Mauro
e Mel eram casados. Faziam teatro e, para ajudar no orçamento, se
apresentavam em festas de crianças. Levavam um pequeno palco e um
elenco de fantoches para manipular: Chapeuzinho Vermelho, Lobo Mau,
etc. Não ganhavam muito com isto, mas sempre ajudava. Convites para
apresentações não faltavam. O teatrinho para crianças estava indo
bem. O que não estava indo muito bem era o casamento dos dois.
Aquele
dia já tinha começado mal. O Mauro amargurado, se queixando da vida
e da falta de oportunidade para fazer teatro de verdade. Afinal, era
um ator formado, não podia passar o resto da vida fazendo teatro de
fantoches. A Mel, cansada das lamúrias do Mauro, rebatendo que os
fantoches pelo menos pagavam as contas, e não deixavam de ser
teatro. Os dois tinham brigado desde o café da manhã, e continuaram
brigando no carro, a caminho da festa de aniversário onde se
apresentariam àquela tarde. E só não continuaram brigando enquanto
montavam o palco porque a plateia já começava a ocupar seus
lugares, as crianças maiores no chão, as menores no colo das mães,
num clima de grande expectativa.
Chapeuzinho
Vermelho apresentava o espetáculo.
— Alô,
amiguinhos! Meu nome é Chapeuzinho Vermelho e...
A
cabeça do Lobo Mau apareceu num canto do palco.
— Chapeuzinho...
Isso lá é nome?
Chapeuzinho
(depois de um segundo de hesitação):
— Ih,
o Lobo Mau já quer entrar na história. Ainda não é a sua vez,
Lobo Mau. Vá embora e espere a sua deixa.
Lobo
Mau:
— Lobo
Mau... Isso não é um nome, é uma sentença. Eu não sou
intrinsecamente mau. Posso decidir ser mau, ou não. A existência
precede a essência, segundo Sartre. É a velha questão, to be or
not to be.
Chapeuzinho:
— Amiguinhos,
vamos dar uma vaia no Lobo Mau para ele ir embora e esperar sua vez?
Vamos lá, todo mundo... Buuuuuu!
As
crianças vaiaram o Lobo Mau, que desapareceu.
Chapeuzinho:
— Meu
nome é Chapeuzinho Vermelho, e eu estou levando estes doces para a
vovozinha. Será que esta floresta é perigosa? Será que eu vou
encontrar um…
Aparece
o Lobo Mau.
Chapeuzinho:
— Lobo
Mau!
Lobo
Mau:
— Em
pessoa. Mas você, também, está pedindo, hein, beibi? Sozinha desse
jeito no meio de uma floresta escura... Você não lê jornal, não?
Chapeuzinho:
— Eu...eu...
Eu estou levando estes doces para a vovozinha.
Lobo
Mau:
— E
como é que essa vovozinha mora no meio da floresta, em vez de num
condomínio fechado? Me dá esses doces.
Chapeuzinho:
— Não!
Por que você quer os doces da vovozinha?!
Lobo
Mau:
— Para
a sobremesa, depois de comer você.
Chapeuzinho:
— Você
esqueceu? Na história, você primeiro tem que ir até a casa da
vovozinha, comer a vovozinha, vestir a camisola dela e me esperar
deitado na cama.
Lobo
Mau:
— Esta
é uma versão condensada, sem o travestismo. Prepare-se para morrer!
Chapeuzinho
(correndo de cena):
— Não!
Vou chamar o caçador. Socorro!
Sozinho
no palco, o Lobo Mau dirigiu-se à plateia:
— Amiguinhos,
desculpem-me. Vocês não têm nada com isso. É uma crise pessoal,
entendem? Eu não sou mau. Aliás, não sou nem lobo. Sou um ator.
Antes disso, sou um ser humano. Perguntem à mamãe o que é isso. É
uma coisa complicada, é...
Entrou
em cena o caçador, carregando uma espingarda, que apontou para o
Lobo Mau.
Caçador:
— Pare!
Lobo
Mau:
— Você
interrompeu meu solilóquio, pô.
Caçador:
— Mãos
ao alto!
Lobo
Mau:
— Está
bem, atire. Atire! Vamos acabar logo com isto. Aqui está o meu
peito. Mire no coração, que não tem mais serventia. Atire, Mel!
Caçador
(fazendo o som do disparo):
— Pum!
O
Lobo Mau caiu para a frente, quase despencando do palco. Silêncio na
plateia. Depois começaram as vaias — “Buuuuu” —, não se
sabe se para o desfecho abrupto da versão abreviada, para o fim do
Lobo Mau ou para a condição humana. E depois começou a chuva de
brigadeiros contra o palco.
Luís Fernando Veríssimo, em Diálogos Impossíveis
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