quarta-feira, 23 de julho de 2025

Teatrinho

 
Mauro e Mel eram casados. Faziam teatro e, para ajudar no orçamento, se apresentavam em festas de crianças. Levavam um pequeno palco e um elenco de fantoches para manipular: Chapeuzinho Vermelho, Lobo Mau, etc. Não ganhavam muito com isto, mas sempre ajudava. Convites para apresentações não faltavam. O teatrinho para crianças estava indo bem. O que não estava indo muito bem era o casamento dos dois.

Aquele dia já tinha começado mal. O Mauro amargurado, se queixando da vida e da falta de oportunidade para fazer teatro de verdade. Afinal, era um ator formado, não podia passar o resto da vida fazendo teatro de fantoches. A Mel, cansada das lamúrias do Mauro, rebatendo que os fantoches pelo menos pagavam as contas, e não deixavam de ser teatro. Os dois tinham brigado desde o café da manhã, e continuaram brigando no carro, a caminho da festa de aniversário onde se apresentariam àquela tarde. E só não continuaram brigando enquanto montavam o palco porque a plateia já começava a ocupar seus lugares, as crianças maiores no chão, as menores no colo das mães, num clima de grande expectativa.

Chapeuzinho Vermelho apresentava o espetáculo.
Alô, amiguinhos! Meu nome é Chapeuzinho Vermelho e...
A cabeça do Lobo Mau apareceu num canto do palco.
Chapeuzinho... Isso lá é nome?
Chapeuzinho (depois de um segundo de hesitação):
Ih, o Lobo Mau já quer entrar na história. Ainda não é a sua vez, Lobo Mau. Vá embora e espere a sua deixa.
Lobo Mau:
Lobo Mau... Isso não é um nome, é uma sentença. Eu não sou intrinsecamente mau. Posso decidir ser mau, ou não. A existência precede a essência, segundo Sartre. É a velha questão, to be or not to be.
Chapeuzinho:
Amiguinhos, vamos dar uma vaia no Lobo Mau para ele ir embora e esperar sua vez? Vamos lá, todo mundo... Buuuuuu!
As crianças vaiaram o Lobo Mau, que desapareceu.

Chapeuzinho:
Meu nome é Chapeuzinho Vermelho, e eu estou levando estes doces para a vovozinha. Será que esta floresta é perigosa? Será que eu vou encontrar um…
Aparece o Lobo Mau.
Chapeuzinho:
Lobo Mau!
Lobo Mau:
Em pessoa. Mas você, também, está pedindo, hein, beibi? Sozinha desse jeito no meio de uma floresta escura... Você não lê jornal, não?
Chapeuzinho:
Eu...eu... Eu estou levando estes doces para a vovozinha.
Lobo Mau:
E como é que essa vovozinha mora no meio da floresta, em vez de num condomínio fechado? Me dá esses doces.
Chapeuzinho:
Não! Por que você quer os doces da vovozinha?!
Lobo Mau:
Para a sobremesa, depois de comer você.
Chapeuzinho:
Você esqueceu? Na história, você primeiro tem que ir até a casa da vovozinha, comer a vovozinha, vestir a camisola dela e me esperar deitado na cama.
Lobo Mau:
Esta é uma versão condensada, sem o travestismo. Prepare-se para morrer!
Chapeuzinho (correndo de cena):
Não! Vou chamar o caçador. Socorro!
Sozinho no palco, o Lobo Mau dirigiu-se à plateia:
Amiguinhos, desculpem-me. Vocês não têm nada com isso. É uma crise pessoal, entendem? Eu não sou mau. Aliás, não sou nem lobo. Sou um ator. Antes disso, sou um ser humano. Perguntem à mamãe o que é isso. É uma coisa complicada, é...
Entrou em cena o caçador, carregando uma espingarda, que apontou para o Lobo Mau.
Caçador:
Pare!
Lobo Mau:
Você interrompeu meu solilóquio, pô.
Caçador:
Mãos ao alto!
Lobo Mau:
Está bem, atire. Atire! Vamos acabar logo com isto. Aqui está o meu peito. Mire no coração, que não tem mais serventia. Atire, Mel!
Caçador (fazendo o som do disparo):
Pum!
O Lobo Mau caiu para a frente, quase despencando do palco. Silêncio na plateia. Depois começaram as vaias — “Buuuuu” —, não se sabe se para o desfecho abrupto da versão abreviada, para o fim do Lobo Mau ou para a condição humana. E depois começou a chuva de brigadeiros contra o palco.

Luís Fernando Veríssimo, em Diálogos Impossíveis

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