudo com areia para secar a tinta
e pressionavam os anéis de sinete sobre a cera quente e rubra ao pé
da folha. Seria assim se ele deixasse uma, imagine só, uma
única impressão digital na cena! Sua aprovação do assassinato não
iria tão longe a ponto de apor tal selo.
Mais gavetas! Seja silencioso, seja
curioso, seja cuidadoso, dizia a si mesmo.
No fundo da octogésima quinta gaveta,
encontrou luvas.
“Ah, meu Deus, meu Deus!”
Encostou-se à cômoda, suspirando. Experimentou as luvas, levantou
as mãos, fletiu os dedos orgulhosamente, abotoou-as. Elas eram
macias, cinza, grossas, inexpugnáveis. Agora ele poderia fazer toda
sorte de truques com as mãos sem deixar traços. Achatou o nariz
contra o espelho do quarto, chupando o ar por entre os dentes.
***
“NÃO!”, gritou Huxley.
Que plano perverso fora aquele.
Huxley havia caído no chão de
propósito! Ah, que homem perversamente esperto! Caído sobre
o chão de madeira estava Huxley, com Acton atrás dele. Eles haviam
rolado e lutado e arranhado a porta, deixando nela marcas e mais
marcas de seus dedos frenéticos! Huxley conseguiu se afastar alguns
metros, Acton engatinhava atrás dele para colocar as mãos em seu
pescoço e apertar até que a vida saísse dele como pasta de um
tubo!
Enluvado, William Acton voltou à sala
e se ajoelhou no chão e laboriosamente começou a tarefa de esfregar
cada um de seus centímetros infestados. Centímetro por centímetro,
ele lustrou e lustrou até quase conseguir ver refletido seu rosto
concentrado e suado. Então, foi até uma mesa e lustrou uma de suas
pernas, subindo até seu corpo sólido e ao longo das saliências e
por sobre o tampo. Alcançou uma fruteira, poliu a prata filigranada,
tirou as frutas de cera e esfregou até ficarem limpas, deixando as
frutas do fundo sem lustrar.
“Tenho certeza de que não as
toquei”, ele disse.
Depois de esfregar a mesa, deparou-se
com a moldura de um quadro dependurado sobre ela.
“Com certeza eu não toquei nisso”,
ele disse.
Ficou olhando para ela.
Olhou de relance todas as portas da
sala. Que portas ele havia usado naquela noite? Não conseguia se
lembrar. Esfregue todas, então. Começou com as maçanetas, lustrou
todas e, em seguida, limpou as portas de alto a baixo, para não
correr nenhum risco. Então se dirigiu a todos os móveis na sala e
limpou os braços das cadeiras.
“Aquela cadeira em que você está
sentado, Acton, é uma antiga peça Luís XIV. Sinta o
material”, disse Huxley.
“Não vim para falar de mobília,
Huxley! Vim por causa de Lily.”
“Ah, deixe disso, você não fala
tão sério assim sobre ela. Ela não o ama, você sabe. Ela me disse
que irá para a Cidade do México amanhã.”
“Você e seu dinheiro e sua maldita
mobília!”
“É uma boa mobília, Acton; seja um
bom convidado e passe a mão nela.”
Impressões digitais podem ser
encontradas em tecido.
“Huxley!” William Acton olhou para
o corpo. “Você adivinhou que eu iria matá-lo? Seu subconsciente
suspeitava, assim como meu subconsciente suspeitava? E seu
subconsciente lhe disse para me fazer andar pela casa, manuseando,
tocando, acariciando livros, louças, portas, cadeiras? Você
foi tão inteligente e tão maldoso assim?”
Limpou as cadeiras a seco, com o lenço
embolado. Então, lembrou-se do corpo — ele não o havia limpado a
seco. Foi até lá e o virou de um lado, depois de outro, e esfregou
cada superfície dele. Até mesmo lustrou os sapatos, sem cobrar
nada.
Enquanto lustrava os sapatos, seu
rosto foi tomado de um tremor de preocupação e, depois de um
momento, ele se levantou e andou até aquela mesa.
Retirou e lustrou as frutas de cera no
fundo da fruteira.
“Melhor”, sussurrou, e voltou ao
corpo.
Mas, quando se agachou por sobre o
corpo, suas pálpebras estremeceram e a mandíbula se moveu de um
lado para o outro e ele se debateu, depois se levantou e novamente
caminhou até a mesa.
Lustrou a moldura do quadro.
Enquanto lustrava a moldura do quadro,
descobriu...
A parede.
“Isso”, pensou, “é
idiotice.”
“Ah!”, gritou Huxley,
defendendo-se dele. Deu um empurrão em Acton enquanto lutavam. Acton
caiu, levantou-se, tocando a parede, e correu de novo em direção a
Huxley. Estrangulou Huxley. Huxley morreu.
Acton se afastou da parede com
determinação, com equilíbrio e decisão. As palavras ásperas e a
ação se dissolveram em sua mente; ele as escondeu. Lançou um olhar
para as quatro paredes.
“Ridículo!”, disse.
Com o canto dos olhos, viu algo em uma
parede.
“Eu me recuso a prestar atenção”,
disse para desviar a concentração. “Agora, ao próximo cômodo!
Serei metódico. Vejamos — no todo, estivemos no salão, na
biblioteca, nesta sala e na sala de jantar e na cozinha.”
Havia uma mancha na parede atrás
dele.
Bem, não havia?
Ele se virou raivosamente.
“Tudo bem, tudo bem, só para ter
certeza”, e foi até lá e não conseguiu encontrar
nenhuma mancha. Ah, uma pequena, sim, bem... ali.
Esfregou-a de leve. De qualquer forma, não era uma digital. Acabou
com ela, e sua mão enluvada se apoiou na parede e ele olhou a parede
e a maneira como ela ia para a sua direita e para a sua esquerda e
como ela descia até seus pés e subia acima de sua cabeça e disse
suavemente: “Não”. Olhou para cima e para baixo e para além e
lá adiante e disse calmamente: “Isso seria demais”. Quantos
metros quadrados? “Não dou a mínima”, disse. Mas, sem que seus
olhos se apercebessem, sua mão enluvada se movia ansiosamente,
esfregando as paredes em movimento curto e ritmado.
Examinou a mão e o papel de parede.
Olhou por cima do ombro para o outro cômodo.
“Tenho de entrar lá e lustrar o
mais importante”, disse a si mesmo, embora a mão continuasse como
se escorasse a parede ou a ele mesmo.
Seu rosto endureceu. Sem dizer
palavra, começou a esfregar a parede, para cima e para baixo, para
trás e para a frente, para cima e para baixo, o mais alto que podia
se esticar e o mais baixo que conseguia se curvar.
“Ridículo, ah meu Deus, ridículo!”
Mas você precisa ter certeza, dizia a
ele o seu pensamento.
“Sim, é preciso ter certeza”,
ele respondeu.
Terminou uma parede e em seguida...
Foi até uma outra parede.
“Que horas são?”
Olhou para o relógio da lareira. Uma
hora se passara. Era uma e cinco.
A campainha tocou.
Acton ficou paralisado, olhando para a
porta, para o relógio, para a porta, para o relógio.
Alguém bateu com força.
Um longo instante se passou. Acton não
respirava. Sem ar novo no corpo, começou a desfalecer, a oscilar; na
cabeça bramia um silêncio de ondas geladas troando sobre pesadas
rochas.
“Ó de casa!”, gritou uma voz
embriagada. “Sei que você está aí, Huxley! Abra a porta, diabos!
É o Billy-Boy, bêbado como um gambá, Huxley, meu velho, mais
bêbado que dois gambás.”
“Vá embora”, Acton sussurrou,
oprimido, sem emitir som.
“Huxley, você está aí dentro, eu
ouço você respirando!”, gritou a voz embriagada.
“Sim, estou aqui”, sussurrou
Acton, sentindo-se desajeitado, esticado, esparramado sobre o chão,
desajeitado e frio e silencioso. “Sim.”
“Droga!”, disse a voz,
desaparecendo na neblina. Os passos se afastaram arrastados.
“Droga...”
Acton ficou um longo tempo sentindo o
coração vermelho bater dentro dos olhos fechados; dentro da cabeça.
Quando finalmente abriu os olhos, olhou para a parede nova e intocada
bem diante de si e finalmente teve coragem de falar.
“Tolo”, ele disse. “Esta parede
está impecável. Não vou tocá-la. Tenho de me apressar. Tempo,
tempo. Somente algumas horas até que aqueles malditos amigos idiotas
se intrometam aqui!”
Afastou-se.
Com o canto dos olhos viu as pequenas
teias. Ao virar as costas, as pequenas aranhas saíram do
madeiramento e delicadamente teceram suas teias frágeis e
semi-invisíveis. Não sobre a parede à sua esquerda, que já estava
totalmente limpa, mas sobre as três outras paredes ainda intocadas.
Cada vez que ele olhava direto para elas, as aranhas se recolhiam ao
madeiramento, rodopiando de volta à parede quando ele se afastava.
“Essas paredes estão boas”, ele
insistiu quase gritando. “Eu não vou tocá-las!”
Foi até uma escrivaninha em que
Huxley havia se sentado mais cedo. Abriu uma gaveta e tirou o que
estava procurando. Uma pequena lupa que Huxley às vezes usava para
ler. Pegou a lente de aumento e aproximou-se da parede, incomodado.
Digitais.
“Mas essas não são minhas!” Riu
hesitante. “Eu não as coloquei ali! Tenho certeza de
que não coloquei! Talvez um serviçal, um mordomo ou uma empregada!”
A parede estava cheia delas.
“Veja esta aqui”, disse. “Longa
e adelgaçada, de mulher, aposto meu dinheiro.”
“Aposta mesmo?”
“Aposto!”
“Tem certeza?”
“Positivo?”
“Bem, sim.”
“Sem sombra de dúvida?”
“Sim, dane-se; sim!”
“Limpe-a, por via das dúvidas, por
que não?”
“Ali, meu Deus!”
“Fora mancha desgraçada, hein,
Acton?”
“E esta aqui”, zombou Acton. “Esta
é a digital de um homem gordo.”
“Tem certeza?”
“Não comece de novo!”, ele
se impacientou e a removeu. Tirou uma das luvas e suspendeu a mão,
tremendo, na luz intensa.
“Olhe só, seu idiota! Veja como são
as espirais. Veja.”
“Isso não prova nada!”
“Ah, tudo bem!”
Enfurecido, ele esfregou a parede para
cima e para baixo, para trás e para a frente, com as mãos
enluvadas, suando, grunhindo, xingando, abaixando, levantando e
ficando mais vermelho.
Tirou o paletó, colocou-o sobre uma
cadeira.
“Duas horas”, disse, terminando a
parede, fuzilando para o relógio.
Caminhou até a fruteira e tirou as
frutas de cera e lustrou as que estavam no fundo e as colocou de
volta, e lustrou a moldura do quadro.
Olhou para cima, para o candelabro.
Seus dedos se contorciam de cada lado
do corpo.
A boca se abriu e a língua se moveu
ao longo dos lábios e ele olhou para o candelabro e desviou o olhar
e olhou de novo para o candelabro e olhou para o corpo de Huxley e
depois para o candelabro de cristal, com suas compridas gotas de
vidro irisado.
Pegou uma cadeira e a trouxe para
debaixo do candelabro e colocou um pé sobre ela e tirou o pé e,
rindo, jogou violentamente a cadeira em um canto. Então, saiu
correndo da sala, deixando uma parede sem limpar.
Na sala de jantar, aproximou-se de uma
mesa.
“Quero lhe mostrar meu faqueiro
gregoriano, Acton”, Huxley havia dito. Ah, aquela voz descontraída,
hipnótica!
“Não tenho tempo”, disse Acton.
“Tenho de ver Lily...”
“Bobagem, veja esta prata, este
trabalho delicado.”
Acton parou do outro lado da mesa,
onde as caixas de faqueiros estavam dispostas, ouvindo de novo a voz
de Huxley, lembrando-se de todos os toques e gestos.
Agora Acton enxugava os garfos e as
colheres e descia da parede todas as placas e os pratos especiais de
cerâmica...
“Eis aqui uma adorável peça de
cerâmica de Gertrude e Otto Natzler, Acton. Você conhece o trabalho
deles?”
“É adorável.”
“Pegue. Vire. Veja a espessura
delicada da tigela, modelada à mão em um torno, fina como casca de
ovo, incrível. E a surpreendente vitrificação vulcânica.
Manuseie, vá em frente. Não me importo.”
“MANUSEIE. VÁ
EM
FRENTE. PEGUE!”
Acton soluçava incontrolavelmente.
Jogou a cerâmica na parede. Ela quebrou e se espalhou,
despedaçando-se desordenadamente sobre o chão.
Um instante depois, estava de joelhos.
Cada pedaço, cada caco precisava ser encontrado. “Tolo, tolo,
tolo!” — gritava para si, balançando a cabeça e fechando e
abrindo os olhos e se debruçando sobre a mesa. “Encontre todos os
pedaços, idiota, nem um fragmento deve ficar para trás. Tolo,
tolo!” Ele os reuniu. “Estão todos aqui?” Olhou para eles
sobre a mesa diante de si. Olhou novamente debaixo da mesa e sob as
cadeiras e os aparadores e, acendendo um fosfóro, encontrou mais um
pedaço, e começou a lustrar cada pequeno fragmento como se fosse
uma pedra preciosa. Colocou-os todos arrumados sobre a reluzente mesa
lustrada.
“Uma adorável peça de cerâmica,
Acton. Vá em frente — manuseie.”
Ele tirou a toalha e limpou-a e limpou
as cadeiras e a mesa e as maçanetas e os caixilhos das janelas e os
peitoris e as cortinas e as bordas e limpou o chão e chegou à
cozinha, ofegando, respirando com violência, e tirou o colete e
ajustou as luvas e limpou o cromo faiscante... “Quero mostrar minha
casa para você, Acton”, disse Huxley. “Venha comigo...” E
limpou todos os utensílios e as torneiras de prata e as tigelas de
misturar, pois já havia esquecido o que tinha tocado e o que não
tinha. Huxley e ele haviam se demorado ali, na cozinha, Huxley
orgulhoso de seu acervo, encobrindo o nervosismo pela presença de um
assassino em potencial, talvez querendo estar perto das facas caso
fossem necessárias. Eles haviam se demorado, tocado isso, aquilo,
mais aquilo — não havia recordação do que ou do quanto ou de
quantos —, e ele terminou a cozinha e veio pelo corredor até a
sala onde estava Huxley.
Deu um grito.
Havia esquecido de limpar a quarta
parede da sala! E, enquanto estava fora, as pequenas aranhas tinham
vindo da quarta parede que não fora limpa e enxameado as paredes já
limpas, sujando-as novamente! Nos tetos, descendo do candelabro, nos
cantos, no chão, pendiam um milhão de pequenas teias espiraladas
que ondearam ao grito dele! Minúsculas, minúsculas teiazinhas, não
maiores que, ironicamente, seu... dedo!
Enquanto observava, as teias eram
tecidas sobre a moldura do quadro, a fruteira, o corpo, o chão.
Impressões digitais empunhavam a espátula de papel, abriam gavetas,
tocavam o tampo da mesa, tocavam, tocavam; tocavam tudo, em toda
parte.
Ele lustrava o chão
enlouquecidamente, enlouquecidamente. Revirava o corpo e chorava
sobre ele, enquanto o limpava, e levantou e andou e lustrou as frutas
no fundo da fruteira. Então colocou uma cadeira debaixo do
candelabro e subiu e lustrou cada pequeno brilho que dele pendia,
sacudindo-o como um pandeiro de cristal até que balançasse no ar
como um sino. Então saltou da cadeira e agarrou as maçanetas e
subiu em outras cadeiras e esfregou as paredes cada vez mais alto e
correu para a cozinha e pegou uma vassoura e removeu as teias do teto
e lustrou as frutas no fundo da fruteira e limpou o corpo e as
maçanetas e a prataria e chegou ao corrimão do hall e seguiu até o
andar de cima.
Três horas! Por toda parte, com uma
feroz intensidade mecânica, relógios tiquetaqueavam! Havia doze
cômodos no andar de baixo e oito em cima. Ele calculou os metros e
metros de espaço e o tempo necessários. Cem cadeiras, seis sofás,
vinte e sete mesas, seis rádios. E embaixo e em cima e atrás. Aos
arrancos, afastou móveis de paredes e, soluçando, esfregou-os até
limpá-los da poeira de anos, e cambaleou e seguiu o corrimão escada
acima, para cima, apalpando, raspando, esfregando, polindo, porque se
deixasse uma pequena digital ela iria se reproduzir e fazer mais um
milhão delas! — e o trabalho teria de ser feito todo de novo e
agora eram quatro horas! — e seus braços doíam e os olhos estavam
inchados e fixos e ele se movia com lentidão, sobre pernas
estranhas, a cabeça abaixada, os braços se movimentando, esfregando
e friccionando, quarto por quarto, armário por armário...
Encontraram-no às seis e meia da
manhã.
No sótão.
A casa inteira estava um brinco. Vasos
cintilavam como estrelas de vidro. Cadeiras luziam. Bronzes, latões
e cobres fulguravam. Chãos faiscavam. Corrimãos reluziam.
Tudo resplandecia. Tudo brilhava, tudo
estava radiante!
Encontraram-no no sótão, lustrando
os velhos baús e as velhas molduras e as velhas cadeiras e os velhos
carrinhos de bebê e brinquedos e caixas de música e vasos e
faqueiros e cavalinhos de balanço e empoeiradas moedas da Guerra
Civil. Ele havia limpado metade do sótão quando o policial chegou
por trás dele com uma arma.
“Pronto!”
No caminho de saída da casa, Acton
lustrou a maçaneta da entrada com o lenço e bateu a porta
triunfante!
Ray Bradbury, em A cidade inteira dorme e outros contos breves

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